Jogo em aberto

Depois de um ano de governo Lula-STF, muita gente tem a impressão de que o Brasil está chegando ao fim da linha. Mas o retrato de hoje pode não mostrar a realidade de amanhã

Por J. R. Guzzo (*)

“Aúnica diferença entre mim e um louco”, costumava dizer o pintor Salvador Dalí a respeito de si próprio, “é que eu não sou um louco”. Talvez seja o caso de dizer alguma coisa parecida a respeito da desordem em que Lula, o STF e as neuroses da esquerda meteram o Brasil após seu primeiro ano de volta ao governo — o que leva muita gente boa a flertar, de tempos em tempos, com a depressão. “A única diferença entre o Brasil e a Venezuela de hoje”, também se poderia observar, “é que o Brasil não é a Venezuela”. A obra de destruição que eles vêm fazendo contra a sociedade brasileira leva, constantemente, a essa espécie de comparação. Mas será mesmo assim, no mundo das realidades? Não está claro. Em primeiro lugar, não se sabe se é isso mesmo o que o consórcio Lula-STF quer. Seu empenho, na maior parte do tempo, é ficar no governo, seja lá o tipo de governo que for — e continuar vivendo de um Erário que arrancou dos brasileiros, no ano passado, R$ 3 trilhões em impostos. Mais ainda, não se sabe se conseguiriam. Transformar um país em Venezuela é uma coisa — se esse país é a Venezuela. É outra coisa, muito mais complicada, se o país é o Brasil.

O que o consórcio realmente gosta, em matéria de Venezuela, é a ditadura — o resto é a ver, incluindo-se neste resto toda a embromação sobre socialismo, comunismo, “igualdade” e outras fumaças. Na verdade, não é nem mesmo a ditadura, e sim as vantagens materiais que ela oferece. Um regime sem lei como o que está sendo imposto hoje ao Brasil permite, por exemplo, a atuação de um Dias Toffoli no STF — e um Dias Toffoli no STF quer dizer, em moeda sonante, que aqueles R$ 10 bilhões que a sua empresa tinha a obrigação de pagar ao Tesouro Nacional para se livrar de cinco ações penais por corrupção ativa não precisam mais ser pagos. Pode significar, também, a anulação das provas físicas do pagamento de propinas por parte de outra empresa, como a confissão de culpa dos acusados e a devolução de dinheiro roubado. Um negócio desses, para ficar por aqui, não tem preço — ainda mais quando se considera que uma advogada do escritório que livrou a empresa de pagar os 10 bi é a mulher do próprio Toffoli. Quando a ordem jurídica não existe mais, dá para fazer esse tipo de coisa o tempo todo — e, aí, quem precisa de Venezuela? O socialismo, e a Venezuela, a gente vê depois.

Toffoli
Ministro Dias Toffoli, do STF – Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

O STF pode “empurrar a história”, como diz o ministro Luís Barroso, ou deixar um preso morrer na cadeia por falta de tratamento médico adequado, como fez o ministro Alexandre de Moraes. O presidente da República pode continuar dizendo que o problema mais sério do Brasil é cuidar dos “indígenas”, dos “quilombolas” e das “mulheres” — ou desfilar pelo mundo torrando fortunas e falando bobagem. Podem estar acontecendo, enfim, essas coisas todas que fazem tanta gente dizer: “Isso aqui virou uma Venezuela”. Mas o fato é que falta muito chão para se chegar lá; um ano de governo, em todo caso, não parece suficiente para o tamanho da obra. O consórcio Lula-STF, sem dúvida, está tendo muito sucesso para impedir que a economia cresça de verdade, como não tem crescido há 30 anos. Mantém a maior parte da população brasileira na sua situação de apartheid social permanente. Acima de tudo, garante o conforto das castas que só prosperam com o subdesenvolvimento. Mas a sua capacidade instalada para promover o atraso tem limites. A um certo ponto, e o Brasil chegou a este ponto, o governo não consegue mais destruir o sistema produtivo, nem os mecanismos que o fazem funcionar.

O PIB brasileiro, hoje, chegou aos US$ 2 trilhões; já poderia ter chegado ao dobro, ou sabe-se lá quanto, mas o fato concreto é que os 2 tri estão aí, e isso é simplesmente 20 vezes mais que o PIB atual da Venezuela. Não deveriam ter deixado que a coisa chegasse a esse tamanho. Tinham de ter começado a cuidar do “socialismo” uns 50 anos atrás, ou mais; agora é tarde para colocar a pasta de dente de volta no dentifrício, como diria a “Economista do Ano” Dilma Rousseff. Alexandre de Moraes pode muito, é claro, mas é duvidoso que consiga fazer US$ 2 trilhões virarem vapor. Também não vai acabar, abrindo um inquérito policial, com o maior avanço que a economia brasileira teve em sua história contemporânea. Foi a revolução agrícola que transformou o Brasil num dos dois ou três maiores produtores de alimentos do mundo. É o que faz Mato Grosso, sozinho, produzir mais soja que a Argentina. Foi o que levou as reservas em moeda forte chegarem aos US$ 350 bilhões — o que garante uma independência que o país jamais teve antes. É o contrário da Venezuela. É o contrário do Terceiro Mundo, ou do “Sul Global”. É o contrário de Lula e do STF.

Dilma Banco dos Brics
Dilma Rousseff preside o Banco do Brics – Foto: NDB/Reprodução

Acabar com o capitalismo na Venezuela, pensando-se em cima dos fatos, não foi um fenômeno assim tão extraordinário quando se leva em conta, em primeiro lugar, que nunca houve capitalismo na Venezuela. Ao se iniciar a demolição promovida pelas ditaduras Chávez-Maduro, a Venezuela não tinha indústria, não tinha comércio, não tinha agronegócio, não tinha banco, não tinha Bolsa de Valores, não tinha mercado, não tinha nada. Só tinha uma das maiores produções de petróleo do mundo — e isso nunca serviu para tirar o país do subdesenvolvimento. O dinheiro ia todo para a própria máquina estatal e para as contas numeradas da elite na Suíça e nos Estados Unidos; servia, também, para importar tudo o que a economia venezuelana nunca foi capaz de produzir, do Alka-Seltzer ao papel higiênico. Após 20 anos de ditadura, o petróleo não sai mais do chão, porque a estatal de Nicolás Maduro não tem competência para fazer o trabalho de extração — a produção, que era de 3 milhões de barris por dia, caiu para 1 milhão. O resultado é que não há petróleo, nem Alka-Seltzer, nem papel higiênico.

Os dólares que entram dão, e dão de sobra, para manter os ditadores e suas milícias levando vida de rico, mas é só isso. Já o Brasil, apesar de todas as suas frustrações econômicas, sociais e políticas, fez um caminho inverso ao da Venezuela nestes últimos 20 anos. Seu PIB aumentou em três vezes. É hoje um país-chave para a segurança alimentar do mundo — tornou-se, entre outras coisas, o maior exportador mundial de alimentos industrializados e vai se firmando como um gerador maciço de riqueza renovável a cada ano, com exportações agrícolas que vão passar dos US$ 170 bilhões em 2023. Mesmo na produção de petróleo, o Brasil tem um desempenho muito superior: extrai hoje 3,7 milhões de barris por dia, ou quase quatro vezes mais que a Venezuela. É outra realidade. O barulho em torno do “vou sair deste país” continua, mas é apenas isso — um barulho. O fato da vida real é que no Brasil, ao contrário da Venezuela, há muito mais gente querendo ficar do que querendo sair. Sair para onde? Os 60 milhões de brasileiros que votaram contra Lula em 2022 não cabem em Miami, nem em Lisboa. Não cabem e não estão interessados em ir para lá; o consórcio, queira ou não queira, vai ter de continuar convivendo com eles aqui dentro do Brasil.

Lula venezuela guiana | Luiz Inácio Lula da Silva recebe Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, no Palácio do Planalto, em Brasília (29/05/2023) | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Luiz Inácio Lula da Silva recebe Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, no Palácio do Planalto, em Brasília (29/5/2023) – Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A ditadura Chávez-Maduro fez 20% dos venezuelanos fugirem do país para escapar da fome e da miséria, um dos êxodos em massa mais desastrosos da história moderna. Se essa mesma porcentagem fosse aplicada ao Brasil de hoje, mais de 40 milhões de brasileiros teriam de se refugiar no exterior. Não é o que se vê. Mais que tudo isso, talvez, há diferenças essenciais na vida política. Ditadura tem de ser ditadura — e uma ditadura para valer precisa fazer mais do que o consórcio Lula-STF está fazendo. Como já disse o ministro Alexandre de Moraes, “falta muita gente para prender, muita gente para multar”. É essa, justamente, uma boa parte do problema. Quantos estão faltando, ao certo? Não há experiência prévia a respeito de como se prender 1 milhão de pessoas, por exemplo, até por questões elementares de logística — e muito menos os 60 milhões citados acima. O que fazer, na prática? Na Venezuela a população foi embora, mas no Brasil não foi. Da mesma forma, há um Congresso Nacional que continua aberto e que, por mais meia-boca que seja, dá mais trabalho no dia a dia que o parlamento-padrão de ditadura. Como diria de novo o ministro Moraes: falta muito deputado para cassar, muito senador para processar.

Lula e os seus sócios podem cassar o mandato do deputado Deltan Dallagnol, como já fizeram, ou o do senador Sergio Moro, como estão querendo fazer. Mas Deltan é um entre 513, e Moro é 1 entre 81 — o que pretendem fazer com o resto? Não vai dar para cassar 150 deputados de uma vez, a menos que fechem a coisa toda, e eles simplesmente não têm os meios concretos para fazer uma obra desse tamanho. É claro que os deputados e os senadores já perceberam isso. Enquanto tiverem a segurança que têm agora, vão continuar querendo coisas e criando problema. Tudo bem: a cada vez que aprovarem algo de que o consórcio não gosta, Lula vai anular a decisão no STF. Mas será que está mesmo tudo bem? Para estar tudo bem o STF teria de cassar todas as leis indesejáveis que o Congresso aprovasse — todas, até o Dia do Juízo Universal. Ninguém apresentou, até o momento, nenhuma sugestão realista a respeito de como se fazer uma coisa dessas. O problema do Congresso, na verdade, não tem solução para Lula, o PT e o Supremo: ele se chama minoria. Segundo dizem eles próprios, este é o Congresso “mais reacionário” que o Brasil já teve. Fica difícil, nesse caso, governarem o país do jeito que querem.

Deltan Dallagnol
Deltan Dallagnol, ex-deputado federal – Foto: Reprodução/Câmara dos Deputados

O consórcio que manda hoje no Brasil tem menos de um quarto dos votos no Congresso. É assim porque o povo brasileiro decidiu que deveria ser assim — em eleições organizadas pelo próprio TSE que eles dirigem. O PT, é claro, acha essa decisão um erro inadmissível, como em todas as eleições que perde, mas é a única que está valendo no mundo real. Fazer o quê? Ou monta um parlamento do tipo Venezuela-Cuba-Nicarágua etc. ou vai ter complicação toda hora. A mais recente veio neste fim de ano. Lula se despediu de 2023 resmungando que vai ter de ir de novo ao Supremo porque o Congresso não atendeu “a vontade dos indígenas” na fixação de um marco temporal para a demarcação de novas reservas. É claro que não: decidiu atender a vontade dos outros 99% da população brasileira, de quem é o único representante legal. Com os votos de 321 deputados contra 137, e de 53 senadores contra 19, o Congresso rejeitou os vetos de Lula à lei do marco temporal que o plenário das duas Casas tinha acabado de aprovar — uma lavada histórica, que deixa claro qual é o tamanho real da sociedade Lula-PT dentro do Parlamento brasileiro.

A esquerda, horrorizada, diz que o Congresso é de direita. E daí? O que ela propõe que se faça? Esse é Legislativo que representa a população brasileira, goste-se ou não dele. Não há outro disponível até 2026. O fato, quando se vai para a linha do resultado, é que o projeto de ditadura no Brasil não consegue fazer uma maioria. Na falta disso, fica comprando votos na Câmara e no Senado com dinheiro do Orçamento; foi a única coisa que realmente fez em todo este seu primeiro ano de governo. Vai continuar assim, pois não tem nenhuma outra ideia — mas, aí, será preciso continuar comprando para sempre. O ministro Fernando Haddad não vai fazer outra coisa da vida: arrancar cada vez mais imposto, não para que o governo faça “investimento social”, como diz Lula, mas para pagar as emendas de deputados e senadores. Além do mais, a compra não resolve tudo. No marco temporal não resolveu.

Lula, o PT e o Supremo, no fim das contas, querem governar o Brasil com 25% dos votos no Congresso. Querem um governo sem povo, um presidente da República que há anos não pode andar na rua e um regime que está na dependência das nove pessoas mais odiadas do país. Mas para segurar uma situação desse tipo o Brasil não pode ter eleições livres — nunca mais. As urnas eletrônicas terão de ser sempre essas mesmas, sem nenhuma mudança, nunca. As campanhas eleitorais terão de ser iguais à do ano retrasado, ou daí para baixo. O TSE, enfim, vai ter de continuar resolvendo tudo, a cada eleição, até o fim da vida. Dá para fazer tudo isso, o tempo todo? É um jogo que pode ter começado, mas ainda não acabou. Lula, como todos nós, vai ser chamado um dia para embarcar na sua última viagem — não se trata de uma possibilidade, mas de algo que está 100% certo. Não será possível, então, chamar o STF para resolver o problema. Na Venezuela o comandante Chávez deixou o comandante Maduro em seu lugar. No Brasil não vai ficar ninguém no lugar de Lula, mesmo porque ele passou a vida inteira se dedicando a impedir que isso pudesse acontecer algum dia. Não vai acontecer agora. Para os 150 milhões de brasileiros que têm menos de 50 anos de idade, faz toda a diferença.

Foto: Shuttesrtock

(*) J.R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-198/jogo-em-aberto/

DEIXE SEU COMENTÁRIO

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.