Fratura exposta no Supremo

No Brasil de 2023 o STF, em parceria plena com o governo Lula, tenta convencer o público de que ele não está vivendo num estado de exceção cada vez mais totalitário

Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) - Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Por J. R. Guzzo (*)

O Brasil vive uma ficção tóxica, perigosa e mal-intencionada. Tivemos, no passado, momentos de alucinação coletiva como o da “Maioridade”, por exemplo — combinou-se, então, que dom Pedro II ficaria maior de idade aos 13 anos, para que pudesse assumir as funções de imperador do Brasil. Uma criança não pode ser transformada em adulto por despacho administrativo, assim como não existe o homem que corre a 100 quilômetros por hora. Mas os sócios proprietários do Brasil na época decidiram que era uma excelente ideia para fazer “avançar a história” — e, pronto, eis o Brasil com as suas instituições perfeitamente em ordem, a “governabilidade” garantida e um imperador que hoje não poderia trabalhar, pois estaria sob a proteção do Estatuto da Criança e do Adolescente. A ficção da “Maioridade” vira uma brincadeira inocente, porém, quando é comparada com o embuste maciço que o Supremo Tribunal Federal está aplicando na sociedade para impor um governo ilegal ao Brasil. Dom Pedro, pelo menos, ia se tornar maior de idade com o passar do tempo. O STF quer fingir para sempre que o país vive num “estado democrático de direito”.

Muita gente faz de conta que acredita nisso, no mundo político, na mídia e nas classes intelectuais; há, inclusive, os que acreditam mesmo. É a velha história: a melhor maneira de impedir que um prisioneiro fuja da prisão é convencê-lo de que ele não está preso. No Brasil de 2023 o STF, em parceria plena com o governo Lula, tenta convencer o público de que ele não está vivendo num estado de exceção cada vez mais totalitário. O tribunal e o sistema de propaganda que mantém na mídia, junto aos influencers e nos grupos de esquerda sustentam que para salvar a democracia é preciso agir como numa ditadura. Se não for assim, os “fascistas” vão aproveitar as leis, os direitos individuais e as liberdades públicas para cometer atos antidemocráticos — como votar em candidatos de sua escolha, apresentar suas opiniões nas redes sociais ou exigir urnas que permitam eleições realmente limpas. Pode ser até que ganhem a eleição, como aconteceu há pouco na Argentina. O consórcio STF-Lula acha que isso é um risco inaceitável — e colocou o sistema legal no estado de coma que existe hoje. É o “novo normal” da democracia brasileira.

Ministro Alexandre de Moraes e presidente Lula, antes do início da sessão solene de abertura do Ano Judiciário – Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Não há nada normal, claro. Como poderia ser normal condenar acusados primários a até 17 anos de cadeia por terem participado de um quebra-quebra em Brasília? Há cidadãos presos há 11 meses sem julgamento e sem culpa formada. Seus advogados não podem fazer a sustentação oral na defesa — têm de enviar vídeos com os seus argumentos, sem saber se alguém vai ver alguma coisa daquilo tudo que gravaram. Há casos em que os vídeos são respondidos em minutos, com decisões idênticas, palavra por palavra, para réus diferentes. O ministro Alexandre de Moraes recusa-se a autorizar que presos com enfermidades graves saiam da prisão para receberem tratamento médico adequado em hospitais — mesmo quando o próprio MP, que faz as acusações, pede que sejam liberados. Um deles morreu na penitenciária, quase um ano depois de um laudo médico oficial atestar que corria perigo de morte. Outro tentou o suicídio. Nenhum dos dois poderia estar sendo julgado no STF — que não é uma vara criminal e só pode julgar réus que disponham de foro especial. O tribunal decidiu que não é preciso haver prova individual para as condenações; os cidadãos estão sendo condenados por “crime de multidão”. Não é possível recorrer.

Os “processos do 8 de janeiro” são o mais infame ato de violação de direitos humanos ora em execução por qualquer governo do mundo. A ficção oficial de que o STF é uma “suprema corte” de Justiça que age na defesa da Constituição e assegura o respeito às leis está mostrando, nesse caso, uma fratura exposta. É impossível que haja democracia num país onde há, ao mesmo tempo, um desrespeito à ordem jurídica tão maciço quanto esse. O Supremo no Brasil de hoje é o oposto das ideias de paz, de normalidade e de justiça. Plantou cinco anos atrás uma “árvore envenenada”, como dizem os criminalistas — e, desde então, só tira dela frutos com veneno. Para salvar o ministro Dias Toffoli de indagações de natureza penal, e para estancar possíveis “sangrias”, abriu o inquérito ilegal, perpétuo e sem limites sobre fake news e “atos antidemocráticos” que está aí até hoje, sob o comando de Alexandre de Moraes. O inquérito é a “árvore envenenada” da qual saíram os processos do 8 de janeiro e todos os atos de repressão política que o STF vem tomando para a construção do seu regime. É a lei número 1, acima de todas as outras. É o Ato 5 do Brasil atual.

Ministro Alexandre de Moraes visita o edifício-sede do STF e avalia estragos após vandalismo – Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

A ilegalidade-matriz levou a mais ou menos todas as outras. Foi aceita, sem contestação real, e o Supremo concluiu que podia fazer tudo. Criou-se, entre um caminhão de outras aberrações que não existem em nenhuma democracia do mundo, o “flagrante perpétuo”, pelo qual o cidadão pode ser preso “em flagrante delito” dias depois da infração da qual é acusado. Qualquer ponto do território nacional (ou do resto do mundo) pode ser declarado “recinto do tribunal” — e, se é no seu “recinto”, o STF se dá o direito de processar o acusado. O ministro Moraes, por exemplo, alega que foi ofendido num bate-boca no Aeroporto de Roma. Se isso fosse verdade (as câmeras de segurança do aeroporto não mostram agressão nenhuma), haveria no máximo um crime de injúria, para o qual está prevista detenção de seis meses e julgamento numa vara de bairro. Mas o caso está há seis meses no Supremo, e pode ficar lá o resto da vida. O mesmo Moraes inventou o foro privilegiado para Janja, como se ela tivesse um cargo no governo. Um moleque de 17 anos invadiu o seu perfil nas redes sociais, coisa que poderia render um BO de terceira categoria; o ministro chamou a história para o STF.

A anistia, objeto de dois projetos de lei ora em discussão, é a única saída decente para a monstruosidade que o STF criou — ou é isso, e o Brasil recebe um sinal de paz, ou são anos e mais anos de santificação da vingança, do ódio e da ilegalidade

Qualquer republiqueta bananeira proíbe que os ministros da Corte superior de Justiça tenham atuação política. No Brasil, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, disse o seguinte, num comício fechado do Partido Comunista do Brasil: “Nós derrotamos o bolsonarismo”. E os 58 milhões de brasileiros que votaram no ex-presidente Bolsonaro nas últimas eleições? Também foram derrotados pelo STF? (Antes, durante a campanha, Barroso havia dito que “eleição não se ganha, se toma”.) Um dos ministros, Dias Toffoli, foi reprovado duas vezes seguidas no concurso para juiz de Direito. Outro, Cristiano Zanin, foi nomeado porque era advogado criminal de Lula. O próximo, Flávio Dino, já chamou Bolsonaro de “serial killer”; os apóstolos da ficção acham que ele vai ser imparcial no possível julgamento do ex-presidente no STF. A propósito, o governo Lula tem 9 a 2 a seu favor no atual plenário; em nenhuma hipótese esses nove votam contra os interesses do presidente. Afirma-se todos os dias, porém, que o STF é um foro isento, envolvido unicamente com a lei e incapaz de tomar decisões políticas.

Folha STF liberdade
Ministros do STF em sessão plenária – Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

A miragem de um tribunal dedicado à democracia, ao equilíbrio entre os Poderes e à defesa da Constituição fica ainda mais falsa com a recusa do STF, cada vez mais agressiva, em aceitar que o Congresso Nacional faça as leis do país. Os senadores acabam de ser chamados de “pigmeus morais” pelo ministro Gilmar Mendes, apenas por terem aprovado uma lei altamente bem-comportada que desagradou o tribunal. É virar as coisas do avesso. O STF age como se o Congresso não pudesse alterar a Constituição ou escrever as leis — quando, na verdade, o único Poder que tem direito de fazer isso é justamente o Legislativo. A última agressão envolve o caso dos vetos de Lula à lei do “marco temporal”, aprovada pelo Congresso. Os vetos do presidente levaram uma surra nos plenários: foram rejeitados por 321 a 137 na Câmara e por 53 a 19 no Senado. É duro encontrar uma maioria clara como essa, mas a esquerda vai ao STF para que os ministros declarem que a decisão é “inconstitucional”. É a trapaça de sempre. O PT, Psol, PCdoB etc. perdem a votação democrática na Câmara e no Senado; correm então ao STF para anular a lei que foi aprovada pelos representantes do povo.

Poucas coisas deixam tão clara a ficção de que o consórcio STF-Lula é uma “vitória da democracia” quanto a atitude hostil de um e outro em relação à anistia para os condenados pelo 8 de janeiro. A anistia, objeto de dois projetos de lei ora em discussão, é a única saída decente para a monstruosidade que o STF criou — ou é isso, e o Brasil recebe um sinal de paz, ou são anos e mais anos de santificação da vingança, do ódio e da ilegalidade. Mas em vez de dar uma chance para a volta da razão, pelo menos nesse desastre, estão com “os olhos cheios de sangue”, como diria Alexandre de Moraes. Num evento de propaganda do governo, e recebido como o novo herói da classe operária, Moraes sorria, feliz, para o coro da plateia. “Sem anistia”, gritavam à sua frente — e à frente do ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania. É a “suprema corte” de hoje no Brasil. Quando os extremistas se revoltam contra um gesto de pacificação, sua primeira ideia é pedir socorro ao STF.

(*) J.R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-196/fratura-exposta-no-supremo/

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