Lula não está interessado em paz

A indicação de Flávio Dino para o STF é um tapa na cara do Brasil majoritário que existe fora da sua guarda pessoal

Por J. R. Guzzo (*)

A nomeação de Flávio Dino para o Supremo Tribunal Federal é a última demonstração de que existem hoje duas realidades, jamais expostas para o conhecimento público, que comandam as decisões do governo Lula. A primeira é que o presidente não pode contar, no Congresso Nacional, com a maioria indispensável para governar com um mínimo de sossego. A segunda é que Lula sabe que nunca mais vai ganhar uma eleição livre neste país. Sua solução para essas duas dificuldades é declarar guerra a qualquer tipo de entendimento com as pessoas ou ideias que não façam parte do comitê central de sobrevivência que montou em torno de si próprio. A indicação para o STF do seu ministro mais destrutivo, mais totalitário e de pior desempenho, por qualquer avaliação, é um tapa na cara do Brasil majoritário que existe fora da sua guarda pessoal. Se não pode contar com o Parlamento nem com os eleitores, então a saída é mandar uns e outros para o raio que os parta — e apostar tudo, para sempre, num pacto de vida ou morte com o STF.

A presença de Dino no STF não é um ato normal de administração pública, como pretende a maior parte da mídia — aquela que abandonou suas funções profissionais e hoje faz propaganda do governo. Sua nomeação consolida, de uma vez por todas, a transformação do Supremo em delegacia de polícia política a serviço do presidente da República e da bolha fechada em que ele decidiu viver. Se estivesse querendo um pouco mais de paz com o conjunto da sociedade brasileira, Lula jamais indicaria Flávio Dino para a Suprema Corte de Justiça do Brasil — nem o PT quer o seu nome, o que dá uma ideia de onde o presidente está se metendo. Mas Lula não está interessado em paz. Num país com paz ele está morto. Não tem voto — sem o TSE do ministro Alexandre de Moraes ele não seria nada. Não tem a ficha limpa de que todo cidadão precisa para ficar fora da cadeia; é exatamente lá que estaria até hoje, por sinal, se o Supremo não o tivesse tirado do xadrez onde cumpria pena de oito anos e tanto por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Não tem maioria segura no Congresso — precisa comprar voto, o tempo todo, e isso às vezes não é suficiente.

Luiz Inácio Lula da Silva (ao centro), presidente da República, durante indicações de Flávio Dino (à direita) ao cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal e de Paulo Gonet (à esquerda) ao cargo de procurador-geral da República, no Palácio da Alvorada – Foto: Ricardo Stuckert/PR

Pior do que tudo, talvez, Lula não tem a mais remota possibilidade de fazer um governo sequer razoável, ou capaz de lhe dar alguma chance real de apoio na opinião pública. Também não tem interesse nisso. Se tivesse, não teria montado um Ministério tão ruim como o que montou; é materialmente impossível tirar dali qualquer resultado, ou qualquer coisa útil. No fundo, não quer governar. Já está, justo agora, na sua 15ª viagem ao exterior em 11 meses, algo nunca visto antes na história deste país. Ali, no meio de sheiks, palácios e cartões de crédito pagos por você, pode se fechar no mundo de fantasias que construiu para si próprio. Como segurar uma situação dessas, num país democrático e sujeito à lei? Só há um jeito: acabando com a democracia e com as leis. E como acabar com a democracia e com as leis? No Brasil como ele é hoje, ou como ficou, Lula e o STF parecem ter chegado à mesma conclusão: ambos só podem sobreviver se formarem uma junta de governo entre um e o outro, com o serviço de segurança armada fornecido a eles pelo comando do Exército Brasileiro.

Os senadores e deputados aprovaram alguma lei que o presidente não aceita, ou não querem aprovar alguma coisa que ele exija, ou rejeitam algum veto presidencial? Nenhum problema: o STF diz que a decisão é inconstitucional, ou coloca ele mesmo em vigor as leis que os deputados e senadores não querem fazer

Lula passa a depender, para tudo, de Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes e talvez Luís Roberto Barroso, agora reforçados por Flávio Dino; os outros são um triplo zero à esquerda. O STF, do seu lado, aposta tudo em Lula para continuar mandando; sabe que não tem futuro se ele e o seu sistema de apoio não estiverem mais no governo. Para que, então, esquentar a cabeça com eleições? Lula não precisa de eleição; precisa do TSE, transformado pelo ministro Moraes numa espécie de Gestapo eleitoral que só obedece ao politburo formado dentro do Supremo. O TSE cassa mandatos e direitos dos adversários, elimina a igualdade nas campanhas e, mais do que qualquer outra coisa, conta os votos num sistema de urnas eletrônicas que não é admitido em nenhuma democracia do mundo. O Supremo é essencial, também, para dar a Lula a certeza de que pode cometer qualquer crime, com quaisquer provas, sem correr nenhum risco de prestar contas à Justiça. O STF tirou Lula da prisão e o colocou na Presidência da República, para acabar com o combate à corrupção e reprimir a direita majoritária; por que diabo iria colocá-lo outra vez na cadeia e começar tudo de novo?

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O presidente Lula desembarca em Riad, na Arábia Saudita (28/11/2023) – Foto: Ricardo Stuckert/PT

O consórcio com o STF dispensa Lula não apenas de buscar o apoio dos eleitores e de respeitar o Código Penal Brasileiro. Serve, também, para minimizar suas necessidades de formar entendimentos no Congresso — pode se limitar, como faz hoje, a dar aos parlamentares dinheiro que não é seu e empregos cujos salários não são pagos por ele. É muito mais fácil assim. Não é preciso ter um ministro competente para fazer a coordenação política. Não é mais preciso receber deputados — sobretudo na hora do almoço, coisa que atualmente depende da autorização da sua mulher. Não precisa dar atenção nem ao PT, como a nomeação de Dino acaba de provar. Os senadores e deputados aprovaram alguma lei que o presidente não aceita, ou não querem aprovar alguma coisa que ele exija, ou rejeitam algum veto presidencial? Nenhum problema: o STF diz que a decisão é inconstitucional, ou coloca ele mesmo em vigor as leis que os deputados e senadores não querem fazer. Alguém está incomodando, como ocorreu há pouco com o presidente da Câmara? O STF reabre inquéritos criminais contra ele — e fecha imediatamente depois, assim que volta atrás em sua posição.

Para o STF, do outro lado, fechar com Lula um tratado de defesa mútua e de vantagens recíprocas é a opção que existe, queiram ou não. Os ministros sabem que são as pessoas mais odiadas do Brasil; se forem abandonados por Lula e pelo PT passam a valer uma nota de R$ 2. Precisam deles porque são eles que mandam no comandante do Exército e na Polícia Federal — e sem a força armada esses ministros estão mais mortos que o imperador Pedro II. Não é nem que queiram mandar mais do que mandam, receber mais dinheiro do erário público ou aumentar a sua cota de lagostas. É uma questão de pura e simples sobrevivência. Sem o STF, Lula não existe, e a esquerda menos ainda. Mas sem Lula o STF também não existe — o que é um problema e tanto, levando-se em conta que Lula não vai estar aí para sempre. Fazer o quê? O Supremo não tem voto. Não tem apoio político no Congresso; só conta com o medo dos senadores e deputados, e o prazo de validade dessas coisas é incerto. Não tem a razão da lei, pois há cinco anos aboliu a Constituição Federal. Só tem Lula.

Nada disso, naturalmente, encerra a questão — é até possível que ela esteja começando, justo agora, a ficar mais complicada para as duas metades da junta de governo. Não está claro, na verdade, o quanto Lula vai realmente ganhar com a nomeação de Dino. É impensável que seu nome seja rejeitado pelo Senado — a última e única vez que isso aconteceu foi há 129 anos, em 1894, quando o marechal Floriano Peixoto conseguiu a proeza de ter cinco de suas indicações para o STF vetadas pelos senadores. Lula não vai poder dizer, portanto, que a aprovação de Dino será uma vitória; já uma recusa seria o maior desastre jamais vivido por um presidente do Brasil. Também não vai ficar mais forte no STF. Já tem uma maioria de 8 a 2; passará a ter 9 a 2. E daí? Não vai ganhar nenhum ponto nas pesquisas de opinião, e muito menos um voto nas eleições municipais do ano que vem. Acha que não precisa mais se preocupar com isso, mas amarra a si próprio e a seu partido de uma vez por todas no TSE; vai ficar precisando de Alexandre de Moraes pelo resto da vida.

Senador Rodrigo Pacheco e ministro Flávio Dino, durante assinatura de protocolo de cooperação entre o Senado e o Ministério da Justiça que facultará o acesso e a divulgação regular de dados sobre segurança pública, em Brasília (DF, 22/11/2023) – Foto: Lula Marques/Agência Brasil

Lula ganha o apoio da maior parte da mídia, que há um ano considera Flávio Dino como o maior jurista brasileiro desde Rui Barbosa. Mas isso ele já tem de sobra — e, além do mais, trata-se de algo que não lhe serve para nada. A nomeação de Dino e o seu pacto com o STF não vão fazer com que nenhum político passe a querer seu apoio em eleições. O apoio do STF, então, é a última coisa que alguém quer. Os deputados e senadores fogem dos ministros como o diabo foge da água benta — mesmo porque, se perderem as suas cadeiras, não será o STF que vai resolver o problema para eles. O presidente não soluciona, enfim, um único problema concreto do país, em nenhuma área. Flávio Dino, no Supremo, não vai gerar nenhum emprego. Não vai fazer o Brasil avançar um decimal no crescimento da economia. Não vai ajudar ninguém a segurar a inflação. Foi o pior ministro do governo Lula até agora, o que não é para qualquer um. Não vai melhorar porque juntou-se a Moraes, Gilmar e Barroso.

Lula e o STF estão apostando tudo no conflito, na repressão e na eliminação progressiva da democracia. A nomeação de Flávio Dino mostra que não estão dispostos a voltar atrás — ou talvez não consigam mais recuar. Justamente no momento em que o STF consegue o seu primeiro cadáver, com a morte de um dos presos do 8 de janeiro no presídio da Papuda pela falta do tratamento médico a que tinha direito, o consórcio decide ficar mais radical. O ministro Moraes se recusou, de novo, a atender pedidos de libertação dos presos do seu processo contra os “atos golpistas” — todo o seu empenho é em aprofundar ainda mais a crise que mantém acesa desde que abriu, cinco anos atrás, o inquérito perpétuo e ilegal em defesa, segundo ele mesmo, do “estado democrático de direito”. É duvidoso que seja uma boa ideia, de Lula e do STF, fazer o que estão fazendo. O povo voltou à rua, na Avenida Paulista, em protesto contra a morte de Cleriston Pereira da Cunha na prisão de Brasília. O consórcio tem de contar, agora, que haja menos gente na próxima manifestação. E se houver mais, e cada vez mais? O medo pode estar acabando. Não vai dar, aí, para dissolver a multidão à bala — nem querer que o general Tomás Paiva, comandante do Exército, minta de novo e faça os manifestantes entrarem em seus ônibus para serem levados à cadeia, com a história de que iriam para “lugar seguro”. Quantos ônibus ele terá de arrumar para prender 15 mil pessoas, ou 50 mil, ou sabe-se lá quantas? Vão ter de transformar os generais brasileiros em generais venezuelanos. Não é impossível. Mas também não é fácil.

nikolas ferreira stf manifestação | O ato deste domingo, 26, contou com centenas de milhares de pessoas | Foto: Tauany Cattan/Revista Oeste
O ato deste domingo, 26, contou com centenas de milhares de pessoas – Foto: Tauany Cattan/Revista Oeste

(*) J.R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-193/lula-nao-esta-interessado-em-paz/

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