De volta ao século 15

A questão não é regular a internet no futuro. É aplicar a lei que existe no presente. Se o sistema judicial falha nessa tarefa, a culpa não é da tecnologia, nem da liberdade, nem de Elon Musk

Foto: Revista Oeste/Midjourney

Por J. R. Guzzo (*)

O ministro Alexandre de Moraes disse há pouco que na virada deste século não havia redes sociais, e por isso a vida era melhor para todos. “Éramos felizes e não sabíamos”, lamentou ele diante do presidente do Senado e de sua aprovação automática. Não chamou a atenção de ninguém, no estado de anestesia em que o Brasil vive atualmente, a pura e simples enormidade que o ministro acaba de dizer. Foi uma proclamação pública de inconformismo contra o progresso geral da humanidade e a favor da ignorância. É um manifesto exigindo que as descobertas do espírito humano sejam submetidas à aprovação da autoridade pública. É a obsessão cada vez mais neurótica para manter o conhecimento sob o controle do Estado e da polícia. É a hostilidade aberta à tecnologia — e, sobretudo, às franquias que o avanço tecnológico oferece ao pensamento livre.

O ministro e os seus defensores negam tudo isso e sustentam que estão apenas querendo proibir o “mau uso” da internet. É como se estivessem querendo proibir o mau uso da álgebra. O STF pode passar o resto da vida tentando garantir que o estudo das relações entre os números não gere fake numbers, não seja uma “terra sem lei” e não ameace a democracia. Não vai conseguir nada. A evolução da ciência e da tecnologia, muito simplesmente, trafegam num plano que não está sob o controle do STF. Alexandre de Moraes não aceita isso — admite, em teoria, que o avanço científico e tecnológico é positivo, mas a utilização dos seus frutos tem de depender de licença da autoridade superior. O resultado é que deram a si próprios o direito de dizer ao cidadão: “Você só pode pensar até aqui”. É óbvio que o uso de qualquer avanço da ciência tem de ser limitado pela lei — até o uso da roda foi regulamentado. Mas não é isso o que estão querendo.

A evolução da ciência e da tecnologia, muito simplesmente, trafegam num plano que não está sob o controle do STF. Alexandre de Moraes não aceita isso – Foto: Lula Marques/Agência Brasil

O que estão querendo, isso, sim, é reprimir o direito natural do ser humano a se beneficiar das conquistas trazidas pelo progresso. A livre expressão nas redes sociais, de fato, já obedece há muito tempo a regras e a restrições que protegem os direitos do cidadão contra todo tipo de dano que possa ser causado pelo que dizem os outros. Na verdade, há uma bateria legal completa que responsabiliza dos pontos de vista criminal, civil e financeiro qualquer coisa que possa ser escrita ou falada em público. O resultado prático é que não existe rigorosamente nada que possa ser dito nas redes sociais, ou em qualquer lugar, e não esteja sujeito à punição por parte da Justiça brasileira — do insulto pessoal à pregação do racismo. A questão não é regular a internet no futuro. É aplicar a lei que existe no presente. Se o sistema judicial falha nessa tarefa, a culpa não é da tecnologia, nem da liberdade, nem de Elon Musk.

O fato concreto é o seguinte: quem quer regular as redes sociais em nome do bem não quer justiça, nem está interessado na verdade. Quer apenas o poder de proibir a publicação de tudo aquilo que não quer que seja publicado. É uma tara que acompanha a humanidade há pelo menos 600 anos — desde que Gutenberg inventou a máquina de imprimir no século 15 e mudou para sempre os destinos do homem. Tornou-se possível, prático e inevitável, a partir dali, fazer com que qualquer tipo de pensamento pudesse circular entre todos os que soubessem ler — então uma minoria, mas uma minoria que deixava em estado de pânico o rei, a Igreja Católica e os ricos. Eles detinham o monopólio do conhecimento e sabiam que o acesso de mais gente ao mundo das ideias era uma sentença de morte, no longo prazo, para a sua ditadura — bastava que as pessoas fossem aprendendo a ler. Era um perigo; a primeira reação dos poderosos foi criar a censura.

As redes sociais, hoje, são a prensa de Gutenberg multiplicada ao infinito. Quem sabe ler não é mais a minoria; são quase todos, e eles contam com a internet. Pela primeira vez desde a invenção da escrita, praticamente toda a população do planeta, ou 8 bilhões de seres humanos, pode ler tudo o que é publicado — e, muito pior ainda, pode escrever tudo o que pensa. É um pesadelo para Alexandre de Moraes, o STF que se pendura nele e a esquerda mundial. Manifestação de pensamento, para todos, é algo que deve ficar encarcerado dentro dos “veículos de comunicação”, onde é possível, ou muito mais fácil, fazer o que a Igreja e a polícia faziam com os livros. Imprensa e jornalistas de aluguel, por razões financeiras ou ideológicas, podem ser controlados. De mais a mais, toda a mídia é cada vez menos lida, vista ou ouvida pelo público em geral; tanto faz, a rigor, o que diz ou não diz. A internet é uma outra conversa.

As redes sociais, hoje, são a prensa de Gutenberg multiplicada ao infinito – Foto: Revista Oeste/Midjourney

Alexandre de Moraes, quando fala de redes sociais, não está olhando para o futuro. Está querendo voltar ao século 15, quando o papa, o czar da Rússia e os gatos gordos que não tinham conexões com os sistemas de produção eram felizes e não sabiam. Não foi possível, na ocasião, acabar com a imprensa, como não é possível, hoje, acabar com a internet. A solução da época foi criminalizar o conteúdo dos livros — e mandar os acusados de fake news, de ideias desordeiras e de textos não aprovados para o tribunal na Inquisição ou para um cárcere na prisão da Bastilha, sem possibilidade de recurso à instância superior. A solução proposta hoje pela militância da “regulamentação” das redes é a censura, os inquéritos perpétuos do STF e a penitenciária da Papuda. Não está claro para onde isso vai. A internet é um produto da tecnologia, e a tecnologia só pode ser detida pela ação das ditaduras.

O grande mal do mundo, diziam os ditadores de outros séculos, era a má utilização do saber. O grande mal do século 21, diz o ministro Moraes, é a má utilização da internet

O propósito fundamental, de qualquer forma, é expulsar o maior número de pessoas possível dos territórios onde o conhecimento circula — e banir as massas para o campo de concentração mental em que não há ideias próprias, nem opiniões, nem pensamentos não autorizados pelo Estado. É a atitude de sempre para os que têm horror às maiorias. Antes de Gutenberg as instituições exigiam que a Bíblia fosse publicada apenas em latim — se saísse em inglês, em francês, em português ou em qualquer língua entendida pela população, havia o risco de o homem comum ficar sabendo o que estava realmente escrito lá e fazer juízos pessoais a respeito. Era proibido falar mal do senhor feudal, reunir-se fora da missa ou reclamar da autoridade. Era um crime, em suma, pensar — e, mais ainda, dizer em público o que se pensava. Qual é a diferença real entre tudo isso e a censura disfarçada em “colocar ordem” nas redes sociais?

O grande mal do mundo, diziam os ditadores de outros séculos, era a má utilização do saber. O grande mal do século 21, diz o ministro Moraes, é a má utilização da internet — ele já disse, aliás, que o Brasil ganharia uma explosão de produtividade se não existisse o telefone celular. Sua ideia para eliminar essa calamidade e nos devolver a felicidade perdida é censurar postagens, proibir cidadãos de escreverem nas redes sociais, dar multas de R$ 100 mil por hora, bloquear contas bancárias, indiciar Elon Musk em inquérito. Nada disso, é claro, respeita o processo legal — nem poderia respeitar, porque é tudo rigorosamente contra as leis em vigor no Brasil. A censura, para começar, é ilegal. Está proibida pelo artigo 5º da Constituição, e o que o ministro faz é censura direto na veia. Os conteúdos suprimidos, diz a esquerda, atentavam “contra a democracia”, e isso é proibido. Mas quem decidiu, dentro de um mínimo de legalidade, que atentavam contra a democracia? E como poderiam ser contra a democracia coisas que nem foram publicadas — como estabelece a censura prévia?

O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, revelou há pouco, repetindo uma convicção pública de Alexandre de Moraes e da Polícia Federal, que existiria no momento uma “articulação mundial” da “extrema direita” em torno das redes sociais. Não se sabe exatamente para que, nem quem está conspirando, mas, pelo tom de Barroso, coisa boa com certeza não é. Sua última teoria, por sinal, reduz o fenômeno histórico da internet à aplicação de um “modelo de negócio”. Ou seja, não aconteceu nada com o mundo — tudo se resume a uma invenção capitalista estrangeira para ganhar dinheiro. Não é só Barroso. A maior parte da imprensa brasileira e dos jornalistas que trabalham nela é plenamente a favor da censura, que chama, como o STF e o governo Lula, de “controle social da mídia”. Acham que as redes sociais são uma cena de crime. Que estão “infestadas” de “bolsonaristas”, e têm de ser postas sob o controle de um comissariado que vai acabar com as “notícias falsas”.

O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, diz que existiria no momento uma “articulação mundial” da “extrema direita” em torno das redes sociais – Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

O que acontece na vida real é exatamente o contrário. A conspiração mundial que existe, na verdade, é para reprimir a liberdade de expressão. Na Austrália, como no Brasil, Musk e o seu X estão sendo perseguidos por um “eSafety Commissioner” do governo; também lá as autoridades censuram o que a plataforma publica. No Canadá, o “Online News Act” tirou a Meta do noticiário. Nos Estados Unidos, a presidente da National Public Radio do governo, Katherine Maher, anunciou que o combate à “desinformação” é sua prioridade — e que o grande obstáculo que está encontrando nessa missão é “a Primeira Emenda da Constituição” americana. Ou seja: uma das maiores conquistas da civilização humana, o mandamento constitucional que estabeleceu as liberdades de opinião, de religião e de reunião nos Estados Unidos, se transformou hoje num “problema”. O STF, de fato, não está sozinho.

(*) J. R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-214/de-volta-ao-seculo-15/

DEIXE SEU COMENTÁRIO

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.