O perigo da liberdade

Para o consórcio Lula-STF, quem quer direitos individuais, liberdades públicas, livre circulação de ideias e coisas assim é a 'direita'

Alexandre de Moraes, presidente do TSE, cumprimenta Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República, em Brasília (11/12/2023) - Foto: José Cruz/Agência Brasil

Por J. R. Guzzo (*)

Procure-se uma frase do presidente Lula desde que assumiu o governo, uma só que seja, a favor da liberdade. Ou de algum de seus ministros, ou das lideranças do PT e partidos aliados, ou de tudo o que possa fazer parte da nebulosa chamada hoje de progressismo — “comunicadores”, professores de universidade, artistas da Rede Globo, banqueiros com “pegada social” e mais do mesmo. Coloque junto com isso a maior parte da mídia de hoje — fruto da aliança formada entre os herdeiros de grupos de comunicação e os jornalistas que empregam em seus veículos para lutarem na frente de resistência pró-governo. E o Supremo Tribunal Federal, então? Aí é melhor nem falar nada. O fato é que nenhum deles, há anos, é capaz de dizer as seguintes palavras: “Eu sou a favor da liberdade”. Era um valor positivo. Hoje está virando uma séria suspeita de comportamento político criminoso.

Ato Democracia Inabalada, no Salão Negro do Congresso Nacional, em Brasília (8/1/2024) – Foto: Ricardo Stuckert/PR

Cuidado, portanto, com o que você diz em público — um informante pode chamar a Polícia Federal ou algum vigilante do Ministério Público para apreender o seu celular, seu notebook ou sua carteirinha do plano médico e levar tudo para o ministro Alexandre de Moraes e seu inquérito eterno para investigar “atos antidemocráticos”. O problema não é só o uso de palavras perigosas — como, por exemplo, dizer “meu líder”, algo que a polícia e o ministro podem considerar indício de tentativa de golpe de Estado. Num país em que o mais alto tribunal de Justiça leva a sério as expressões “agressão aparente”, “tentativa de planejamento” e outras cretinices do mesmo tipo, o ideal seria falar em tupi-guarani, para não ser incomodado pelas brigadas pró-democracia. Como isso não é uma solução prática, a saída possível é evitar as “palavras-problema” — “liberdade”, cada vez mais, é uma delas. Tudo bem, mas no caso o buraco é mais em cima. A dificuldade real é a própria noção de liberdade.

É disso que eles realmente não gostam, no fim das contas. Há, claro, a hipocrisia visceral que faz parte daquilo que a altíssima magistratura brasileira chama de “pensamento” — um penoso angu de opiniões que atendem a seus interesses e não têm contato com a existência de vida inteligente. Por mais essa encenação, os ministros e o seu sistema de apoio se declaram a favor de coisas como a liberdade para a passeata gay, que não causa problema nenhum e dá cartaz para eles todos, ou a liberdade para o consumo de drogas tidas como saudáveis. Mas a sua benevolência acaba por aí, ou em coisas do mesmo bioma mental. A passeata pela liberdade política já vai ser completamente outra coisa. Liberdade, nesse caso, passa a ser uma ameaça. Pode configurar, segundo o STF, o governo Lula e as classes desconectadas do sistema produtivo, uma arma para o “fascismo”, a extrema direita e o bolsonarismo. É uma forma de “ato golpista”, acham eles. É caso para o inquérito que “só acaba quando acabar”, como diz Moraes.

Alexandre de Moraes, presidente do TSE, em Brasília (11/12/2023) – Foto: José Cruz/Agência Brasil

O que se vê no Brasil, na verdade, é a militância cada vez mais enfezada contra a liberdade. É uma lástima, é obvio, que o presidente da República nunca diga uma única palavra em favor da liberdade, ou dos méritos das sociedades livres. Mas pior ainda que esse silêncio são as declarações de guerra à liberdade que vão ficando cada vez mais sistemáticas, e muitas vezes mais iradas, entre os marqueses do consórcio Lula-STF. Não se trata só de Alexandre de Moraes. Ele fala mais que os outros, e fala com mais irritação, mas a ministrada, as lideranças do PT e as melhores almas do Brasil civilizado dizem e pensam a mesma coisa — liberdade, para todos eles, é uma coisa essencialmente ruim, sobretudo quando vem junto com os complementos “de pensamento” ou “de expressão”. É sintomático. O ministro Moraes, que está se tornando uma espécie de Churchill brasileiro no combate ao “apaziguamento” trazido pelo livre convívio de ideias, representa mais ou menos a todos quando expõe a sua filosofia-raiz em relação ao assunto: a liberdade é a principal ameaça à democracia que existe no mundo de hoje.

Historicamente, se lutava pela democracia para se obter a liberdade. Hoje se luta contra a liberdade para salvar a democracia

Moraes não fala exatamente assim, com essas mesmas palavras. Mas é o que se entende. Entender de que outro jeito, se o ministro — e muita gente como ele — só consegue pronunciar a palavra “liberdade” acompanhada das mais sérias advertências em relação ao seu uso? É como aquelas bulas de remédio que gastam três linhas dizendo “para que serve este medicamento”, e passam o resto do texto ameaçando o paciente com as “contraindicações”. Nas Tábuas da Lei de Moraes, liberdade é contraindicada para tudo. Tem se ser usada dentro de “limites”. Não pode ser usada segundo a cabeça de cada um. Tem de ser “entendida” direito. Não pode servir para “tudo”. É frequentemente citada junto com as palavras “exagero”, “abuso”, “excesso”, “licenciosidade”, “desordem”, “absurdo”. Só é aceitável se vier imediatamente seguida de um “mas”. Em suma: para ele e para o consórcio Lula-STF, e para quem mais acredita nos dois, liberdade é um perigo.

Foto: Shutterstock

No entender de todos, quem quer direitos individuais, liberdades públicas, livre circulação de ideias e coisas assim é a “direita”; tem de ser a “direita”, segundo deduzem, porque a esquerda nunca fala de nada disso. Se a direita quer, então só pode ser ruim. Houve, realmente, uma troca de software. Historicamente, se lutava pela democracia para se obter a liberdade. Hoje se luta contra a liberdade para salvar a democracia. O que sempre foi um valor tornou-se um pecado — “liberdade”, na doutrina STF de ciência política, é uma palavra “fascista”, que vai ser enganosamente utilizada pela extrema direita para organizar manifestações de rua, dizer o que as pessoas pensam sobre as urnas eletrônicas, votar em candidatos da “bancada da bala”, dos “evangélicos”, dos “ruralistas” e outros indesejáveis. Tão ruim ou pior que isso tudo, vai permitir que cada um diga o que quer nas redes sociais — que só devem ser usadas para expor “conteúdos democráticos” e aprovados pelas autoridades e as “agências de checagem”, segundo eles.

Que Lula seja contra a liberdade é perfeitamente natural. Ele nunca teve qualquer convicção na vida que não fosse cuidar de si próprio e dos seus interesses pessoais; gente assim não admite nunca que os outros possam ter liberdade. É o que se pode esperar, também, de Alexandre de Moraes e de todos os que, como ele, têm uma visão estritamente policial da sociedade. O que chama a atenção, no Brasil de hoje, é o extraordinário empenho com que jornalistas e donos de veículos de comunicação se dedicam a combater a liberdade. Pode parecer esquisito, e é mesmo esquisito, mas a verdade é que a maioria dos jornalistas brasileiros é contra a liberdade de imprensa. Querem o “controle social” das comunicações tanto quanto Lula e o PT, ou até mais. Querem a censura nas redes sociais. Querem que o direito constitucional à livre expressão do pensamento seja regulado — e quem quer regular quer sempre diminuir. Já impuseram para si próprios, e contra possíveis dissidentes, um assombroso “consórcio de notícias” através do qual, basicamente, todos se obrigavam a escrever, dizer e mostrar as mesmas coisas. É a negação, em pessoa, da livre concorrência entre veículos e jornalistas — o princípio fundamental da liberdade de imprensa. É o sonho do “jornal único”, o Pravda bananeiro que os sindicatos, e as federações, e as confederações consideram o estágio superior e final do jornalismo. Lula e o STF, quanto a isso, podem dormir tranquilos.

(*) J. R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-201/o-perigo-da-liberdade/

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