O novo racismo

Na prática, o Ministério da Igualdade Racial estimula o rancor dos negros contra os brancos. É o antirracismo produzindo racismo

Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial - Foto: Luna Costa/MIR

Por J. R. Guzzo (*)

O governo do presidente Lula pode estar a caminho de algo que nenhum outro governo br asileiro conseguiu até hoje: transformar o Brasil num país racista. Naturalmente, o Brasil e os cidadãos brasileiros de carne e osso continuam sendo o que sempre foram — a sociedade menos racista do mundo, consequência óbvia do fato de que a maioria da população, ou mais de 100 milhões de brasileiros, não é nem branca nem negra. Um dos comprovantes mais objetivos que se poderia ter a respeito disso é a pergunta que frequentemente se faz: “Existe no mundo algum país menos racista que o Brasil? Qual?”. A única resposta coerente é: “Não”. É claro que há atos e comportamentos racistas no Brasil. Mas isso não vem de uma propensão natural da sociedade para o racismo — vem da violação à lei por parte de indivíduos, como ocorre com tantas outras deformações num país que carrega um dos piores índices de criminalidade do mundo. A prática do racismo no Brasil está sendo criada e incentivada pela ação direta do governo. Impuseram aos cidadãos um “Ministério da Igualdade Racial”, com a intenção declarada de combater os preconceitos de raça. Mas esse novo cabide de emprego do PT não combate o racismo. Na prática, faz exatamente o contrário: estimula o rancor dos negros contra os brancos. É o antirracismo produzindo racismo.

“Torcida branca descendente de europeu safade”, escreveu uma alta assessora da ministra (com salário de R$ 17 mil por mês), sobre os torcedores do São Paulo, na final da Copa do Brasil contra o Flamengo, no Morumbi. Isso é ou não é um ato de racismo explícito? É claro que é. Basta mudar a origem do insultado — imagine-se o terremoto que haveria se alguém dissesse que a assessora é descendente de “africane safade”. O Brasil nunca precisou de um “Ministério da Igualdade Racial” para ser o país menos racista do planeta. Agora, apenas nove meses depois da invenção de Lula, conseguiu ter uma peixe graúda do “Estado” sacrossanto da esquerda (ou uma peixe média, pelo menos) chamando os brasileiros brancos de “safados”. A assessora teve de ser demitida, a contragosto e em meio ao desagrado dos “movimentos negros”, mas aí o mal já estava feito. É como fechar a gaiola depois que o canário fugiu — ou “depois que a pasta de dente saiu do dentifrício”, como ensinava a atual banqueira internacional Dilma Rousseff.

Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial – Foto: Flickr/MIR

Não foi um ato isolado de uma burocrata cretina, como acontece com os atos individuais de conduta racista. É o que eles próprios, ou os seus intelectuais, chamam de racismo “estrutural”, ou “sistêmico” — o sentimento de hostilidade automática de uma etnia em relação a outra, e a entrega permanente de privilégios à etnia preferida. “Europeu safado” é o que pensam, exatamente, muitos dos militantes raciais que estão dentro do governo. Foi a assessora que falou isso em público, e acabou perdendo o emprego. Mas é o que dizem entre si, a portas fechadas, muitas autoridades negras que Lula, o PT e o seu sistema colocaram no aparelho estatal. Não há, na sua maneira de ver as coisas, o “branco inocente”. Mesmo que nunca tenha tratado um negro de forma ofensiva por causa da cor de sua pele, ou que nem sequer pense em si próprio como “branco”, o cidadão que vem de imigrantes europeus é “racista”. É esse o pensamento oficial do governo Lula sobre 70 milhões de brasileiros, ou algo assim, de origem branca. Não é o que declaram oficialmente, claro. Mas é como agem.

Uma das manifestações mais óbvias dessa postura é a reação sistemática da maioria dos negros que exercem funções públicas a cada crítica que recebem. Em vez de se defenderem com argumentos, acusam de “racista” quem faz a crítica. Quer dizer que não podem fazer nada de errado, como qualquer ser vivo? Não. Para os novos antirracistas profissionais, toda a discordância com eles, ou com a sua conduta, só pode ser motivada por uma coisa — o “racismo”. Ninguém espelha tão bem a criminalização da crítica como a própria ministra da “Igualdade Racial”. Não há nada de certo com ela. O único motivo para ter ganhado o cargo é o fato de ser irmã da ex-vereadora carioca Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro em 2018 e desde então tratada como mártir da esquerda nacional. Não há outra realização visível em seu currículo; é só isso mesmo. Também ganhou um emprego de no mínimo R$ 500 mil por ano numa indústria metalúrgica em que o governo pode nomear conselheiros, embora não saiba o que é uma arruela de encosto. Gastou com viagens metade das verbas do orçamento do seu ministério neste ano. Enfim, deixou-se pegar em flagrante cometendo a delinquência-padrão dos gatos gordos do governo Lula: requisitar aviões do táxi aéreo da FAB para viajar no fim de semana.

No caso, a ministra veio assistir a um jogo do seu time, o Flamengo, na infausta final da Copa do Brasil no Morumbi — a mesma em que a sua assessora chamou a torcida do São Paulo de “europeu safade”. O pior é que ela mesma exibiu o que estava fazendo: fez um vídeo para se mostrar dentro do avião oficial e colocou na internet. Pegou péssimo, é claro, e a agressão racista da sua colaboradora (“cargo de confiança”) só serviu para dobrar o prejuízo. Não passou pela cabeça da ministra, em nenhum instante, que ela tinha pisado feio na bola. Dias depois do desastre, já estava atrás do ministro Flávio Dino, pedindo que pusesse a sua polícia em cima dos “ataques racistas” que recebeu nas redes sociais. A mensagem é a de todos os que agem como ela: “Não digam uma palavra contra mim. Se disserem eu vou acusar vocês de racistas”. O problema da ministra não é a cor da sua pele. É que pegou um avião pago com dinheiro público para assistir a um jogo do Flamengo — igual fez aquele que usa a Força Aérea Brasileira para ver concurso de cavalo de raça. No caso dele não é nada. No seu caso é “racismo”.

Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial – Foto: Flickr/MIR

Essas distorções, muitas vezes, são associadas ao que vem se chamando de “vitimismo”, ou “coitadismo” — a atitude mental de achar que a origem de todos os problemas humanos está na cor da pele, na pobreza ao nascer e em outras condições fora do controle individual. No caso do antirracismo, que faz tanto sucesso hoje em dia, a síntese dessa maneira de ver o mundo é a afirmação: “Tudo o que há de errado comigo vem do fato de eu ser negro”, da mesma forma que se diz que o criminoso é uma “vítima da sociedade”, e não o responsável pelos crimes que pratica, ou que uma pessoa é pobre porque a outra é rica. É uma vida esterilizada de um laboratório onde se produz ciência social: nela não há virtudes ou vícios, responsabilidades ou méritos pessoais, mas unicamente a “desigualdade” e o seu vasto cortejo de consequências. Mas o catecismo racial do governo Lula vai além disso. Não há nenhuma “ideologia” aí, porque não há nenhuma ideia, e sim um ativismo interesseiro. O começo, o meio e o fim desse tipo de militância, num exato “copiar e colar” do que acontece nos Estados Unidos e nos países que se descrevem como “civilizados”, é um enunciado bem simples: “É indispensável haver racismo, para sempre e cada vez mais, porque se não houver também não haverá nenhum meio de subir na vida com o antirracismo”. A luta “contra o racismo”, hoje, não é uma luta por direitos. É uma briga por dinheiro — verbas públicas, verbas privadas, empregos, patrocínios, privilégios, cotas, papéis em elencos artísticos, “doações”, indenizações por “dívidas históricas”, ministérios da igualdade racial e por aí afora.

O racismo pela prática serial do antirracismo, e com dinheiro público, não se limita ao “Ministério da Igualdade Racial” nem ao Poder Executivo. O Ministério dos Direitos Humanos, por exemplo, não disse uma única sílaba a respeito do mais agressivo ato de violação dos direitos humanos da história moderna do Brasil — as prisões, os processos e as condenações a até 17 anos de cadeia de pessoas que participaram de um quebra-quebra sem armas, sem feridos e sem consequências. Em compensação, o ministro age como uma espécie de guia espiritual do governo para questões raciais. “Racismo é sempre sistêmico”, escreveu ele num artigo publicado antes de ir para o governo. Na sua opinião, não se trata de um conjunto de atos individuais. “Racismo é o processo em que se reproduzem condições sociais que atribuem vantagens e desvantagens para pessoas pertencentes a grupos racializados”, diz o ministro. Em seu entender, a discriminação racial se manifesta “através de práticas conscientes e inconscientes”. Seria esse o caso do Brasil — o brasileiro que não é negro pratica o racismo sem saber, muitas vezes, que está sendo racista. Na verdade, o ministro afirma, citando o filósofo marxista francês Frantz Fanon, que “a sociedade contemporânea criou disfarces para o racismo de uma maneira tal que é até mesmo possível existir racismo sem que existam racistas”. O ministro dos Direitos Humanos é um homem razoável, competente em suas atividades e respeitado no meio acadêmico. Mas os militantes dos “movimentos negros” podem não ser nenhuma dessas coisas — e acabam achando que o “racismo sistêmico” descrito pelo ministro é uma espécie de pecado original de quem não nasceu negro. Como na visão mais repressora da antiga Igreja Católica, o “branco” é considerado culpado de delitos que nunca cometeu — da escravidão à pobreza da maioria da população negra.

Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos – Foto: Reprodução/Agência Brasil

É com base nesse tipo de crença, por exemplo, que o Ministério Público está patrocinando uma ação judicial para responsabilizar o Banco do Brasil por sua participação no financiamento do extinto mercado de escravos — mesmo que a empresa, na sua forma jurídica atual, obviamente não existisse à época da escravidão. É típico do antirracismo profissional hoje em vigor. Os beneficiários da ação, é claro, não estão interessados em reparar injustiças do passado, nem em receber dezenas de bilhões. O que querem, no mundo das realidades, é sair desse processo com um “Termo de Ajuste de Conduta” no qual o Banco do Brasil, ou seja, o brasileiro pagador de impostos, concorda em dar uma “compensação” em dinheiro para acabar com o caso — verbas, “contribuições”, patrocínios e tudo aquilo que você já sabe. Nenhum negro brasileiro, fora os que vivem em torno e às custas do governo, vai ver um único centavo do dinheiro que vai sair disso. Mas é assim que as coisas estão funcionando no Brasil de 2023. Afinal, como diz o próprio presidente da República, o Brasil tem de “agradecer à África” por ter se beneficiado do trabalho escravo durante 300 anos.

O antirracismo, em quase todas as suas manifestações, deleta um Brasil real cuja existência os combatentes da ofensiva contra a “branquitude” não admitem

O racismo através do antirracismo, evidentemente, também está fora da máquina estatal — embora possa tirar vantagens de verbas públicas e outros favores do governo. Para ficar só no último exemplo, um canal fechado de televisão pertencente à Fundação Roberto Marinho anunciava para o dia 5 de outubro a estreia de uma série com 21 episódios para denunciar o que se considera responsabilidade dos brasileiros brancos entre os problemas dos brasileiros negros — econômicos, sociais, culturais, de todo tipo. “A série Entrevista — Branquitude debaterá temas como privilégio branco, a criação do conceito de raça e a falsa ideia da neutralidade racial”, escrevem os organizadores. “A nova temporada do programa Entrevista vai debater desigualdade racial e violências contra a população negra sob um novo prisma: a branquitude e a responsabilidade da população branca na manutenção do racismo no Brasil.” A palavra-chave, nisso tudo, é “branquitude” — ao que parece, segundo o anúncio divulgado pela fundação, trata-se do estado mental, social e genético de quem não nasce com a pele de cor preta. Fica claro, também, que essa “branquitude” seria uma infração gravíssima. É complicado. Evidentemente, ninguém pode ser culpado por ter os genes que tem, considerando-se que ninguém é responsável pelo próprio nascimento. Mas, na visão do antirracismo atual, o branco é culpado sempre, independentemente do que faça ou não faça na vida real. Racismo, nesse modo de ver o mundo, não é o resultado de ações objetivas e deliberadas do ser humano, mas do puro e simples fato de existirem pessoas com combinações de melanina que geram a cor de pele descrita como “branca”.

Ilustração: Shutterstock

A apresentação de cada um dos episódios da série deixa claro o modo de pensar da militância racial no Brasil de hoje. O primeiro: “O que é branquitude?”. Segue-se outro sobre um “pacto narcísico da branquitude”, do qual o brasileiro branco participa sem ter a menor ideia do que poderia ser um “pacto narcísico” — e por aí segue. Vão falar sobre “vantagens estruturais do branco”, a “falsa ideia de neutralidade racial” e o “pensamento decolonial”. (O que quer dizer isso — “decolonial”? Segundo um departamento da Universidade Federal de Minas Gerais, o termo se refere às “possibilidades de um pensamento crítico a partir dos subalternizados pela modernidade capitalista e a tentativa de construção de um projeto teórico de repensamento crítico e transdisciplinar para se contrapor ao padrão de poder colonial eurocêntrico”. Não dá para entender nada — mas esse é o português utilizado pela UFMG e pelos cérebros que promovem a série.) Há um episódio sobre “culpa branca e responsabilização”, outro sobre “racismo científico”, e um que debate a questão entre o “branco e o branquíssimo”. Há denúncias contra a branquitude no esporte, na mídia, na música popular brasileira, no Poder Judiciário. É uma condenação geral.

O antirracismo, em quase todas as suas manifestações, deleta um Brasil real cuja existência os combatentes da ofensiva contra a “branquitude” não admitem. Denunciam obsessivamente o “racismo no esporte”; querem apagar aí o fato de que 80% dos jogadores do futebol brasileiro profissional não são brancos. Da mesma forma, quase não se vê uma peça de propaganda comercial, na televisão ou em outdoors, sem a presença de negros. Milhares de políticos em todo o país são negros — ou “pardos”, como diz o IBGE. A discriminação racial é crime punido com penas de prisão. O número de jovens negros na universidade nunca foi tão alto — e assim por diante. Mas nada disso é reconhecido como realidade pelo ativismo racial. Nada disso, também, veio com o governo Lula e o seu “Ministério da Igualdade Racial”. Mais que tudo, talvez, o racismo antirracista não aceita um fato fundamental: o de que o brasileiro originário da imigração, o “europeu safade” da assessora do MIR, ganhou tudo aquilo que tem exclusivamente com o trabalho. Nunca recebeu um tostão do governo. Não foi favorecido por cotas. Não teve privilégio algum. Seus antepassados chegaram aqui sem sapatos, fugindo da fome, em viagens pouco melhores que as de um navio negreiro.

Sobreviveram e prosperaram porque trabalharam. Os antirracistas de Brasília e de seminários são hostis ao bem-estar adquirido pelo mérito individual; não gostam de “pauliste”, como se não houvesse negros em São Paulo, nem de “suliste”. Não apenas acham que há uma cor de pele errada; o cidadão é culpado, também, por ter nascido ou por viver nos Estados que deram mais certo. O que não podem admitir é uma ideia básica: a de que a pobreza da grande maioria da população negra do Brasil não se deve à sua composição fisiológica, mas ao fato brutal de que não teve chance de adquirir os conhecimentos necessários hoje em dia para trabalhar nas atividades que oferecem melhor remuneração — ou o treino mental para ter as ideias que geram dinheiro. Não são pobres por causa da “branquitude”. São pobres porque não sabem o que deveriam saber — e não sabem porque o Estado brasileiro, controlado pelo binômio Lula-PT durante 15 dos últimos 21 anos, falhou miseravelmente na educação pública. É inútil inventar o “Ministério da Igualdade Racial”, ou lotar a universidade com cotas negras nos cursos de “políticas públicas”, “semiótica” ou “decolonialismo”. O que teriam de fazer, se tivessem o mínimo interesse na ascensão social dos negros brasileiros, é colocar em prática, entre outras providências concretas, a reforma do ensino médio — que favorece o aprendizado de disciplinas que geram renda e atendem às demandas da sociedade de hoje. O governo Lula vai na direção exatamente contrária. Uma das suas primeiras decisões foi bloquear a reforma, aprovada por lei depois de 20 anos de discussão no Congresso. É uma aposta na ignorância perpétua. A esquerda nacional precisa da ignorância porque precisa da pobreza — não sobrevive num Brasil mais justo ou mais próspero, como se provou nas últimas eleições presidenciais. A maior parte da população negra vai continuar pagando essa conta.

Foto: Flickr/MIR

(*) J.R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-185/o-novo-racismo/

DEIXE SEU COMENTÁRIO

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.