O rio que eu amo é um espelho da vida

Lizon Binda*

O nosso majestoso rio segue espalhando suas águas límpidas e cheias de vida ao longo das várzeas e beiradeando a terra firme. Depois de milhares de anos, entre cheias e vazantes, esculpiu nas barrancas as mais belas artes indefiníveis. Eterna fonte dos grandes mestres, místicos e poetas. Vislumbra o conquistador, acalenta o espírito do barranqueiro e valoriza o patrimônio amazônida, seduzindo os olhos do mundo.

Da força de suas águas tônicas, espargindo nutrientes, alimenta raízes e vidas, centelhas de belezas presenteando o multicolorido da fauna e da flora com muito mais harmonia e, quando o rei Sol as abraçou, transportou-as aos céus alcançando a magnitude suprema e derramando lágrimas cósmicas em todos os recantos do mundo, pateteando o planeta Terra com o verde que amamos.

As centenas de rios da Amazôniativeramseu nome esculpido no fogo, que, soprado pelas ventanias, assegurou um lugarzinho no céu e no palácio dos anjos, promovendo a bênção de todos os rios e os mares. No passar das nuvens, estendeu a mão a tantos povos e esculpiulindos afluentes. Esse é o meu amado rio Amazonas.

O nosso rio é brilhante, portador de um berço esplêndido, o qual singrou a sagrada floresta amazônica assistindo a toda a espécie vivente; e, para que jamais crescesse a erva daninha nos campos, cravou nos solos os seus centilhões de veias tonificantes, que, desde asprofundezas, o seu coração bombeia, além de abastecer milhões de almas ribeirinhas que produzem riquezas para o Amazonas, para o Brasil e o mundo.

De suas nascentes, mananciais de águas abençoadas percorrem comunidades longínquas fertilizando cabeceiras, riachos, serras, montes, planaltos, planícies, verdes campos e belos jardins. Da força de suas cachoeiras fez surgir os grandes furos e belíssimos paranás, dando passagem ao anônimo agricultor dos distantes rincões da floresta verdejante. São as riquezas que consolidam um espaço, distribuindo alimentos indispensáveis à cadeia da vida.

Ao serpentear ilhas e exuberantes lagos, flui altaneiro entre os largos e os estreitos igarapés; e são-nos bem estreitos, com menos que dois metros de largura, que fico perplexo e surpreso com tantas espécies nadando faceiramente a contemplar a vida nas águas refrescantes… Verdadeira maravilha!

O tracajá perde o domínio, e a correnteza o arremessa nas encostas do barro tabatinga. Observa-se, entre a carapaça e seus braços, a cinta de gordura empapuçada, enquanto o tamuatá se esforça ao máximo para adentrar o casulo, e a curimatã não mede esforços, dando mais velocidade às suas nadadeiras, fazendo o curso ao contrário até alcançar o berçário multiplicador e distribuidor de vidas.

É a potente força da natureza que toma conta de cada milímetro das extensas margens do longo furo, conduzindo bilhões de nutrientes e alimentando uma teia de vida submersa no seu todo.

Encorpado pelas forças latentes daquele mundo, não me dou conta de que estou atolado até os tornozelos. As solas dos sapatos de borracha registram uma temperatura morno-gelada, enquanto, por entre ramos da vegetação, veem-se gotículas de águas que escorrem em lágrimas pelo canal da oblíqua folha verde-musgo do capim bico-de-pato.

As águas purificadas revolvem a moldura da porta do potente acari-bodó, comprimindo-o contra as paredes de lodo, anunciando a hora de expelir ovas róseo-avermelhadas nas janelas disformes, esculpidas pelas forças das correntezas; é nesse instante que, em cadência, as boas novas se fazem presentes nos diminutos filetes de águas mornas. É a vida autossustentável que preenche lacunas de possíveis caças predatórias.

As formigas iniciam imediatamente a construção de uma ponte sobre as águas na tentativa de alcançá-las, mas quase tudo em vão: as lâminas de água dividem-nas, afogando os sonhos destruidores e arremessando-as às encostas da rocha-ferrugem, que as recebem para a construção de um novo lar.

O maçarico pousa suas finíssimas pernas por sobre um tronco deitado e inicia o balancear da cabeça no afã de arriscar um petisco, mas isso é difícil, pois os sons inaudíveis de algumas espécies protetoras afastam os caranguejos, que se abraçam – nas lascas do velho Louro Inamuy – como podem, na tentativa de filar a meiga ave.

O nosso rio dá o comando da vida; desse modo, arrisco-me a, pelo menos, sentir as suas forças por entre as pernas, apoiado num grosso ramo – ledo engano! –, e lá se vai o garoto rio abaixo. Um aviso para nunca mais voltar. Afinal, eu era um mero intruso.

As pernas ficaram em frangalhos de tantas bordoadas por entre pedras, galhos, mucururus e peixes tantos; eu aproveito e faço juras de que, por capricho, nunca mais entro no canal da vida. Depois de arremessado e quase sem fôlego na boca do caldeirão de águas, resolvo retornar para continuar assistindo à dança aquática na teia da vida.

Agora, subindo pela margem esquerda, é que passo a ter a real noção do perigo; é quando vejo as longas bolsas abertas – pequenas cavernas –, abarrotadas de cobras e lagartos; todos me olhando serenamente e esperando o descuido certo para darem o salto mortal.

Nos beiços dos grandes portais, arraias de todos os tipos estão tomando conta de suas entradas. Alguns jacarés descansam em sono profundo, enquanto outros estão de guarda. Os ninhos de arirambas e de gaivotas estão intactos, emoldurados por centenas de dedos e de unhas cravadas em toda a ribanceira; com certeza, é a única fronteira mais respeitada do planeta Terra, visto que houve tentativa de invasão somente pelo ar e jamais pelo solo.

No baixio, há uma bifurcação com uma pequena lagoa de águas represadas onde uns casais de piabas estão enamorando. Não sei quem é o rei conquistador. Tudo a que assisto é um gordinho nadador tomando distância e partindo em velocidade ao encontro da amada e depois lhe tasca dois beijos de uma só vez, o que ela prontamente replica. Maravilha!

O transparente camarão está mostrando o diminuto dorso, dizendo assim que se faz presente, enquanto a garça morena elege a primeira refeição do dia. E as margens da tabatinga começam a ser decoradas com centenas de escamas prateadas como pontos luminosos que se fundem com os filetes de raio do rei Sol.

O socó, guloso, está empanturrado e não para de pescar pequenos peixinhos, quando de repente desce um cardume de jaraquis, acabando com os pontuais banquetes; despontando dos fundos da boca do riacho, vem escalando os degraus um cardume de pescadas e douradas que saltitam sem parar.

A cada avanço, abrem-se alas para os lindos filhotes de tilápias, que em simetria nadam num zigue-zague de uma margem a outra, formatando o horizontal palco de águas no grande teatro das espécies. Um verdadeiro show da vida.

O Sol minuto a minuto se torna mais escaldante; é quando me dou conta de que a cinta do meu velho chapéu panamá está encharcada, e a camisa índigo blue foi tomada por dezenas de carrapichos; a calça está muito mais quente; os sapatos estão alagados pelos suores de tanta curiosidade.

Ao levantar a vista, observo o lenço branco no horizonte que baila pela soprante brisa do meu amado rio. Está me chamando. Não é um adeus; é a flâmula de um coração fraternal e bondoso convidando para compartilharmos mais um lindo dia de memoráveis felicidades. Esse é o rio Amazonas… Um Espelho da Vida!

O rio que eu amo é um espelho da vida!

Pensemos nisso!

Todos os Direitos Reservados.

ISBN 978-86-5-912406-1-6

*é escritor.

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