A morte clínica da justiça

O que faz o Brasil viver hoje um dos seus piores momentos de vergonha é a postura passiva dos santuários da sociedade civil diante do crescente desequilíbrio mental da nossa 'suprema corte'

Por J. R. Guzzo (*)

Entra na cabeça de alguém que um ministro da suprema corte de Justiça de uma sociedade civilizada proíba, com papel assinado e tudo o mais, que um cidadão preso por sua ordem receba uns gibis de palavras cruzadas para se distrair um pouco na cadeia? É um espanto, antes de mais nada, que um ministro do Supremo Tribunal Federal, como acontece neste caso, tenha de decidir um negócio de insignificância tão espetacular. Palavras cruzadas? O que o mundo diria, por exemplo, se um justice da Suprema Corte dos Estados Unidos estivesse se metendo oficialmente com joguinhos de caça-palavra? Mas o que realmente desafia a imaginação humana é a ideia do ministro Alexandre de Moraes, o responsável por mais este ato revolucionário no Direito Penal do Brasil e do mundo, de que proibir o acesso dos presos ao passatempo das palavras cruzadas (e do sudoku; ele vetou também o sudoku) possa ser mais um ato de “defesa da democracia”.

É de fato um fenômeno, mas é o que acaba de acontecer, exatamente, com oficiais do Exército Brasileiro que estão presos por suspeita de terem participado do “golpe de Estado” mais notável da história universal. É este mesmo que você já conhece há tanto tempo: o golpe que não foi dado, nem organizado, nem planejado, e do qual o momento de maior ousadia foi a possibilidade, nunca executada, de pedir ao Congresso a aplicação do estado de defesa previsto no artigo 136 da Constituição Federal, logo após as eleições de 2022. Como é da natureza dos absurdos gerar outros absurdos em série, o absurdo do golpe está gerando os absurdos da punição. Chegamos, agora, à proibição das palavras cruzadas e do sudoku para os “golpistas”. Golpista não tem direitos civis, a começar pelo de defesa. Não tem direito a tratamento médico de urgência e morre no pátio da prisão. Não pode receber anistia. Não pode fazer palavras cruzadas.

Ministro Alexandre de Moraes durante sessão plenária – Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

O que mais chama a atenção nesse desvario não é propriamente o fato de que os golpistas jamais deram golpe nenhum — num extremo de alucinação, a Polícia Federal chegou a apresentar estilingues e bolas de gude como as armas do “golpe do 8 de janeiro”. (De novo: não há registro na história universal do uso de estilingues para se tomar o governo.) Não é o fato, patentemente ilegal, de estarem sendo julgados no STF. Não é, nem mesmo, o ministro Moraes; é exatamente coisa desse tipo que se pode esperar dele. O que realmente faz o Brasil viver hoje um dos seus piores momentos de vergonha é a postura passiva, talvez cúmplice, dos santuários da sociedade civil, de quase toda a mídia e de toda a elite “que pensa” diante do crescente desequilíbrio mental da nossa “suprema corte”, como diz Lula. O ministro e o STF estão dizendo que a prova dos nove vale menos que a prova dos dez, ou algo assim — e o Brasil de 2024 engole, em silêncio.

Que nexo faz pagar R$ 900 milhões por ano (isso se der tudo certo até dezembro) para sustentar um Supremo Tribunal Federal que dá a si próprio o direito de decidir sobre palavras cruzadas e jogos de sudoku? É isso a “suprema corte” do Brasil? O pior é que é mesmo — ou dá para achar, honestamente, que não é? Não há como acreditar que a proibição de Alexandre de Moraes possa ajudar em alguma coisa a segurança pública do país, a garantia das “instituições” ou a paz dos demais 200 milhões de cidadãos brasileiros. E a “execução do processo penal”, como eles vivem dizendo — será que é preciso vetar gibis para ser garantida? Os oficiais presos poderiam usar as cruzadas para fugir do Brasil, por exemplo, ou asilar-se na Embaixada da Hungria? Serviriam para intimidar testemunhas, ocultar provas ou prejudicar “as investigações” do “golpe”? Não é nada disso, obviamente. O que é, então? É isso mesmo que você está pensando.

O STF que proíbe os prisioneiros encarcerados nos seus campos de concentração de fazerem palavras cruzadas é o mesmo que deixou um mendigo preso durante 11 meses por “golpe de Estado”. É o mesmo que condenou uma professora aposentada de 71 anos de idade a 14 anos de prisão

O decreto das palavras cruzadas, e outras farinhas do mesmo saco, só é possível em países nos quais a vida pública chegou, como no Brasil de hoje, a um estado de morte clínica em seu senso moral. Aceita-se isso tudo como se aceita um filme de terror, ou os monstros de história de quadrinhos — é só cinema, ou coisa de literatura infanto-juvenil. Mas para quem está sendo condenado a 17 anos de prisão por participar de um quebra-quebra, carrega tornozeleira eletrônica para o resto da vida, ou se vê impedido de ganhar o seu sustento por causa do STF não há nada de inofensivo nessa história. A morte civil é hoje uma realidade para todos os brasileiros que foram declarados inimigos do “Estado democrático” por Alexandre de Moraes — apoiado pela cumplicidade ou pela covardia dos colegas, da imprensa e do arco de impostores que vai da OAB aos militantes de direitos humanos, das classes intelectuais ao sindicato dos bispos.

O STF que proíbe os prisioneiros encarcerados nos seus campos de concentração de fazerem palavras cruzadas é o mesmo que deixou um mendigo preso durante 11 meses por “golpe de Estado”. É o mesmo que condenou uma professora aposentada de 71 anos de idade e com graves problemas de saúde a 14 anos de prisão; se não morrer antes, só vai sair de lá aos 85. Não é outro, senão esse, o tribunal supremo que condenou como “golpistas” um barbeiro, um vendedor ambulante e um motoboy — como se fosse possível, materialmente, um barbeiro, um vendedor ambulante ou um motoboy darem um golpe de Estado. Não se fala nunca, por sinal, que não há um único político, nenhuma pessoa que possa ser descrita como influente, ou “importante”, ou portadora de notável saber em alguma coisa entre os presos ou condenados pelo “golpe” do STF, da esquerda e da mídia. Não há vestígio de um rico. É uma singular exibição prática de ódio ao povo brasileiro.

Segundo Alexandre de Moraes, proibir o acesso dos presos ao passatempo das palavras cruzadas é um ato de “defesa da democracia” – Foto: Shutterstock

Ficarão registrados como uma época de infâmia para a justiça do Brasil estes dias de chumbo em que cidadãos que jamais cometeram delito algum em sua vida, nem mesmo uma infração de trânsito, são condenados à prisão diretamente no tribunal máximo da República — e, portanto, não podem recorrer de suas sentenças a ninguém. É também a época das prisões preventivas sem prazo para terminar, algo que a lei proíbe como violação fundamental dos direitos da pessoa humana. É a época do crime de estar presente ao local do crime — o “crime multitudinário” do STF e dos seus serventes no Ministério Público. É a época em que se prende um cidadão por viajar com o ex-presidente para os Estados Unidos, quando ele provou que estava viajando para Curitiba, onde, aliás, está até hoje — e na cadeia. É a época em que um deputado que pela Constituição jamais poderia ser preso é condenado e não tem direito à progressão da pena.

Não vai ser nunca esquecido, da mesma forma que o STF transformou a Polícia Federal, com a conivência dos presidentes da Câmara e do Senado, numa Gestapo bananeira que serve como esquadra de repressão política para o ministro Moraes e os seus colegas de plenário. Essa polícia foi dispensada pelo STF de obedecer às leis em vigor no Brasil — da mesma forma que os corruptos, para todos os efeitos de ordem prática, foram dispensados de responder na Justiça pelos crimes de que são acusados. Entra nos gabinetes dos deputados e senadores para vasculhar suas gavetas, computadores e celulares. Intima uns e outros a prestarem depoimento por declarações feitas no exercício de seus mandatos. Criou o “flerte com o crime” — e por causa disso detém por quatro horas um jornalista estrangeiro no Aeroporto de Guarulhos. Na mesma linha de ação, criou a “agressão aparente” de Moraes num bate-boca em outro aeroporto internacional — o de Roma.

Nada disso chegaria a você sem a participação direta do Supremo — que, por sinal, continua tratando o caso de Roma como um possível atentado às instituições democráticas. Os vídeos do aeroporto não mostram agressão nenhuma. A própria PF diz que não dá para provar nada; até agora, ficou só no “aparente”. O delito, se um dia fosse provado, seria no máximo de injúria, coisa para juízo de pequenas causas, e olhe lá. Jamais poderia ser investigado pela PF; nenhuma polícia, aliás, investiga suspeita de injúria. Jamais, enfim, poderia estar no STF, e sim numa vara de primeira instância. E se amanhã baterem a carteira do ministro — o caso vai para o “Excelso Pretório”, como eles chamam a si mesmos? Será uma ameaça à democracia? O presidente Lula vai dizer que o acusado é um “animal selvagem”, como já fez? O fato é que essa novela vai completar um ano, o agressor aparente não foi denunciado por nada e o caso continua em aberto no STF.

A realização mais recente do braço policial do STF é a intimação para o cidadão brasileiro Alexandre Kuntz, que vive há dez anos na Inglaterra, depor numa delegacia da PF, “no dia 2 de abril”. Qual é a acusação? Como no caso do Josef K. em O Processo, de Kafka, que vê a polícia bater na sua porta e nunca fica sabendo do que foi acusado, Kuntz não foi informado do crime que teria cometido. Para a sua sorte, ao contrário de Josef K., ele está em segurança na Inglaterra — e fora do alcance do STF. Mas não pode vir ao Brasil, pois há um processo “sigiloso” contra ele, tão sigiloso que nem ele pode saber do que está sendo acusado. Imagine-se, então, quanto ele pode contar com qualquer tipo de proteção legal. O que Kuntz lembra é que em 2022 ele, junto com outros militantes brasileiros de direita na Inglaterra, foi a uma palestra do atual presidente do STF, o ministro Luís Roberto Barroso, na Universidade de Oxford.

Na ocasião, Barroso disse que a democracia no Brasil estava ameaçada por propostas de “contagem manual” dos votos na eleição daquele ano. Uma brasileira que estava ao lado de Kuntz disse que isso era uma mentira — e é mesmo, porque nunca ninguém propôs nada de parecido, em momento nenhum da campanha. O que se pedia era a possibilidade de auditar os votos, o que não tem nada a ver com “contagem manual” de coisa nenhuma. Barroso ouviu, tentou ignorar a observação e não contestou o que todos tinham escutado. Mas eis que hoje, dois anos depois, a PF faz uma intimação por e-mail para Kuntz vir depor; seu crime, pelo que se pode deduzir, é ter estado perto de alguém que contestou em público uma afirmação falsa de um ministro do STF. O rapaz não vai ser assassinado numa pedreira pela polícia, como o infeliz herói de O Processo. Mas o seu caso mostra o tamanho do buraco em que jogaram este país.

Processo secreto, inquérito perpétuo, palavras cruzadas que ameaçam o “Estado de Direito” — é a defesa da democracia no Brasil de 2024.

(*) J. R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-211/a-morte-clinica-da-justica/

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