Na Terra das Ykamiabas

Por Lison Binda (*)

Segundo os registros históricos, foi em junho de 1541 que se deu o embate entre as Ykamiabas e a expedição de Francisco de Orellana, na foz do rio Nhamundá, oportunidade em que o cronista frei Marques de Carvajal habilmente produziu uma peça surreal desfocada da realidade para justificar o insucesso da investida, e a corte portuguesa nela acreditou vendendo-a ao mundo. Dadas algumas semelhanças físicas, o historiador associou as guerreiras Ykamiabas às ­amazonas da Capadócia, na Ásia Menor. Por lapso de avaliação, esqueceu-se de mensurar a dimensão que o fato, décadas depois, viria a adquirir, na medida em que o episódio levou a transformá-las em heroínas, e logo viriam a emprestar o famoso nome ao maior rio do mundo, o rio Amazonas.

Desse modo, entrou para a história o notável feito da honrosa posição tomada por nossas ancestrais em defesa da vasta região. Pagaram com a vida para assegurar o galardão libertário que abriu caminhos para as gerações seguintes explorarem uma imensidão territorial no mundo amazônico, cujo pioneirismo se deve às várias nações indígenas, aos desbravadores, com destaque aos lusitanos, que, no fronte, deram inicio à implantação de marcos delimitativos na vasta floresta que, mais tarde, veio a se constituir no maior estado da federação, o Amazonas, com dimensões superiores a muitos países.

No grande processo de expansão territorial amazônida, o nosso irmão caboclo sempre esteve à frente, no flanco, na ponta; dificilmente na retaguarda; e encarregou-se de ocupar a Região fazendo-se presente nos mais importantes limites fronteiriços. Talvez nada disso se teria transformado em realidade não fosse a sua laboriosa determinação, o seu dinamismo e a sua coragem, haja vista que, galhardamente, enfrentaram intempéries, moléstias, frio, mesmo alocados nas barrancas do rio Amazonas e em seus afluentes, sem o mínimo de estrutura material ou financeira, norteados pela missão única de assegurar um quinhão de terras em nome de capitães, coronéis, aventureiros a serviço de reis e de rainhas.

Naqueles tempos, partiram selva adentro para o tudo ou o nada. Fazia-se valer a lei da sobrevivência sob pena da autopromoção ao infortúnio. A maioria deles sobressaiu-se. Mesmo alfinetados no âmago do peito pelos numerosos desafios, encontraram forças nos recônditos do espírito e nos mais secretos sonhos construídos em suas localidades de origem, principalmente os oriundos do sertão nordestino, quando foram arrancados à força ou em nome das falsas promessas de um eldorado promissor vendido pelos exploradores de então, em nome do rei de Portugal.

Foi nesse ambiente desafiador que germinou a portentosa coragem envelopada no sangue caboclo que percorria suas veias; e, paulatinamente, foram-se constituindo num dos povos mais destemidos de todas as Américas. Trata-se do nosso caboclo, que, como poucos, domina com mestria os embates da vida, num ambiente de peculiaridades únicas. Dada a sua tenacidade e a influência do ambiente aprazível da grande floresta, sabe como ninguém a hora de parar e de ir em frente sem comprometer os louros que um dia conquistou. Conhece como poucos a importância de ter somente o necessário e de se moldar um ser mais humano, de forma que não incorra em procedimentos que danifiquem a área de sua moradia nas cercanias das florestas exuberantes da Amazônia.

Seu modo de vida, para muitos, é inaceitável, porém todos que fazem parte de seu círculo de amizades veem como o mais correto; e é isso para eles o que mais importa, para fazer a grande diferença entre levar a vida e ser levado pela vida. Dotados de positiva argúcia, nos últimos séculos, os caboclos dominaram a gloriosa virtude da paciência. Dispensaram a atenção necessária ao seu habitat e muito aprenderam com os animais, os pássaros, os peixes e as caças. Contemplaram e conheceram a beleza das flores nativas e assistiram a ela; descobriram o bem que os sons das aves fazem para a alma; e, como nenhum povo, pacientemente foram, de modo artesanal, confeccionando suas armas de defesa, de ataque e de sobrevivência.

Reflexivos e sábios, aprimoraram suas embarcações, com destaque à canoa, aos remos, às armas de pesca, às redes e aos utensílios domésticos. Inteligentes, souberam construir a ponte da fusão entre a sustentabilidade ambiental e o mundo; foram os primeiros a extrair o leite da seringueira, confeccionando sapatos de borracha e tantos outros objetos indispensáveis ao bom uso dessa goma nos verdes vales amazônidas. Durante décadas, dominaram a técnica de conservação de alimentos usando recursos naturais; desenvolveram o processo da salga, do moquear, da dosagem certa para saborear um delicioso aluar; a moqueca de peixe, a caldeirada e tantos outros recursos imprescindíveis para se viver em plena selva.

Não se dedicaram somente ao trabalho. Com sabedoria, também criaram seus recantos de lazer. Construíram barracões; convidaram a vizinhança e fizeram as festas; e, com a chegada das missões, irmanaram-se e construíram as primeiras casas nos mais distantes rincões amazônicos, vindo mais tarde a surgir os primeiros núcleos, transformando-os em comunidades, depois em vilas e daí nasceram as primeiras cidades e municípios que hoje compõem o todo de um dos estados mais colossais e verdes do Brasil, o Estado do Amazonas.

E somente agora, em pleno século XXI, é que, sem dúvida, podemos afirmar que a terra das Ykamiabas de outrora, localizada na região do alto Nhamundá, expandiu-se e não compreende mais em sua totalidade um mero quadrante, e sim abrange uma área das mais belas de toda a Amazônia brasileira, cuja dimensão continental fez-se gigantesca dada a expansão natural do território amazonense, onde as belezas naturais estão acima de valores mercantis, porque integram todo o conjunto de um povo que, fraternalmente, produz riquezas imensuráveis, exportando produtos que já conquistaram o mundo, patrimônio construído por mãos amazonenses, por povos de inúmeras nacionalidades. Tudo isso sem perder a sua tradição; e é um pouco desse cotidiano que ainda se encontra na memória de um povo, a qual, em hipótese alguma, deve ser esquecida, por isso passaremos a explanar, nas próximas páginas, os feitos do caboclo amazônico; alguns em forma poética; outros em forma de crônica.

(*) é escritor

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