De delírio em delírio

Alexandre de Moraes não sabe, ou não quer, ou não pode mais, voltar à única situação que a lei lhe permite — a de ministro do STF, com a obrigação de fazer com que a Constituição seja obedecida

Alexandre de Moraes, ministro do STF e presidente do TSE - Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Por J. R. Guzzo (*)

O ministro Alexandre de Moraes, que nomeou a si próprio como a maior autoridade pública que o Brasil já teve em toda a sua história, e viu os donos do Estado brasileiro baixarem a cabeça diante de qualquer coisa que ele mandasse fazer, acabou se metendo em território desconhecido. Não sabe, ou não quer, ou não pode mais, voltar à única situação que a lei lhe permite — a de ministro do Supremo Tribunal Federal, com a obrigação de fazer com que a Constituição seja obedecida. Se deixou de ter existência legal, passa a existir, cada vez mais, só pela força. Aparece então o problema de sempre nessas situações: governante que vive hoje da força tem de ter mais força amanhã para continuar vivo, e mais ainda depois de amanhã, e assim por diante. Ou manda cada vez mais, ou acaba não mandando em nada. Aí já começa a ser um perigo. Pelas experiências recentes da política brasileira, quem vai para o chão passa a correr o risco automático de ir também para a cadeia.

A situação de Alexandre de Moraes tem ainda um complicador pouco lembrado pelos cientistas, analistas e comentaristas políticos. O ministro é um caso, ao que parece inédito na vida pública em geral, de personagem que considera que o modo mais eficaz de construir uma carreira política é fazendo inimigos. Ele não precisa apenas acumular cada vez mais poder — precisa, também, manter essa gente toda imobilizada pelo resto da vida com uma tornozeleira eletrônica do tipo pega-um-pega-geral. Tem de proibir um número cada vez maior de brasileiros de usarem as redes sociais. Tem de assustar cada vez mais gente com a Polícia Federal e os seus inquéritos contra “atos antidemocráticos”. Não pode, a propósito, fechar nunca mais o seu inquérito perpétuo em defesa da “democracia”. Deu-se a obrigação de ficar contra a anistia para crimes que não foram cometidos, e que são punidos por ele com 17 anos de prisão — a única coisa que poderia aliviar, pelo menos por um tempo, a sua ficha.

Alexandre de Moraes não precisa apenas acumular cada vez mais poder. Tem de proibir um número cada vez maior de brasileiros de usarem as redes sociais – Ilustração: Shutterstock

O ministro, mandando tudo isso que manda, não conseguiu criar uma base política até agora. Não tem aliados de verdade no Congresso Nacional ou nos partidos; tem apenas um bando de coelhos com medo dele, o que não é a mesma coisa. Mantém, com certeza, uma espécie de abraço de afogado com Lula, o PT e o bas-fond que sustenta os dois, mas isso não resolve a vida de ninguém no Brasil de hoje, e sobretudo do futuro. Lula se convenceu de que Alexandre de Moraes vai resolver todos os seus problemas, a começar pelo mais fatal deles, a falta de povo e de voto. Não tem um plano B; é ele ou é ele. Na verdade, o presidente e seu sistema de apoio terceirizaram para o ministro a sua permanência no governo. A coisa que mais se ouve na esquerda brasileira hoje em dia, para se ter uma ideia de onde foram amarrar o burro deles, é: “Chama o Xandão”. Dizem isso com a emoção de quem diz “vai, Curíntia”, ou “Palestina livre”, e ficam ainda mais agitados quando pedem “a Federal”.

É um sinal a mais do abismo moral em que a esquerda brasileira decidiu se jogar de cabeça, desde o choque que teve quando constatou ter perdido as eleições de 2018. Mas não se vê com clareza no que esta nova devoção ajuda o próprio ministro Moraes. Ter o apoio encantado da esquerda, com Lula junto, já não adianta grande coisa para ele no Brasil de hoje; quando não houver mais Lula, não vai adiantar nada. Você se sentiria seguro se fosse Alexandre de Moraes e tivesse de contar com o apoio dos deputados “Lindinho”, Janones e coisa parecida para continuar por cima? Sem Lula o que existe na vida real é isso; não adianta procurar mercadoria melhor, porque não vai encontrar. O ministro é o aparelho de respirar do presidente, a começar pela garantia de que ele jamais terá de prestar contas perante a Justiça por nada que faça, seja lá o que for. Mas quem será o aparelho de respirar de Moraes? Os jornalistas da Globo News? Nem ele deve acreditar nisso.

O delírio do “morador de rua golpista” é apenas o resultado direto e inevitável do delírio do “Golpe do Estilingue”, que vem do delírio dos “atos antidemocráticos”, que vem do delírio do tribunal que deu a si próprio a autorização de desrespeitar qualquer lei em vigor no Brasil

O resultado prático dessa situação extrema, pelo que se tem visto, é que o ministro está tendo de socar cada vez mais ficha na mesa, e não para dobrar o ganho — mas para segurar as fichas que tem. Subir mais, para ele, está difícil. Subir para onde? Nem o próprio Moraes imagina que possa vir a ser, por exemplo, presidente da República; não conseguiria ser eleito para presidir o Clube Pinheiros. Não pode se declarar, ou ser nomeado, Lorde Protetor do Brasil, ou Chefe Vitalício do Poder Moderador, ou Czar do Sul Global; nenhum desses cargos existe. O que há de visível para ele é continuar onde está, e fazendo o que bem entende, até 2043 — ou por mais 19 anos, quando chegará aos 75 e à aposentadoria obrigatória. Para conseguir isso, é necessário que o Brasil continue igual ao que é hoje, imóvel como uma múmia de faraó, com os seus Lulas, e Liras, e Pachecos e sem nenhuma mudança. Fica mais complicado ainda se você é o homem público mais odiado do Brasil.

O ministro Alexandre de Moraes é o aparelho de respirar do presidente, a começar pela garantia de que ele jamais terá de prestar contas perante a Justiça por nada que faça, seja lá o que for – Foto: Jose Cruz/Agência Brasil

Uma pista que pode ser útil para deduzir a que ponto leva essa trilha é a mais recente realização da obra geral de Alexandre de Moraes — a admissão, por parte dele próprio, de que manteve na prisão durante mais de 11 meses, pelo crime de “golpe de Estado”, um morador de rua de Brasília. (Leia a reportagem “A inocência assassinada”, nesta edição.) Pense 30 segundos numa coisa destas: como é possível, em qualquer sistema minimamente racional de Justiça do planeta, acusar um sem-teto de “abolição violenta do Estado Democrático de Direito”? Nem nos tribunais de Idi Amin se tem notícia de algo parecido. É o fundo do poço, tanto para Moraes como para o STF, em matéria de humilhação. O que o mundo civilizado acharia se ficasse sabendo que o Brasil tem um magistrado e uma “suprema corte” que funcionam assim? Mas aí é que está o problema: o mais alto tribunal de Justiça da nação se condenou a operar num sistema movido por delírios contínuos e encadeados. Uma alucinação leva à outra.

O delírio do “morador de rua golpista” é apenas o resultado direto e inevitável do delírio do “Golpe do Estilingue”, que vem do delírio dos “atos antidemocráticos”, que vem do delírio do tribunal que deu a si próprio a autorização de desrespeitar qualquer lei em vigor no Brasil — e assim sucessivamente, de delírio em delírio. Os militantes de esquerda, os intelectuais e as outras classes desligadas do sistema de produção vêm construindo há anos a ficção de que este laboratório do Dr. Frankenstein fabrica democracia. É óbvio que só consegue fabricar as aberrações em série que estão aí. Alexandre de Moraes não é apenas o causador disso, em companhia da maioria dos colegas de STF — em benefício de Lula e com a sua cumplicidade integral. É também o resultado. Chegou a um ponto, agora, em que só consegue agir da maneira como está agindo. Vai ter de engatar o erro de hoje num erro maior amanhã, e em outro maior ainda em seguida — até onde der.

É uma questão de fatos. O ato seguinte ao Golpe do Sem-Teto, como acaba de se ver, é a invenção de um “Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia”, ou CIEDDE (assim mesmo, com um “D” a menos na sopa de letras), a ser comandado, justamente, por Alexandre de Moraes. Porque um país que se apresenta como a democracia mais avançada do mundo precisaria de mais uma repartição pública para defender “a democracia”? Já não chega do jeito que está, com uma polícia eleitoral que proíbe o político mais popular do Brasil de se candidatar até o ano de 2030 — ou que cassa deputados para cumprir um desejo pessoal de vingança do presidente da República? Não: o ministro Moraes acha que o TSE não é suficiente. Esse TSE proíbe dizerem que Lula é a favor do ditador da Venezuela. Opera as urnas eletrônicas que não estão sujeitas a nenhum erro. Conta os votos. Mas o ministro quis, e levou, uma segunda força policial para as eleições.

Só faltou incluir na sigla, além de “enfrentamento”, expressões como “tático-móvel”, “vigilância” e outras da mesma família. Porque não chamar isso, logo de uma vez, de “Centro Nicolás Maduro Para a Defesa da Lisura Eleitoral”? Mas o que querem, como em todas as aberrações que vão se empilhando uma em cima das outras, está na cara de todo o mundo: obrigar o eleitor brasileiro a votar apenas nos candidatos que o complexo TSE-CIEDDE considera “certos”. Isso aí, como tantas outras coisas, pode acabar não servindo para nada — mas o problema, mais do que tudo, está na desqualificação moral da tentativa. O ministro Moraes quer “enfrentar”, segundo diz, a “desinformação”. Mas para combater a “desinformação” ele tem de dizer o que é “desinformação”. Ninguém pode ser obrigado a fazer ou não fazer nada que não esteja escrito na lei — e não existe nenhuma lei que defina o que é “desinformação”. Como fica, então? Fica, mais uma vez, que é Alexandre de Moraes quem vai resolver o que pode e o que não pode. É a força, mais uma vez. Ele não acha que possa haver outra opção.

Alexandre de Moraes acaba de inventar um Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia. Mais uma vez, é ele quem vai resolver o que pode e o que não pode – Foto: Luiz Roberto/STF

(*) J. R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-208/de-delirio-em-delirio/

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