O veneno do STF

No mundo 'inclusivo', 'consciente' e de outros dinheiros falsos hoje em circulação, você aluga uma fantasia de 'esquerda', monta uma ditadura sem povo e chama isso de 'democracia'

Por J. R. Guzzo (*)

Os ministros do STF montaram no Brasil um tipo de depravação política que parece não ter semelhança com nada do que já foi tentado antes no mundo em matéria de ditadura. Quem sabe eles não estariam, meio sem querer, tentando dar resposta à mais recente demanda das classes que se consideram “progressistas” — essas que raramente têm contato com a ideia geral do trabalho e da produção, mas deram a si próprias o direito de decidir o que todos os outros têm de fazer? A elite mundial do século 21 está descobrindo, chocada, que a pior ameaça para o seu conforto, ou talvez para a sua sobrevivência, é a democracia. Democracias precisam ter eleições livres — e em eleição livre as pessoas querem, cada vez mais, votar nos candidatos da direita. Não é nenhum mistério. A maioria dos eleitores brasileiros simplesmente não quer a vida que a junta de governo STF-Lula, mais todo o seu bioma, está obcecada em lhes impor.

A solução que sempre existiu para isso foi a ditadura baseada na força bruta do Exército e da polícia — é o que fazem Venezuela, Cuba, Rússia e todos os etcs. que Lula descreve como modelos ideais de regime. No Brasil o STF está propondo uma alternativa diferente — a ditadura baseada na eliminação do sistema de Justiça. Foi o que fez nesses últimos anos, por dois motivos fundamentais. O primeiro foi que os ministros se viram diretamente ameaçados pelas investigações sobre corrupção; a coisa vazou dos governos Lula-Dilma e chegou à sua porta. O segundo foi a vitória de Bolsonaro na eleição presidencial de 2018. Por causa do primeiro, mataram a Operação Lava Jato. Por causa do segundo, tiraram Lula da cadeia, entregaram a ele a Presidência da República numa missão do TSE e proibiram o político mais popular do Brasil de disputar eleições até 2030.

Fotografia do Ex- Presidente Bolsonaro
Jair Bolsonaro, o político mais popular do Brasil, está proibido de disputar eleições até 2030 – Foto: Alan Santos/PR

O STF não precisou botar tanque na rua para anular todas as leis em vigor no país, da Constituição ao Código Penal, ou qualquer outro código e, com isso, safar-se dos seus dois pesadelos — a possibilidade da cadeia por corrupção e a realidade de Bolsonaro. Foi descobrindo, logo depois da primeira decisão que tomou em defesa da própria sobrevivência, que ninguém realmente reagiu. Daí experimentou uma segunda, depois uma terceira, e continuou a ver calados os que tinham o poder legal de acabar com isso. É claro que não pararam mais até hoje. Inventou-se uma lei que anula todas as outras: “Decisão da Justiça não se discute, se cumpre” — e a partir daí os 200 milhões de brasileiros passaram a viver numa sociedade desprovida de justiça, de ordem legal e de regras que valem para todos. A lei é aquilo que o STF decide quando “faz maioria”. Pode ser o contrário amanhã, e uma terceira coisa no dia seguinte. O sertão virou mar. O mar virou sertão.

É anarquia jurídica, como o Brasil nunca teve antes — nem nas ditaduras de Getúlio Vargas ou dos militares de 1964. Também não se conhecem similares no resto do mundo: uma ditadura em que os ditadores são 11 pajés, em vez de generais, e a tribo é o conjunto de cidadãos que têm de caçar, pescar e cuidar da roça de mandioca para eles — ou seja, os 200 milhões de boçais que trabalham e pagam imposto e, segundo o ministro Barroso, “não entendem as pautas” do STF. Entendem muitíssimo bem, é claro — o problema é que a maioria não quer nenhuma delas. Isso se resolve, no regime brasileiro de hoje, com a nova forma de governo que os ministros criaram. A Constituição e as leis em vigor são abolidas. No vazio que isso cria, alguém tem de dar as ordens. O único alguém que apareceu até hoje para dar essas ordens foi o STF. Todo mundo está obedecendo; a Polícia Federal vai para cima de quem reclama ou desobedece. Fim de conversa.

Fachada do STF – Foto: SCO/STF

O princípio ativo dessa garrafa de veneno, que o STF entendeu muito bem desde a sua recente descoberta pelos cientistas políticos, é o seguinte: no mundo “inclusivo”, “identitário”, “consciente” e de outros dinheiros falsos hoje em circulação, você aluga uma fantasia de “esquerda”, monta uma ditadura sem povo e chama isso de “democracia”. Pronto: você pode se apresentar como democracia na frente do mundo inteiro. A Venezuela, para ficar no exemplo mais lamentável, faz exatamente assim. É uma ditadura de manual, mas tem uma “suprema corte” que declara perfeitamente legal tudo o que o ditador manda fazer. Então é “democracia”, e não se fala mais nisso. Tem eleição, por exemplo, mas os candidatos da oposição não podem concorrer; o STF local já eliminou três, um depois do outro. Lula diz que a Venezuela tem “democracia até demais”. Não faz nexo, mas é isso que fica valendo para o mundo “inclusivo” etc. Vale tudo — menos a “direita”.

Como Brasil não é a Venezuela, nem pode ser, o STF criou o seu modelo próprio de regime. É isso que está aí. A oposição, as liberdades públicas e os direitos individuais existem num sistema de cotas; são tolerados até certo ponto, e a partir daí a junta STF-Lula não deixa passar. Dá para continuar fazendo isso pelo resto da vida, e sem impor ao Brasil uma ditadura do estilo testado pela experiência, dessas que põem o opositor na cadeia e mandam matar? Não há precedentes — e, de qualquer forma, a questão real não é o que eles estão querendo, e sim o que vão conseguir. Basicamente, para resumir a ópera, os ministros se obrigaram a manter um sistema em que se permitem fazer tudo aquilo que a lei proíbe — e proíbem a população de fazer tudo aquilo que a lei permite. O resultado mais claro, direto e compreensível de tal proposta é um tribunal-governo que age cada vez mais como um Luís XV de escola de samba. Tudo ali é falso.

É esse o modelo de governo que o consórcio STF-Lula tem a oferecer ao Brasil de hoje. Depende do esforço perpétuo para impedir que o eleitor escolha os seus governantes, as suas prioridades e os seus objetivos de vida

É falso, obviamente, um supremo tribunal de Justiça que mantém um mendigo durante 11 meses na cadeia sob a acusação de golpe de Estado, e o obriga, depois de solto, a usar uma tornozeleira eletrônica. Esse mesmo tribunal permite que as mulheres dos ministros sejam advogadas de causas que eles mesmos vão julgar; a lei proíbe isso com todas as letras, mas o STF resolveu que no seu caso essa lei não se aplica. Um ministro que vai julgar o ex-presidente da República diz em público, duas vezes seguidas, que ele é culpado das acusações pelas quais será julgado — antes do julgamento. O mesmo magistrado afirma que não houve tentativa de golpe no quebra-quebra do dia 8 de janeiro de 2023 em Brasília, mas continua condenando os acusados a até 17 anos de prisão, com a maioria dos colegas. Um deputado do governo, casado com a presidente do PT, festeja o sorteio do ministro Flávio Dino para julgar um recurso de Bolsonaro: “Não tem pra onde correr”, diz ele — ou seja, a sentença do STF já foi dada.

Dino e Lula
Flávio Dino recebe os cumprimentos de Lula durante sua cerimônia de posse no STF (22/2/2024) – Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

O tribunal máximo do atual sistema judiciário do Brasil é responsável direto pela morte na prisão de um acusado que precisava, com base em atestados médicos e a pedido do MP, receber tratamento de urgência em hospital; o ministro Alexandre de Moraes negou, repetidamente, a sua saída para internação. A lei manda que os acusados pelo quebra-quebra sejam julgados em primeira instância, e não no STF. Também aí, a lei não vale. Deputados federais são chamados à Polícia Federal para “explicarem” declarações feitas em plenário, e no exercício dos seus mandatos. Sofrem revistas em seus gabinetes; um deles está preso, condenado a nove anos de prisão. A Constituição proíbe, mas há censura. É coisa que não acaba mais, enfim, e só pode ficar pior. Terão, a um momento qualquer no futuro, de se mostrar na frente de todo o mundo civilizado como o tribunal que vai condenar um ex-presidente sem ter nenhuma prova capaz de ser levada a sério numa democracia — só manifestos da polícia e da imprensa. O último é uma obra-prima conjunta. “PF diz que falsificação em cartão de Bolsonaro pode ter elo com tentativa de golpe”, revela a Folha de S.Paulo.

Notícia publicada na Folha de S.Paulo (19/3/2024) | Foto: Reprodução/Folha de S.Paulo

O STF que existe na vida real é esse — não existe outro. A ideia de que possa vir a ter algum apoio fora da sua própria bolha é simplesmente absurda. Tudo fica mais difícil, é claro, quando essa bolha é um governo em processo de naufrágio, sem a menor possibilidade visível de entregar à população qualquer coisa útil. Propõe o tempo todo coisas que a maioria das pessoas não quer — nem os supostos beneficiários querem, como é o caso dos “direitos trabalhistas” (na verdade, os descontos em seus ganhos) que Lula insiste em impor aos que trabalham com aplicativos de entrega em domicílio. Como interessar alguém numa campanha de combate à anistia, em obras da Petrobras para a Odebrecht ou na “ressignificação” da primeira-dama? O que os eleitores teriam a ganhar com a anulação de mais de R$ 15 bilhões em multas que o ministro Dias Toffoli ofereceu às empreiteiras amigas de Lula — essas que confessaram corrupção ativa e devolveram dinheiro público roubado?

É esse o modelo de governo que o consórcio STF-Lula tem a oferecer ao Brasil de hoje. Depende do esforço perpétuo para impedir que o eleitor escolha os seus governantes, as suas prioridades e os seus objetivos de vida — e do apoio dos políticos mais atrasados do país. É um acordo amarrado com barbante. Nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis nos conta que o amor de Marcela por seu herói “durou quinze meses e onze contos de réis”. Talvez não seja muito diferente do Brasil de 2024. O amor do “centrão”, de Arthur Lira e de Rodrigo Pacheco pelo STF e por Lula, que mantém os ministros nas suas cadeiras e o presidente vivendo por aparelhos, dura até o momento em que acharem que é bom para eles — nem cinco minutos mais. Nessa hora, os donos do consórcio vão olhar em torno de si — e ver que todo mundo sumiu.

(*) J. R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-209/o-veneno-do-stf/

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