O flautista do Encontro das Águas

Lizon Binda é escritor.

David morava nas adjacências do Lago do Mutuca, no município de Careiro da Várzea, terras férteis e dotadas de muitos recursos naturais. Com destaque à piscicultura, pecuária, madeiras nobres, breu, castanha-do-brasil, tucumãs, açaí, cupuaçu,numa rica região a ser explorada pela indústria do turismo por tempo incontável.

Desde que veio ao mundo, dada a sua elevada sensibilidade auditiva, ouvia com frequência os sons incessantes e envolventes das águas e da floresta. A intensidade e aleveza dos sons e a energia benfeitora vindas das águas e da selva foram tão comoventes em sua vidaque lustrar a velha vitrola “Philips”, pé de palito, dos avôs, tornava-se uma paixão estonteante e aprazível.

Sempre presenteno meio que o cercava, cresceu fazendo companhia aos familiares e aos vizinhos. Das brincadeiras infantis, dificilmente participava com as demais crianças de sua idade: ou estava no roçado ajudando na coivara os pais, ou se encontrava às margens de uma gruta viajando nos sons produzidos pelas águas que passavam silentes por entre árvores, flores, bromélias, pedras e folhas.

Sumir na adolescência era uma constante. Subitamente desaparecia sem ser notado. Esquivava-se dos familiares, igual a uma marreca para escapulir de uma arapuca, causa de constantes apreensões por parte de toda a vizinhança. Tinha por hábito andar de calção, camiseta branca e boné azul-celeste, que eram suas companhias inseparáveis, e não largava a flauta de taboca que ele mesmo confeccionou.

A paixão pelos sons das águase da floresta era tanta que por vezes anulava temporariamente a referência de valores da comunidade. Os primeiros sons musicais que saíram com maestria de sua flauta foram do Cântico Sagrado de Moisés, conforme registro em Êxodo 15:21:“E Miriam respondeu-lhes: ’Cantai ao Eterno, que gloriosamente Se enalteceu; cavalo e cavaleiro jogou no mar,versículo musicado por ele, que se tornou um verdadeiro hino, o favorito de sua legião de fãs e admiradores. E tudo isso sem jamais ter estudado uma só nota musical! Logo o flautista da floresta e das águas ganhou fama e notoriedade e veio a influenciar centenas de comunitários na Comunidade Novo Céu,com a sua flauta.

Desse modo, a cada dia, crescia cada vez mais a sua legião de fãs, que voluntariamente levaram aos píncaros da glória o nome de David por toda a região, fazendo que, por alguns períodos, aparecessem alguns visitantes de outras cidades e comunidades circunvizinhas, oportunidadeem que o flautista das águas, em vez de interagir, de súbito sumia dentro da selva ou se deslocava ao Encontro das Águas para possivelmente recarregar suas partituras inspiradoras.

Quando estava recluso em seu paraíso no Encontro das Águas, sua mente perscrutava a vastidão da universalidade dos sons secretos das correntes e do abraço das águas do rio Negro e Solimões. Com intuição refinada, decifrava os sons das nascentes que borbulham entre as pedras da Ponta das Lajespara enlevo de sua alma; era a inspiração manifestando-se em sons encantados oriundos de uma fonte criadora que escrevianotas musicais nas bolhas de águas e nas folhas vistosas de árvores centenárias que bailavam ao vento que soprava, em partituras para eternas recordações.

Quanto mais escalava a barranca do platô do Encontro das Águas, muito mais era imerso nos sons cósmicos profundos. Em interação, revigoravam-se flautista e natureza, que se fundiam reproduzindo os mais belos sons cifrados de enlevos e luzes das águas e doamor.

Ao som de sua flauta, a pureza sonora das encostas da floresta se apresentava bailando feixes de cipós; e desciam águas de alegrias que traduziam a linguagem dos anjos dosrios e florestas que reverberavam sons nos furos tocantes da flauta, agora aquecida pelos sopros entoados que iam beijar as pontas de seus dedos. Notas musicais e sons deslumbrantes saíam ao encontro de seus lábios invadindo todo o seu corpo. Sentia-se tomado pelos sons magistrais da exuberante mata virgem que emoldurava o Encontro das Águas.

Por vezes, puxava a flauta de taboca e acompanhava os mais extasiantes sons encantados e inaudíveis a qualquer humano. Em fusão, flautista e sons florestais se reencontravam no maior recital dos reinos vegetal, mineral e animal.

Nos experimentos musicados, David percebeu a energia sonora em cores índigo “blue” e lilás que energizavam cada célula de seu corpo. Naqueles momentos, folhas em verde-musgo entoavam notas secretas, fazendo vibrarem milhões de elementos viventes, adormecendo-lhe a coluna até chegar aos pés.

Imerso na sinfonia cósmica do Encontro das Águas, era conduzido a uma bela lagoa no planalto do Mindu, onde lhe era mostrado pela primeira vez o seu belo rosto refletido no espelho dos filetes de centenas de nascentes que descem fotografando ínfimas partes secretas de todo o seu ser e abraçam as cinco bacias hidrográficas do entorno do esplêndido espelho das águas do rio Negro e Solimões.

Tendo vivenciado experiências fantásticas que o Encontro das Águas e a floresta lhe presentearam, manteve guardado o tesouro musical no secreto de seu coração; e não se permitiu passar os experimentos aos amigos da pacata e ordeira Comunidade Novo Céu, dado o seu aprendizado rumo aoinício de sua evolução espiritual.

Por alguns anos, tentou sobreviver nas adjacências, fazendo pequenos mandados de conhecidos. Muitos comunitários o tinham em alta conta, eram apaixonados por seu trabalho e ficavam a implorar-lhe uma simples apresentação dos sons mágicos que perfumam a alma de todo ser vivente.

Certo dia, às quatro da tarde, apresentou-se com a sua reluzente flauta debaixo de uma mangueira, quando a intuição lhe avisou que não estava presente o seu fã número um. Subitamente parou de tocar, se dirigiu até a casinha e encontrou o avô em sono eterno, sentado numa cadeira de embalo, com um sorriso nos lábios. Ficou muito feliz, pois o avô chegou ao paraíso. Cobriu-lhe o rosto com o chapéu de palhae se despediu ao som de sua flauta mágica entoando os Salmos 28, 34, 90 a 106;111,112, 119 a 138; 145 a 150, pois um justo se dirigia ao palácio celestial.

Um dia, David despertou cedo, passou na escola e durante um bom período ficou tocando para as crianças. Ao término, prometeu entregar presentes e fazer mais “shows”, o que criou grande expectativa junto a dezenas de colegas. Alegre e distribuindo sorrisos,deu um abraço caloroso em todos e saiu caminhando rumo ao estreito e longo caminho,rumo ao Encontro das Águas, deixando nos que ficaram para trás eternas lembranças.

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