O problema é o voto

Como não podem prender os eleitores, resolveram prender a pessoa em quem o eleitor quer votar

A manifestação é algo previsto na Carta Magna, encampada pela liberdade de expressão - Foto: Reuters/Carla Carniel

Por J. R. Guzzo (*)

Adecisão de processar, condenar e prender o ex-presidente Bolsonaro por “golpe de Estado” tem pouco a ver, no fundo, com o ex-presidente Bolsonaro ou com golpe de Estado. Tem a ver, acima de tudo, com um esforço de vida e morte, por parte do Supremo Tribunal Federal e do governo Lula, para impedir que os brasileiros escolham seus presidentes em eleições limpas, daqui até o fim da vida. Quer dizer: eleição em que o candidato que tiver mais votos ganha, e não eleição tipo Venezuela, em que a principal candidata da oposição está impedida de concorrer por “decisão judicial”. Aqui está acontecendo a mesma coisa. Bolsonaro, que é capaz de reunir meio milhão de pessoas, ou sabe-se lá quanto, numa manifestação de rua, está proibido de disputar eleições até 2030. Mas o regime fica inconformado com a influência que ele pode ter todas as vezes que o Brasil for às urnas, mesmo às urnas do TSE. Não podem prender os eleitores. Então resolveram prender a pessoa em quem o eleitor quer votar; acham que, com ele trancado numa penitenciária, o risco de que a sua voz seja ouvida é muito menor. De qualquer jeito, não parecem ter tido outra ideia até agora.

O Grande Projeto STF-Lula, ora na fase de produzir papelório com cara de coisa oficial, de distribuir ao público propaganda da Polícia Federal e de utilizar os jornalistas para a transformação de acusações em provas, é colocar de pé a condenação judicial de Bolsonaro pelo crime de “golpe de Estado”. A realidade mais notável e indiscutível desse golpe é o fato de que ele não foi dado. Apostaram tudo, no começo, na ideia segundo a qual a prova de que o ex-presidente quis dar o golpe é uma reunião com os seus ministros na qual ele disse que não queria, nem iria, dar golpe nenhum. A reunião foi fotografada, gravada em vídeo e repete coisas que Bolsonaro já havia falado antes em público, e voltaria a falar depois. Ficou incompreensível. Passou-se então para as “minutas do golpe”; é onde estamos neste momento. É o primeiro golpe militar da história que teve minutas, em vez de tanque na rua — umas folhas de papel sem assinatura de ninguém, expondo argumentos para o Congresso Nacional decretar o estado de sítio previsto na Constituição Federal, no artigo 137. O Congresso nunca recebeu pedido nenhum; não aconteceu nada.

Lula Moraes Folha
Luís Roberto Barroso, presidente do STF; Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República; Rodrigo Pacheco, presidente do Senado; Geraldo Alckmin, vice-presidente da República; e Alexandre de Moraes, ministro do STF, durante evento em alusão ao 8 de janeiro – Foto: Pedro Gontijo/Senado Federal

É realmente um fenômeno. O autor do golpe, em vez de aproveitar a sua posição de presidente da República e chefe supremo das Forças Armadas para dar o golpe, é acusado de pedir o estado de sítio ao Congresso Nacional — e não manda o pedido. Isso é golpe de Estado? O último golpe de verdade no Brasil foi dado quando os militares depuseram o presidente que estava legalmente no cargo — e que fugiu para o Uruguai antes de a tropa chegar ao palácio. Ninguém, na ocasião, ficou discutindo minutas, nem pediu para o Congresso aprovar coisa nenhuma. Mas o Brasil virou um país em que tudo é golpe. Lula, o PT e a esquerda dizem até hoje que Dilma Rousseff, deposta pelo voto de três quartos do Congresso, sofreu um golpe de Estado. O quebra-quebra do dia 8 de janeiro de 2023, no qual as armas mais potentes eram uns estilingues, é o pior golpe da história brasileira — o nosso “Pearl Harbor”, segundo uma ministra hoje aposentada. Então: se há o “Golpe do Estilingue”, por que não pode haver o “Golpe da Minuta”? Na verdade, tanto faz. Se não fosse isso, seria o “genocídio”, ou as “joias”, ou o certificado de vacina.

Depois que se decide quem é o culpado, nada mais fácil do que achar a culpa. As provas são distribuídas aos jornalistas pelos assessores de imprensa da polícia — a partir daí, é tudo uma sessão de pilates com a sintaxe do idioma português para apresentar como fatos coisas que não são rigorosamente nada. É cômico. Nunca aparece, ao longo do noticiário, uma informação que seja realmente o que se chama informação — não nas coisas que interessam. Nada aconteceu. Tudo teria acontecido. Os envolvidos teriam dito, teriam feito, teriam pensado. Aparentemente, houve isso. Tudo indica que houve aquilo. As evidências sugerem. É consenso geral entre os investigadores. Não se descarta a possibilidade. Não se exclui a hipótese. Trabalha-se com o cenário. Há, naturalmente, o segundo fontes. A polícia deduz. A polícia acredita. A polícia avalia. A soma de tudo isso compõe o conjunto de provas (ou de “elementos”, para os que hesitam em escrever ou dizer que é “prova”) reunidas até agora sobre o golpe bolsonarista. A cada uma delas, dizem que Bolsonaro está liquidado. Recebeu a pá de cal. Game over.

Fotografia do ex-presidente Bolsonaro
O Grande Projeto STF-Lula é colocar de pé a condenação judicial de Bolsonaro pelo crime de “golpe de Estado” – Foto: Alan Santos/PR

A dificuldade central do seu caso é que Bolsonaro está sendo julgado na democracia dos ministros Alexandre de Moraes, Barroso etc. — em qualquer democracia de verdade, um promotor que viesse com essas provas seria posto para fora do tribunal. Imagine-se, a propósito, o que aconteceria se o ex-presidente estivesse sendo julgado pelo “Golpe da Minuta” no Tribunal Internacional de Haia, por exemplo — esse santuário do Direito que os garantistas brasileiros tanto admiram. O juiz-relator, ou coisa que o valha, poderia dizer o seguinte: “Vocês beberam? É isso aqui que a Polícia Federal do Brasil apresenta como ‘prova’? Tudo bem que vocês já inventaram a ‘agressão aparente’ e outros fenômenos desconhecidos até agora na história das investigações judiciárias. Mas assim também já é demais. Caso encerrado. Próximo, por favor”. A pergunta-chave, aqui, é a seguinte: algum dos 11 ministros do STF, ou qualquer advogado sério deste país, teria coragem de apresentar uma acusação dessas no tribunal de Haia? Alguém realmente acredita que um juiz internacional, ou de qualquer país civilizado, condenaria Bolsonaro?

O que dizer de um governo, de um partido e de um STF que conseguem ter, como seu maior objetivo político do momento, a negação de uma anistia?

Lula, o STF e a esquerda nacional, na verdade, não estão interessados em provar nada, nem em questões genuínas de Direito Penal, nem no Tribunal Internacional de Haia. Só pensam em apagar do mapa toda uma parte, talvez majoritária, da população brasileira. Essa parte é a direita — a mesma que foi à Avenida Paulista no dia 25 de fevereiro para fazer a maior manifestação popular dos últimos anos no Brasil. A religião oficial do regime, pelo que os seus marechais de campo dizem dia e noite, determinou que a direita é hoje a maior ameaça para a democracia brasileira — e mesmo para “o processo civilizatório” de toda a humanidade, como está na moda dizer. Precisa, por causa disso, ser eliminada da face da Terra. Não pode se manifestar nas redes sociais, que levam gente à rua e tornam inútil o boicote da mídia. Não pode ter as garantias e direitos escritos na Constituição Federal. Não pode ter candidatos que não forem aceitos por eles. Obviamente, para o consórcio Lula-STF, a ameaça não é a direita. A ameaça são os votos da direita — é esse todo o seu problema.

Manifestação na Avenida Paulista, convocada por Jair Bolsonaro (25/2/2024) – Foto: Shutterstock-

Lula disse que a manifestação de São Paulo foi “a favor do golpe”. Nesse caso, por que não deixar que o povo resolva tudo, de uma vez por todas, na próxima eleição para presidente? Aí não é rua, nem golpe; é voto. Mas o verdadeiro fantasma do regime é precisamente este — o voto, ou a maioria, ou o povo brasileiro. A sua guerra é contra a liberdade de escolha, a diferença de opinião e um Brasil que não quer o que eles querem. O que dizer de um governo, de um partido e de um STF que conseguem ter, como seu maior objetivo político do momento, a negação de uma anistia? Está em discussão no Congresso uma proposta, estritamente razoável, para anistiar os acusados de participar do quebra-quebra do dia 8 de janeiro de 2023. É uma anistia claramente limitada e parcial. Só se refere aos crimes de “golpe de Estado” e de “abolição violenta das instituições” pelos quais as pessoas estão sendo condenadas a até 17 anos de prisão. Não inclui os delitos de vandalismo, que permanecem intactos. Não envolve um único réu importante, influente ou perigoso — o último a ser condenado, a 11 anos de cadeia, é um barbeiro.

Resumo da ópera, de acordo com os fatos: a anistia é para crimes que não foram cometidos, provavelmente um caso único do mundo. A reação do governo e do STF tem sido histérica; as “fontes” de sempre já antecipam, inclusive, que os ministros vão vetar a lei, que nem sequer foi aprovada. O resultado mais extraordinário disso tudo é que o consórcio Lula-STF não admite nem mesmo uma anistia para crimes que não foram praticados. Não existe uma coisa dessas em nenhuma democracia do planeta, e nunca existiu. É incompreensível que não possa haver perdão para crimes, reais ou imaginários. Nega-se anistia em Cuba, na Venezuela ou na Coreia do Norte — isso é coisa privativa de ditadura. O Brasil do consórcio, aí, entra num dos seus piores momentos de delinquência. O ex-presidente Bolsonaro é apenas a parte mais visível desta comédia.

(*) J. R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-207/o-problema-e-o-voto/

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