Publicar Camões seria antidemocrático no Brasil de hoje

A Polícia Federal iniciaria 'busca e apreensão' dos livros? O Supremo aplicaria multa de R$ 100 milhões por dia?

Luis de Camões é um dos maiores poetas da língua portuguesa | Foto: Reprodução/Estante Virtual

Por J. R. Guzzo (*)

Completam-se 50 anos, hoje, desde que O Estado de S.Paulo, num gesto de coragem que se tornaria parte da história mundial da liberdade de imprensa, passou a publicar versos dos Lusíadas nos espaços deixados em branco pelos artigos que a censura do regime militar obrigava o jornal a cortar. Era proibido, pelos que então detinham a força armada, dizer que havia censura — eles censuravam, mas queriam manter de pé a fantasia de que não havia censura no Brasil. Também não era permitido deixar espaços em branco, porque ficaria na cara que estava acontecendo alguma coisa errada com o jornal. O Estado, que vivia submetido à censura prévia desde agosto de 1972, com a presença diária de censores na redação, decidiu então publicar os versos de Camões no lugar do material que havia sido censurado. Os leitores logo perceberam que o jornal estava sob censura — na verdade, o país inteiro ficou sabendo. Ao todo, 655 trechos apareceram para substituir o que a ditadura cortava. A luta do Estado em favor do direito de expressão tornou-se conhecida através do mundo. A censura foi suspensa pelo governo no começo de 1975; no ano anterior, o diretor Júlio de Mesquita Neto havia recebido a “Pena de Ouro” da Federação Internacional dos Editores de Jornal.

Estado de S. Paulo ensinou, 50 anos atrás, que não pode existir democracia, nem o direito do cidadão se expressar livremente, sem que haja liberdade de imprensa. É o que está na Constituição. É o que a moral, a ética e a decência esperam de uma sociedade civilizada. Mas é, ao mesmo tempo, uma ideia cada vez mais hostilizada no Brasil de hoje. Tornou-se moda, sobretudo entre as milícias mais iradas na defesa do “Estado Democrático de Direito”, agredir a liberdade de expressão. A ferramenta que usam para fazer isso é repetir, a cada cinco minutos, que “não pode haver liberdade absoluta”, e que “a sociedade” tem o direito de se defender contra “abusos”. É falso. Toda essa conversa tem como único objetivo reduzir ou suprimir a liberdade de expressão no Brasil. Ela jamais foi absoluta: é perfeitamente limitada, com sanções penais, pelas leis já em vigor no país. Quando dizem que há “abusos”, é porque querem calar a sua boca.

Não está claro, no Brasil de Lula, de Flávio Dino e de Alexandre de Moraes, se O Estado de S. Paulo seria autorizado hoje a publicar versos dos Lusíadas. Poderia ser um “ato antidemocrático”. A Polícia Federal poderia fazer “busca e apreensão” dos livros de Camões. O STF poderia impor uma multa de R$ 100 milhões a cada dia que os versos fossem publicados. Quem diria, não é? Essa vida é mesmo cheia de surpresas.

(J.R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 2 de agosto de 2023)

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