A sentença já foi dada

Quando se lê o depoimento de Mauro Cid, fica claro que o golpe não foi tentado, não foi preparado e não foi dado. Mas Alexandre de Moraes só espera a hora certa para o STF condenar Bolsonaro

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Por J. R. Guzzo (*)

O processo com o qual o ministro Alexandre de Moraes quer condenar o ex-presidente Jair Bolsonaro por tentativa de “golpe de Estado”, com a assistência do STF, do governo e da maior parte da mídia, pode estar indo muito bem ou muito mal para os acusadores. Está bem se conseguirem, como têm conseguido até agora, manter a posição de acusadores e juízes ao mesmo tempo e levar até o fim o que acabará sendo um linchamento — o primeiro nos 133 anos de história da corte suprema do Brasil. Está indo cada vez pior se tiverem, a um ponto qualquer dessa comédia, de obedecer ao Código Penal e ao restante das leis brasileiras atualmente em vigor. Seu último infortúnio, que na linguagem das seguradoras de navio costuma-se chamar de “avaria grossa”, é que a testemunha da acusação sumiu — justo a testemunha-estrela, em quem jogaram as suas fichas mais pesadas. Pior: a testemunha, que estava solta por ter dito o que a polícia e o STF queriam que ela dissesse, está presa de novo. Revelou que não queria dizer o que disse, e voltou para o xadrez no ato. As “provas” que teria fornecido, e que já eram uma piada, viraram nada.

O fato, que insiste em não mudar, é que a delação do coronel Mauro Cid tem um problema insolúvel desde o começo: não há o que delatar. É o que os americanos chamam de non-starter — o cavalo que não aparece no portão de largada para correr o páreo, ou os planos que não podem ser executados por não terem pé nem cabeça. As afirmações que ele fez, e que o seu advogado sempre insistiu que não eram delação nenhuma contra ninguém, foram apresentadas automaticamente, pela Polícia Federal e pelos jornalistas, como “prova” de que houve golpe, ou “atos preparatórios de golpe”, ou tentativa de golpe. O problema é que quando se lê, palavra por palavra, o que o coronel realmente disse em suas horas e horas de depoimentos, a única coisa clara é que o golpe não foi tentado, não foi preparado e não foi dado. O que há, ou dizem que há, são “minutas golpistas” — um rascunho, sem assinatura de ninguém, considerando a possibilidade de pedir ao Congresso a decretação do “estado de defesa” previsto pela Constituição. Mas, pela lei, nem isso serve mais. O coronel, dias atrás, revelou que foi forçado a dizer o que a PF queria; entre outras pragas do Egito, lhe prometeram cem anos de cadeia se não dissesse.

Mauro Cid
O tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro, durante seu depoimento à CPI do DF (24/8/2023) – Foto: Câmara Legislativa do Distrito Federal

O resultado prático de todo esse poema à violência e à inépcia é mais uma decisão alucinada no processo contra Bolsonaro. O mesmo STF vem anulando, uma por uma, todas as confissões feitas pelos magnatas da corrupção na Operação Lava Jato; diz que foram “pressionados” a confessar e que, portanto, as provas não valem nada. O ministro Gilmar Mendes, inclusive, sustenta que os corruptos confessos, mesmo os que não estavam na prisão, sofreram “torturas” — da modalidade “psicológica”, claro, que é sempre preferível às demais. O coronel Cid, por esse critério, deveria receber uma indenização do ministro Moraes. Mas está preso de novo. Ficou preso quatro meses no ano passado por não falar nada capaz de incriminar o ex-presidente. Fez a delação que estavam querendo e foi solto, em setembro de 2023. Deveria continuar solto, porque não cometeu crime nenhum. Até agora, aliás, a única denúncia oficial contra ele é a de falsificar certificados de vacina, e ninguém pode ficar preso todo esse tempo por causa de vacina — mesmo porque ele nem sequer foi condenado por nada, nem por ninguém. Ficamos assim, então: a “delação” que deveria ser anulada continua valendo, porque é contra Bolsonaro, mas o “delator” volta para a situação em que estava antes de delatar.

Nos comentários que o levaram de novo ao cárcere, Mauro Cid diz que a sentença do “golpe” já está dada; o ministro Moraes só espera a hora mais conveniente, no entender dele mesmo e dos colegas, para o Supremo “formar maioria” e condenar Bolsonaro. Não existe mais lei, disse. A lei é “ele”. Manda prender. Manda soltar. Manda prender outra vez. A prova mais indiscutível de que cada uma dessas coisas é a mais pura e a mais simples verdade é, exatamente, isso que acaba de acontecer com o próprio coronel. É só fazer a seguinte pergunta: “Alguém consegue achar que Alexandre de Moraes, depois de ter feito tudo o que está fazendo, vai sofrer um acesso súbito de legalidade e absolver Bolsonaro?”. A sentença não apenas já foi dada; já transitou em julgado. A última ficção dos jornalistas que hoje trabalham como informantes da polícia e agentes de propaganda do consórcio STF-Lula é dizer que o ministro não quer “se precipitar”. Vai fazer tudo “muito direitinho”, etapa por etapa, sem se afastar “um milímetro” do Código de Processo Penal e da Constituição, para que ninguém possa “alegar” que houve qualquer tipo de parcialidade ou de perseguição na sentença que vai condenar Bolsonaro a sabe lá Deus quantos anos de prisão. (Se falam em “cem anos” para o coronel, imagine-se para o capitão.)

É um drama de circo, é claro. No mundo das realidades o que acontece é precisamente o oposto do que dizem o STF, a mídia estatizada e a neurose esquerdista em geral. Não existe até agora uma única coisa legal, uma só que seja, em todo esse processo — pelo menos segundo o que se entende como legal num tribunal de Justiça de qualquer democracia séria do planeta. As prisões preventivas são ilegais. As provas são secretas — só aparecem na mídia, que repete exatamente o que a polícia entrega para publicação. Os advogados não têm acesso pleno aos autos. Deixar as pessoas presas para ver se elas contam alguma coisa, a “pescaria de provas”, é proibido por lei. Apreender celulares na esperança de encontrar alguma mensagem que possa servir como “indício” é ilegal. Violar o sigilo bancário do sogro do acusado é ilegal — bem como somar várias vezes a mesma importância e espalhar que foram movimentados “R$ 2,5 milhões” na conta. Em suma, todo o inquérito do STF contra os “atos antidemocráticos” é ilegal. Uma hora, quando tiverem de condenar o já condenado, o mundo inteiro vai ficar sabendo que as “provas” da polícia, do STF e da mídia são isso que está aí. É possível, então, que nem o New York Times acredite.

A estratégia, ou a esperança, de Alexandre de Moraes, de Lula, do PT e de Janja, é que a repetição maciça dos disparates que a maior parte da mídia publica sem parar como “provas” acabe criando “um clima” favorável para se considerar que Bolsonaro foi condenado dentro da legalidade — o “tudo direitinho” mencionado acima. Quanto isso vai realmente servir para eles não está claro. A cada dia surge uma novidade, e cada novidade deixa tudo ainda mais confuso do que está. No momento, por exemplo, a Polícia Federal “investiga” (e Moraes pede “explicações em 48 horas” sobre) o crime de dormir duas noites na Embaixada da Hungria em Brasília — delito desconhecido até o momento na legislação penal do Brasil. Bolsonaro ficou lá entre os dias 12 e 14 de fevereiro; os “especialistas” ouvidos sobre o assunto suspeitam que possa ter havido uma “tentativa de asilo”, como houve a “tentativa de golpe”. Não será respondida, como em quase tudo nesta história, uma pergunta básica: por que ele não ficou no asilo, se queria se asilar? Mas saiu, foi à manifestação da Avenida Paulista, anda de cima para baixo pelo país afora há 45 dias. O que a PF está querendo agora? Uma delação premiada do embaixador da Hungria? O sanatório geral está passando.

“Eles é que são os golpistas”, resume o jornalista Fernão Lara Mesquita num vídeo que acaba de divulgar nas suas redes de comunicação. “Fazem o que acusam os outros de fazer.” É bem isso. A última “prova” do golpe, hoje já meio desbotada, são conversas de Bolsonaro com um alto general de exército e um alto brigadeiro do ar logo depois das eleições de 2022. Na ocasião, segundo eles próprios disseram à polícia, discutiu-se a aplicação de “meios jurídicos” para a solicitação ao Congresso do estado de defesa previsto no artigo 136 da Constituição. Agora, um ano e meio depois e de acordo com o que a PF “vazou” para a mídia, ambos afirmam que deixaram claro para Bolsonaro a sua determinação de não se envolver em nenhuma ação ilegal. Como se sabe, não aconteceu nada: nem estado de defesa, nem estado de sítio nem golpe, militar ou de qualquer outro tipo. O que de fato aconteceu, diz Fernão, é que Bolsonaro estava tentando se defender, ele, sim, do golpe que o seu governo sofria naquele momento. No fim de todas as contas, o único golpe que realmente acabou dando certo foi o do consórcio STF-Lula. Os ministros tiraram o atual presidente da cadeia, onde cumpria pena por corrupção passiva e por lavagem de dinheiro, e deram ao TSE a missão de lhe entregar a Presidência da República. Tiveram o que queriam.

No mesmo “projeto de país”, como gostam de dizer, resolveram a sua outra fatura: anularam oficialmente o que o Banco Mundial, e não a “direita fascista”, definiu como o maior assalto já cometido contra um país em toda a história humana. O que mais queriam? Não estava bom assim? Não, não estava. Pelo andar da procissão e por aquilo que têm feito desde então, resolveram que também é indispensável eliminar Bolsonaro da vida política do Brasil, assim como eliminaram todas as possibilidades legais de combater a corrupção neste país. Já tinham decretado que ele não pode disputar eleições até 2030, por ter feito uma reunião pública e legal com embaixadores estrangeiros em Brasília — disse, na ocasião, que não confiava no funcionamento correto das urnas do TSE, como milhões de brasileiros não confiam até hoje. Mas também isso não foi suficiente para acalmar as suas angústias, nem lhes dar o novo regime que tanto querem. Inventaram, então, de processar, condenar e prender o ex-presidente — uma aventura de final incerto e não sabido. Podiam muito bem, hoje, ter apenas os problemas que já têm. Arrumaram um outro.

Tudo bem: Alexandre de Moraes “faz maioria” e o ex-presidente vai para a Papuda. E no dia seguinte — acontece o quê? Nenhum dos problemas reais do Brasil vai diminuir. Nenhum pobre vai ficar menos pobre. A comida não vai ficar mais barata e o salário não vai aumentar

O STF, Lula e o PT estão sozinhos na viagem que decidiram fazer. Há muito tempo já ficou claro que Lula faz um governo sem povo; há anos, simplesmente, ele não pode pôr o pé em nenhuma rua do país que preside, pelo medo-pânico de levar vaia. O povo não está com ele, também e menos ainda, na sua ideia fixa pela prisão de Bolsonaro. É uma certeza que pode ser medida em números. A presidente do PT convocou manifestações de rua em todo o Brasil para exigir a prisão do Grande Inimigo e outros objetivos do mesmo nível de qualidade — depois transformados, já no desespero diante do fracasso inevitável, em “atos pela democracia”. Raras vezes se viu uma ideia tão ruim. Um mês depois de Bolsonaro, justamente ele, ter enchido dez quarteirões inteiros da Avenida Paulista e ruas vizinhas com 650 mil pessoas, a manifestação do PT na maior cidade do país ocupou não mais que uma beirada do modesto Largo de São Francisco. Não foi preciso nem desviar o trânsito. A humilhação mais miserável veio com o cálculo do Poder360 sobre o número exato de presentes: contadas uma a uma, através de um drone, havia 1.347 pessoas para apoiar as “pautas” de Lula. Não é com o apoio popular, evidentemente, que se vai condenar e prender Bolsonaro.

avenida paulista cheia do começo ao fim
Multidões de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro participaram de manifestação em defesa da democracia na Avenida Paulista, em São Paulo (25/2/2024) – Foto: Tauany Cattan/Revista Oeste
O Poder360 fez imagens com drone do ato das esquerdas em São Paulo e contou os presentes um a um: uma média de 1.350 pessoas (23/3/2024) – Foto: Reprodução/Toni Pires/Poder360

É o tipo do problema idiota. Se ganharem o que estão querendo não vão levar o apoio de ninguém, a não ser o deles mesmos; se perderem, vão ficar numa situação pior do que estavam antes de inventar a história toda. Para que isso? O STF, Lula e o PT deram a si próprios a obrigação de colocar Bolsonaro na cadeia, algo que ninguém tinha pedido a eles — e que nem passa perto de qualquer benefício compreensível para a população. Agora está complicado voltar atrás. Tudo bem: Alexandre de Moraes “faz maioria” e o ex-presidente vai para a Papuda. E no dia seguinte — acontece o quê? Nenhum dos problemas reais do Brasil e dos brasileiros vai diminuir de tamanho por causa disso. Nenhum pobre vai ficar menos pobre. A comida não vai ficar mais barata, a fila no SUS não vai ficar menor e o salário não vai aumentar. O Brasil continuará sendo um dos países mais analfabetos do mundo, um dos mais violentos e um dos mais corruptos. Não será possível dizer que Bolsonaro “matou Marielle”. A única diferença é que haverá ainda mais gente com raiva do governo Lula — e achando que Bolsonaro é o novo mártir nacional.

 

 

(*) J. R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-210/a-sentenca-ja-foi-dada/

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