É uma tragédia — temos comida demais

É a primeira vez na história da humanidade que a produção de mais alimentos se torna um problema, em vez de uma solução Por J. R. Guzzo (*)

Greta Thunberg, ativista e ambientalista sueca, Tedros Adhanom Ghebreyesus, presidente da Organização Mundial da Saúde, e Bill Gates, ex-diretor-executivo da Microsoft - Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock

Por J. R. Guzzo (*)

Às vésperas da quermesse anual dos bilionários, peixes graúdos da burocracia internacional e magnatas das universidades mais caras do mundo que se reúnem em Davos, na Suíça, para decidir o futuro da humanidade, o presidente da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, fez uma proclamação extraordinária. “Nossos sistemas de produção de alimentos estão prejudicando a saúde das pessoas no planeta”, disse ele. “Esses sistemas contribuem para 30% das emissões de gás do efeito estufa e respondem por um terço do ônus global das doenças.” O dr. Tedros, em vista disso, propõe que os produtores abandonem a atividade agrícola e pecuária como ela é praticada hoje e passem a produzir “dietas mais saudáveis, diversificadas e baseadas em produtos naturais”. Não revelou quais os tipos de cultura que serão permitidos a partir de agora, mas nem seria mesmo preciso. Diga “orgânico”, a respeito de qualquer coisa, e você estará certo. Se quiser caprichar, acrescente que o único modelo de produção rural aceitável hoje em dia é o do MST, com suas abóboras naturais, agricultura “familiar” e “propriedade coletiva” da terra. Vai receber uma salva de palmas em Davos, o pouso preferido nesta época do ano para os Bill Gates da vida, os banqueiros com “pegada” social e os cardumes de marajás da OMS e de outras espécies nativas do mesmo ecossistema.

Esse Tedros, um biólogo formado na Etiópia que preside a Organização Mundial da Saúde sem nunca ter assinado uma receita de Melhoral na vida, é o perfeito improviso da falsa “autoridade mundial” que hoje encanta toda uma porção da humanidade — aquela que descreve a si própria como “progressista”, “igualitária” e “inclusiva”. Não é médico, mas apresenta-se e é considerado pela mídia, pelo ex-governador João Dória e pelo Supremo Tribunal Federal como o gestor supremo da saúde mundial. É, para todos eles, o sinônimo de “ciência”. Lembram-se da covid? A escolha obrigatória era entre o “negacionismo” (coisa da “direita”, provavelmente bolsonarista) e a “ciência”. Tedros era a “ciência”. Foi o campeão mundial do “fique em casa” — do fecha-tudo, distanciamento social, máscara, carteirinha de vacinação, proibição de ir à praia e outras providências consideradas de grande alcance científico. Mas a atração principal dos Tedros e seus similares, para aquela gente toda citada acima, não é a sua conduta na covid; isso é transitório. O que conta é a condição permanente de todos eles. Ninguém ali é eleito. Representam a “resistência do Estado” aos interesses particulares. São os vigilantes encarregados de proteger o mundo dos perigos da liberdade individual. Levam vida de paxá, paga com dinheiro público, mas são contra o capitalismo — que, no seu entender, não resolveu os problemas do “planeta” e deve ser substituído pela “Agenda 2030” da ONU, que com suas 17 metas, 169 alvos e 7,8 mil ações vai nos dar o “desenvolvimento sustentável”.

O único modelo de produção rural aceitável hoje em dia é o do MST, com suas abóboras naturais, agricultura “familiar” e “propriedade coletiva” da terra – Foto: Divulgação/MST
O que um país subdesenvolvido como o Brasil está fazendo com tecnologia espacial, mecanização avançada, plantio direto, biogenética de ponta, drones? Deveria estar cuidando da “floresta” e do mico-leão-dourado

O grande traço de união entre esses combatentes, como se vê na imprensa a cada chuva, ventania ou subida do termômetro durante o verão, é hoje a “crise do clima” ou a “emergência climática”. Não dá para viver o tempo todo de covid, não é mesmo? A solução encontrada para colocar o mundo sob a autoridade dos altos funcionários internacionais, dos bilionários que querem doar US$ 1 bilhão (depois que as suas fortunas passaram dos primeiros 100 bi) e das classes culturais que têm desejos, mas não têm votos, é a “mudança do clima”. A ideia-mãe é dar às autoridades, aos “cientistas” e aos “especialistas” o poder de exigir ou de proibir que as pessoas, as empresas e quem quer que seja façam isso ou aquilo. Impede-se assim que “o clima” mude. A mensagem é sempre a mesma: para evitar um mal que pode destruir toda a civilização, é razoável que você renuncie à sua liberdade — e deixe as pessoas que entendem do assunto tomarem as decisões em seu lugar. Os fenômenos naturais, de acordo com essa nova teoria revolucionária, não são mais produzidos pela natureza. São produzidos pelos “sistemas econômicos” que estão em vigor. Quando há um terremoto, por exemplo, ou um vendaval, ou um vulcão soltando fogo, os culpados são o homem e a sua conduta irresponsável; produz errado, consome errado, vive errado. A “crise do clima” provoca inflação, segundo a presidente do Banco Central Europeu. Consegue até coisas que você jamais imaginou: de acordo com a ministra brasileira da “Igualdade Racial”, a “crise do clima” é a causa — ou o efeito, não deu para entender bem — do “racismo ambiental”. Teve enchente no Rio de Janeiro? É o “racismo ambiental”, segundo a ministra.

Encontro das águas dos rios Negro e Solimões, no Amazonas – Foto: Reprodução/Redes Sociais

Lado a lado com a “emergência climática”, e com os mesmos propósitos, anda sua irmã gêmea — a proliferação crescente da agricultura e da pecuária modernas através do mundo, particularmente em lugares como o Brasil, que não teriam nada de se meter com uma coisa ou com outra. (O que um país subdesenvolvido como o Brasil está fazendo com tecnologia espacial, mecanização avançada, plantio direto, biogenética de ponta, drones? Deveria estar cuidando da “floresta” e do mico-leão-dourado.) É uma espécie de pesadelo para as ideologias corretas. Há cada vez mais gente comendo no mundo (e, pior do que tudo, comendo carne) e isso provoca um aumento cada vez mais perigoso na produção de alimentos. Tal aumento, por sua vez, permite que a população pobre na África e na Ásia, por exemplo, continue a crescer — e a estimular a produção de mais alimentos. É um círculo realmente vicioso, que tira o espaço das girafas, das plantas e das pedras em favor do homem. Produz efeito estufa. Consome água. Consome fertilizantes. Consome energia. Leva à construção de estradas, ferrovias e portos. Em suma — é uma tragédia, do ponto de vista da Universidade de Harvard, de quem ganha salários acima de US$ 500 mil por ano e da corte real da Dinamarca.

As facções intelectuais, em geral, assinam embaixo disso tudo — mesmo no Brasil, onde deveriam reservar algum espaço em suas cabeças, pelo que se poderia imaginar, para os interesses objetivos do país onde vivem. “Não se trata mais de produzir, de forma segura, barata e abundante, calorias para uma população crescente”, escreveu recentemente o professor Ricardo Abramovay, catedrático da Faculdade de Saúde Pública da USP. Ele reconhece que o atual sistema de produção de alimentos trouxe resultados positivos “no aumento da oferta e no combate à fome”, mas diz que “a pauta do século 21 é outra”. Segundo o professor Abramovay, é preciso buscar “uma nova fronteira da nutrição”, pois “a presença crescente de produtos ultraprocessados nos regimes alimentares contemporâneos é o principal vetor das doenças não transmissíveis, as que mais matam no mundo.” O que fazer, então? Não está claro. Sem a intensa industrialização de alimentos, do leite em pó ao frango embalado a vácuo, há fome em massa, simplesmente isso — as multidões da África, da Ásia e do próprio Brasil não podem viver com as cenouras das hortas orgânicas dos artistas da Rede Globo, do MST e dos executivos do Vale do Silício. O especialista da USP, depois de lembrar que a obesidade convive com a má nutrição, sobretudo nos países mais pobres, reivindica a produção de alimentos que atendam “a diversidade da qual o organismo humano necessita”. É o que pregam, hoje, a OMS e o empresariado estilo Davos. Sua recomendação é acabar com a “monotonia do sistema agroalimentar global”, cujo “epicentro está no Brasil”, segundo o professor. Na sua opinião, aliás, esse sistema tem “os seus dias contados”.

Não se sabe quanto o somaliano médio, que não tem ideia de onde virá a sua próxima caneca de sopa, está preocupado com a monotonia da sua alimentação. Mas os cientistas estão preocupados por ele — e isso em geral não é uma boa notícia para quem está com fome. Nunca é, por sinal, quando funcionários públicos de alto escalão e salário ainda melhor se encarregam de definir, processar e resolver os problemas dos pobres. A maioria das ideias em circulação não é de animar ninguém. Há propostas, levadas cada vez mais a sério por aí, de produzir menos alimentos — e de substituir a comida conservadora de hoje por insetos, que têm todos os nutrientes necessários ao organismo humano; seu consumo vai preservar a natureza. Há cientistas de algo chamado “bioética” que sugerem modificações genéticas para fazer as pessoas não gostarem mais de comer carne. Na Holanda, a bandeira das autoridades é: “Matem as vacas”. Querem reduzir, com isso, as emissões de nitrogênio e amônia. Sua meta é investir 25 bilhões de euros até 2035 para eliminar um terço do rebanho nacional — algo que equivaleria, no Brasil, ao extermínio de 70 milhões de cabeças. Na Alemanha o governo está aumentando os impostos para desestimular a atividade rural. Fala-se, escuramente, na “necessidade de reduzir a população mundial”.

Na Holanda, a bandeira das autoridades é: “Matem as vacas”. Querem reduzir, com isso, as emissões de nitrogênio e amônia – Foto: Shutterstock

É a primeira vez na história da humanidade que a produção de mais alimentos se torna um problema, em vez de uma solução. Em 1800, ou por aí, a população mundial chegou a 1 bilhão de habitantes. Foi um pânico. Os melhores cientistas da época, a começar por Thomas Malthus, membro da Royal Society britânica, matemático, economista e pai da demografia, asseguravam que a situação do planeta era insustentável. A produção de alimentos, calculavam, crescia em progressão aritmética — e a população, numa PG de meter medo, que os meios de subsistência jamais poderiam acompanhar. A única saída seria o controle populacional. Os fatos, na época, eram sombrios. A “Grande Fome” da Irlanda, entre 1845 e 1850, acabou com 25% da população do país; houve 1 milhão de mortos e mais 1 milhão tiveram de emigrar. Na China, entre 1810 e 1850, estima-se que cerca de 45 milhões de pessoas morreram de fome. Antes disso, a pura e simples falta de comida era uma realidade inevitável, como as secas, enchentes e outros fenômenos naturais. De lá para cá a população mundial se multiplicou por oito, para chegar aos 8 bilhões de habitantes de hoje — e não acontece nada de parecido com o que aconteceu na Irlanda, na China e sabe-se lá onde mais. O tempo de vida médio das pessoas, na verdade, está aumentando. Só nos últimos 30 anos, passou de 60 anos de idade para mais de 70; não só há mais gente, como essa gente vive cada vez mais. É o contrário do que estabelecia a ciência. Sem que fosse possível prever, a tecnologia, a aplicação do capitalismo no campo e o aumento maciço do conhecimento humano fizeram a revolução que permite a um mundo com 8 bilhões de pessoas viver, do ponto de vista da alimentação, melhor do que jamais viveu antes. Para a visão do progressismo global, porém, estamos à beira do abismo, pela destruição da natureza, pelas mudanças no “clima” e pela má conduta do ser humano — com os seus hábitos de consumo, a tendência de comer todos os dias, o “sistema econômico” e tudo o mais que está aí. Há gente demais no mundo, e essa gente está vivendo do jeito errado.

Em Uma Proposta Modesta, uma das sátiras mais notáveis já produzidas pelo espírito humano, Jonathan Swift fez algumas sugestões que seriam recebidas com grande interesse no Davos de 2024. O autor de As Viagens de Gulliver, num ensaio publicado 300 anos atrás, propôs às autoridades, milionários e cientistas políticos da época uma solução a seu ver ideal para o problema da miséria na Irlanda — as famílias pobres deveriam vender seus filhos pequenos como carne humana para os lordes da Inglaterra. “Uma criança de um ano é um alimento delicioso, nutritivo e saudável, seja ensopada, grelhada, assada ou cozida”, escreveu Swift em sua proposta. “Não tenho dúvidas de que possa igualmente servir num fricassê ou num ragu.” As vantagens, dizia ele, eram evidentes. Os pais, com o dinheiro da venda, escapariam da fome. Haveria menos mendigos pedindo esmola nas ruas. As crianças vendidas para o cardápio dos nobres deixariam de ser um peso econômico para a família e a nação. Haveria menos crime no futuro, pois filho de pobre tende a ser criminoso quando cresce. Recursos naturais preciosos seriam poupados. A população supérflua seria eliminada. Em vez de um problema, em suma, as crianças miseráveis da Irlanda passariam finalmente a ter alguma utilidade para o público.

Jonathan Swift, realmente, está fazendo uma falta danada neste mundo de Bill Gates, da menina Greta e do dr. Tedros.

Em Uma Proposta Modesta, Jonathan Swift fez algumas sugestões que seriam recebidas com grande interesse no Davos de 2024 – Foto: Reprodução

(*) J.R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-200/e-uma-tragedia-temos-comida-demais/

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