Um homem sem medo

Desde que transformou o Sistema Judiciário do Brasil numa delegacia de polícia que não obedece à lei, Moraes só lida com quem tem medo dele. Mas acabou encontrando Elon Musk

Elon Musk, na Itália (16/12/2023) - Foto: Reuters/Guglielmo Mangiapane

Por J. R. Guzzo (*)

Oministro Alexandre de Moraes, há cinco anos seguidos ditador judicial do Brasil por esforço próprio, pela proteção da força armada e pela cumplicidade dos que preferem servir mais a ele do que à sua integridade pessoal, encontrou enfim pela frente um cachorro grande — e perspicaz. Não está acostumado a isso. Desde que transformou o Sistema Judiciário do Brasil numa delegacia de polícia que não obedece à lei, mas só a ele, não presta contas a nenhuma autoridade legal do país e persegue adversários políticos e eleitorais com cadeia, multas e censura, Moraes só lida com gente que tem medo dele. Mas acabou incomodando Elon Musk, um dos maiores, mais criativos e mais talentosos empresários do mundo de hoje — e Musk não tem o menor medo de Alexandre de Moraes, ou do Supremo inteiro, ou de qualquer tipo de jornalista da Globo. Resultado: acaba de chamar Moraes, perante o mundo inteiro, de ditador, e de provar que ele é um ditador mesmo. O ministro já foi chamado disso umas 500 vezes, e com todas as letras, aqui dentro do Brasil. Mas agora quem está falando é Elon Musk. Quem está ouvindo é o mundo. Faz toda a diferença.

O fato é que Musk não precisa de Moraes; se nunca mais ouvir falar no seu nome, nos seus inquéritos e nas suas neuroses de Lorde Protetor do Brasil e de Lula, não vai sentir falta de nada pelo resto da sua vida. Tem uma fortuna pessoal próxima aos US$ 300 bilhões, construída por ele próprio desde o primeiro centavo, sem receber herança de ninguém e sem presente do Erário. O que fala é ouvido no mundo inteiro — não só porque tem 180 milhões de seguidores na sua conta no X (ex-Twitter), mas porque qualquer chefe de Estado, ministro e executivo de multinacional tem horário livre para ele. Musk não é o morador de rua que Moraes manteve preso durante 11 meses inteiros, nem os advogados a quem ele manda calar a boca. Chateado com o soviete que controla as redes sociais americanas, tempos atrás, ele não ficou reclamando: comprou o Twitter em 2022 por US$ 45 bilhões e abriu a plataforma para a liberdade de expressão. Ninguém achou ruim: Musk ofereceu mais de US$ 500 por ação, e os acionistas correram para vender. Desde então, o X, como a empresa se chama agora, funciona como o espaço de comunicação e de opiniões mais aberto do mundo.

Elon Musk, em suma, é um homem com ideias, sem nenhuma preocupação em fingir nada e com US$ 300 bilhões no bolso — uma combinação perigosa para quem manda no Brasil como ele é hoje. Musk olha para si, olha para Moraes e tem certeza imediata de quem é mais e de quem é menos. É natural para ele, diante dessa constatação, fazer o que na sua opinião está certo — e não o que a democracia do STF, a esquerda e a maioria dos jornalistas acham que o resto da humanidade têm de fazer. Ficam todos chocados, aí, quando veem um homem se comportar como homem, simplesmente porque tem os meios para isso, e acabam perdendo o rumo de casa. Moraes, na verdade, nem conhece gente assim hoje em dia. Acabou se acostumando a ver os presidentes do Senado e da Câmara, generais três estrelas e os advogados da OAB, mais todos os gatos gordos da vida pública e privada, se colocarem de joelhos na sua presença — e acha que todo mundo é igual. Assim fica fácil. O ministro tem, por sinal, uma distinção pouco notada: só põe na cadeia, e condena a até 17 anos de prisão, gente pobre, sem influência nenhuma, sem amigos na primeira classe, sem crachá. É só ver a lista dos condenados como inimigos da democracia. Tem barbeiro, tem índio, tem motoboy; tem até deputado sem mandato, mas magnata, mesmo, não tem nenhum. Aparece, de repente, um Elon Musk. Aí fica difícil.

O resultado desse xeque-mate foi uma resposta neurastênica, cômica e absolutamente tola. Moraes, em mais um episódio de anedota, incluiu Musk como “investigado” por suspeita de “obstrução criminosa da Justiça”

O ministro e o STF se habituaram a duas reações automáticas diante de qualquer crítica sobre a ditadura judicial que impuseram no Brasil, em favor de um presidente da República condenado por corrupção passiva e por lavagem de dinheiro: ignorar o que ouvem ou prender quem fala. Com Musk não dá para ignorar — o mundo inteiro ficou sabendo o que ele disse. Também não dá para prender, nem colocar tornozeleira, nem apreender o seu passaporte ou pedir a sua extradição. O resultado desse xeque-mate foi uma resposta neurastênica, cômica e absolutamente tola. Moraes, em mais um episódio de anedota, incluiu Musk como “investigado” por suspeita de “obstrução criminosa da Justiça” e de “incentivo ao crime” no inquérito que conduz há cinco anos para investigar “milícias digitais”, “desinformação”, fake news e sabe Deus o que mais. Para que isso tudo, se todo mundo sabe que não vai acontecer nada? Os ministros do governo e a mídia que age como seu serviço de propaganda, por sua vez, deram como fato líquido, certo e consumado que Musk cometeu no mínimo um crime de lesa-pátria: desafiou a “soberania do Brasil”, se “intrometeu em assuntos internos” etc. O que disse foi condenado, por unanimidade, como “ameaça” ao STF.

alexandre de O ministro do STF Alexandre de Moraes inseriu o dono do Twitter/X, Elon Musk, no inquérito que apura supostas milícias digitais na internet - 08/04/2024 | Foto: Aloisio Maurício/Estadão Conteúdomoraes
Alexandre de Moraes, ministro do STF, inseriu Elon Musk, dono do Twitter/X, no inquérito que apura supostas milícias digitais na internet (8/4/2024) – Foto: Aloisio Maurício/Estadão Conteúdo

O grande problema disso tudo está nos fatos — como nas outras miragens fabricadas para manter viva a ideia de que o Brasil está numa “luta de vida ou morte para salvar a democracia”, segundo afirmou o ministro Luís Roberto Barroso na sua extravagante declamação sobre o caso. O STF, a imprensa e o PT apresentam como prova dos delitos que teriam sido praticados por Musk as palavras que ele escreveu numa série de postagens sobre o X no Brasil. Mas quando se lê, uma a uma, essas palavras, o que foi mesmo que Musk disse? Disse, no fim de todas as contas, o que os brasileiros sabem há anos: que Moraes censura os usuários do ex-Twitter no Brasil. Pediu a aplicação, para eles, do artigo 5º da Constituição, que garante a liberdade de expressão no país. Não pediu nada para a sua empresa. Não pediu que alguma lei brasileira fosse mudada. Só prometeu abolir as mensagens censuradas e a interdição dos perfis ordenada pelo ministro e afirmou que, se o STF forçar o X a sair do Brasil, com suas multas e outros atos de repressão, tudo bem — ele sai, sem problemas. Vai perder dinheiro, mas diz que prefere manter os seus princípios.

Ninguém, até agora, falou a sério a respeito dessa possível saída. Musk, após as postagens iniciais, deu a entender que não está querendo jogar mais gasolina na fogueira. É melhor, no fundo, que a coisa pare por aí — no caso de uma saída, o Brasil passaria a fazer parte de um clube que inclui o que há de pior no mundo em matéria de liberdade. Ele reúne Coreia do Norte, China, Rússia, Irã e mais do mesmo. A regra é a seguinte: onde não há Twitter, é ditadura. Onde há Twitter, há democracia. O coro de Moraes, naturalmente, diz que Musk é um fascista alienígena e usa a sua plataforma como um instrumento para a divulgação de fake news e a destruição da democracia. Naturalmente, é o contrário.

O que há de errado, ou de falso, em qualquer das afirmações feitas por Musk? É mentira que cidadãos foram proibidos de se manifestar no Twitter/X do Brasil? É pior que isso. Não foram censuradas apenas as postagens já feitas, mas o perfil inteiro dos seus autores — ou seja, Moraes proibiu as pessoas de dizerem o que ainda não tinham dito, e não disseram até hoje. Como falar essas coisas em público, e pedir a aplicação da Constituição, poderia ser uma “ameaça”? As brigadas pró-STF, e os próprios ministros, sustentam que Musk está se negando a cumprir “ordens judiciais”. Que ordens? Nenhuma das decisões que censuraram o X é realmente uma ordem legal, dentro do processo previsto na lei brasileira. As vítimas não tiveram, nem sequer, a assistência plena dos seus advogados. Na verdade, é tudo flagrantemente ilegal. Todo o inquérito perpétuo de Moraes e do STF é ilegal e, como princípio básico de Justiça, todas as medidas tomadas em consequência de uma ação ilegal das autoridades se tornam automaticamente ilegais.

É de se imaginar, ao mesmo tempo, o espanto e as gargalhadas com que os juristas americanos vão receber o “indiciamento” de Musk. Não vão conseguir entender como alguém pode ser investigado por um inquérito perpétuo, ou ser acusado pelo próprio juiz que vai julgar a ofensa — num manifesto que contém frases escritas em letras maiúsculas e pontos de exclamação, como numa dissertação de curso primário. É um desafio, enfim, decifrar o que o ministro Barroso quis dizer em sua bula sobre o tema. O presidente do STF ensinou que, quando alguém discorda de uma decisão judicial, o caminho correto é apelar da sentença, e não se recusar a cumprir o que foi decidido. Apelar para quem? Na Justiça brasileira de hoje, Elon Musk e o resto da espécie humana só podem apelar a Moraes das decisões que foram dadas por Moraes. Em que lugar do mundo isso pode ser considerado normal? É essa a democracia que está sendo “ameaçada” pelo “bilionário estrangeiro”. Ainda bem que ele é bilionário, estrangeiro e pode viver num país sujeito à lei.

(*) J.R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-212/um-homem-sem-medo/

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