A tragédia chega ao Supremo

Cleriston Pereira da Cunha é o primeiro cadáver da repressão ilegal comandada pelo STF aos 'atos golpistas' de 8 de janeiro

Por J.R. Guzzo (*)

Regimes que não respeitam a lei, eliminam direitos individuais e suprimem liberdades públicas acabam, mais cedo ou mais tarde, entrando em contato com a morte. Não há como ser diferente. Uma decisão ilegal leva a outra, pior que a primeira. A decisão seguinte é pior ainda — e por aí se vai, numa reação em cadeia na qual os autores das ordens só conseguem dar sequência a uma ação radical tomando outra mais radical que a precedente. Como não encontram nenhuma oposição de verdade, e dispõem da força armada para impor qualquer decisão, passam a agir como se não tivessem limites. O resultado, inevitável, é que vão perdendo cada vez mais o controle sobre as consequências dos seus atos. Uma violação da lei, para manter-se de pé, exige sempre uma outra mais grave, e mais uma, e mais uma — até que alguém morre. É o que acaba de acontecer com o cidadão Cleriston Pereira da Cunha, um dos presos nos tumultos do dia 8 de janeiro em Brasília. O Supremo Tribunal Federal foi tirando todos os seus direitos, um depois do outro. Acabou, agora, por lhe tirar o direito à vida (Leia também, nesta edição, as reportagens de Augusto Nunes e Cristyan Costa).

Cleriston morreu por falta de cuidados médicos adequados no pátio da penitenciária da Papuda, em Brasília — pouco antes de completar 11 meses de prisão preventiva, sem julgamento. Sua morte não foi um acidente que poderia acontecer a qualquer um. Com diabetes, problemas de circulação e hipertensão, ele não poderia, pela lei brasileira, estar numa cadeia. Teria, obrigatoriamente, de estar num hospital, recebendo os medicamentos indicados, nas doses certas e nos horários corretos. Não se trata de uma opinião de quem “não gosta do STF” ou da “democracia”, como diz o ministro Luís Roberto Barroso. Segundo informa um relatório médico oficial assinado e apresentado pela doutora Tania Maria Antunes de Oliveira no dia 27 de fevereiro de 2023, Cleriston corria “risco de morte por imunossupressão e infecções”. A médica pedia urgência no tratamento do seu caso, mesmo porque ele tinha perdido uma consulta marcada para o dia 30 de janeiro, por estar na prisão. Já tinha sido internado no hospital durante 33 dias no ano passado, para tratar da mesma doença. Tinha de tomar pelo menos quatro remédios diferentes por dia.

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Em sua foto de perfil do Facebook, Cleriston Pereira da Cunha (conhecido como “Clezão”) posa, sorridente, com sua mulher, Edjane, e as duas filhas do casal | Foto: Reprodução/Facebook/Clezão do Ramalho

Durante oito meses e meio inteiros, o ministro Alexandre de Moraes, relator do processo, não tomou conhecimento dessas informações — e dos pedidos de soltura do réu para tratamento médico de emergência, feitos por seus advogados com base no relatório da doutora Tania. Cleriston, ao longo desse período, sofreu diversos desmaios e ataques de vômito, e teve de ser levado ao pronto-socorro da penitenciária; seu estado tornou-se cada vez mais grave. A situação chegou a tal ponto que o próprio Ministério Público, encarregado de fazer a acusação, pediu a Alexandre de Moraes que Cleriston fosse solto, agora no dia 1º de setembro. Como já tinha acontecido com o relatório médico, o ministro ignorou o pedido do MP. Não disse nem sim nem não; apenas não respondeu nada. Agora, depois de 285 dias de prisão sem ter sofrido condenação nenhuma, e quase dois meses após a solicitação de sua soltura pelo MP, Cleriston morreu na Papuda. É aonde se chegou, enfim, pelo encadeamento de uma ilegalidade com outra, em gravidade crescente; ele não podia ter sido preso, o inquérito do STF não podia ter sido feito, sua prisão não podia ser mantida. Deu no que deu.

Cleriston acabou se tornando o primeiro cadáver da repressão ilegal aos “atos golpistas” que vem sendo comandada desde janeiro pela suprema corte de Justiça do país — a maior aberração já ocorrida na história do Poder Judiciário do Brasil. A vítima não morreu porque quis dar um “golpe de Estado”, como dizem os ministros, a esquerda nacional de alto a baixo e a maior parte da mídia. Morreu porque o STF o deixou sem assistência médica durante os 11 meses seguidos em que esteve sob a sua custódia e sob a sua responsabilidade. Os ministros do STF quiseram matar o preso? É óbvio que não. É óbvio, também, que tomaram uma série de decisões objetivas cujo resultado inevitável foi a morte do cidadão que, segundo a lei, tinham a obrigação de manter vivo — dentro das possibilidades da medicina, é claro. Foram avisados, por laudo médico das próprias autoridades, que o acusado corria o risco de morrer. Não fizeram nada, durante meses e meses. Ignoraram o MP. De quem é, então, a responsabilidade legal pelo que aconteceu? É unicamente da autoridade pública que o mantinha preso e podia autorizar, ou negar, sua internação no hospital. O STF negou. Xeque-mate.

Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso | Foto: TSE

Naturalmente, o STF não liga a mínima para a morte de Cleriston ou de qualquer dos mais de mil cidadãos que estão sendo condenados a até 17 anos de cadeia por terem participado de um quebra-quebra. Por que ligaria? Não ocorre a quase nenhum ministro que as suas decisões envolvem seres humanos de carne, osso e alma — e, portanto, merecedores naturais de sentimentos como a compaixão, piedade ou clemência. A única maneira pela qual Alexandre de Moares e a maioria dos seus colegas enxergam essas pessoas é como “bolsonaristas” — e na sua visão de democracia bolsonaristas não têm direitos constitucionais, nem de qualquer outro tipo. Se tivessem, no entender do STF, iriam “usar” seus direitos para acabar com o “estado democrático de direito”; não podem, portanto, pretender a proteção da lei e do sistema judicial. Além disso, os ministros estão convencidos de que são eles, e mais ninguém, que dizem o que é a realidade. Se decidem que um fato não existe, esse fato não aparece na Rede Globo — e, se não aparece na Rede Globo, eles ficam com a certeza de que o fato não existiu. “Cleriston? Que Cleriston? Não temos nada a ver com isso.”

É uma coincidência realmente extraordinária que o primeiro cadáver do 8 de janeiro tenha aparecido justo agora, quando o Ministério dos Direitos Humanos acaba de publicar no Diário Oficial a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 2018, que condenou o Estado brasileiro pela morte do jornalista Vladimir Herzog, 48 oito anos atrás. Herzog estava preso numa delegacia da polícia política do regime militar, em São Paulo, onde os inimigos do governo eram regularmente torturados; apareceu morto na sua cela, e as autoridades legais da época disseram que ele tinha se “suicidado”, sem nunca apresentar provas disso. O caso jamais foi julgado num tribunal brasileiro. Mas a CIDH, quase meio século depois, declarou que a culpa pela morte foi dos carcereiros. De quem mais poderia ter sido, se ele morreu enquanto estava sob a guarda da polícia? O STF pode contestar, com indignação, que se compare um caso com o outro — mesmo porque a morte do jornalista foi um homicídio. Mas o fato concreto é que os dois morreram quando o Estado, que os havia prendido, era o responsável por suas vidas.

Vladimir Herzog
Vladimir Herzog é referenciado pela esquerda como um símbolo dos crimes do regime militar brasileiro | Foto: Divulgação/Memóriasdaditadura.org

É possível que o regime militar não tenha querido matar Herzog; seus agentes queriam apenas torturar, mas erraram na dose e acabaram matando o preso. Como alguém poderia considerar que isso é uma desculpa, ou algum tipo de atenuante? Alexandre de Moraes e seus colegas também não tinham a intenção de matar Cleriston. Acham, com o apoio automático do sistema de apoio a Lula, da maioria dos meios de comunicação e da elite, que estão punindo uma tentativa de “golpe de Estado” — embora nenhum dos acusados tivesse sequer um estilingue para derrubar o governo. Também não causaram qualquer ferimento; ninguém precisou de um único e escasso band-aid em todo o distúrbio. O preso do STF, certamente, não foi torturado; só foi mantido na prisão quando havia um laudo médico avisando que ele corria risco de morte se não fosse para o hospital. Não existe como negar, portanto, que morreu por causa das decisões que o STF tomou sobre ele — a pior das quais foi lhe negar, sem razão aparente nenhuma, o tratamento médico indispensável. O STF não quis o resultado. Mas não há dúvida de que foi a sua causa.

“Os senhores são as pessoas mais odiadas do Brasil”, disse o advogado Sebastião Coelho, que defende um dos réus, na sessão que abriu o julgamento dos episódios do dia 8 de janeiro. Os ministros, na ocasião, se mostraram revoltados; os bajuladores mais excitados chegaram, inclusive, a pedir “punição” para Coelho. Mas a verdade é que, ao insistir num tipo de conduta que conduz a tragédias como a morte de Cleriston, o STF está deixando junto à população uma imagem de crueldade que a Justiça brasileira nunca teve. Isso, como dito acima, não parece ser um problema para os ministros. Não prestam contas a ninguém, têm o apoio da polícia e das Forças Armadas e apostam na covardia das mesas diretoras do Congresso para continuarem agindo sem correr nenhum risco. Transformaram a Rede Globo e quase toda a imprensa brasileira num departamento de propaganda política — em perfeita simetria, aliás, com o que faz o governo Lula. Vivem numa cápsula impermeável ao Brasil e ao resto do mundo, protegidos por carros blindados, por seguranças que têm armamento pesado e por um isolamento físico que lhes permite viver praticamente sem nenhum contato com o cidadão brasileiro comum. Suas sentenças são a primeira, a segunda e a terceira instâncias ao mesmo tempo; qualquer decisão que tomam passa mecanicamente “em julgado” e torna-se um “ato jurídico perfeito”.

Em compensação, o STF se envolve numa situação de dependência cada vez maior em relação ao governo Lula e às forças que lhe dão apoio. É uma dependência mútua, pois o presidente, o PT e os seus partidos-satélites da extrema esquerda também dependem hoje do Supremo. Mas continua sendo uma dependência — para sobreviver, o STF precisa cada vez mais de Lula e de quem obedece às suas ordens. Como consequência direta disso, o tribunal está operando, já há muito tempo, sem um código legal ou moral: age e reage em função dos interesses do governo e dos seus. Que código de conduta pode ter uma corte de Justiça que anula provas materiais de corrupção, como a livre confissão dos culpados e a devolução de bilhões de reais em dinheiro roubado — e, ao mesmo tempo, decide que não é preciso nenhuma prova para condenar a penas de prisão extremas os acusados do 8 de janeiro? O STF não tem mais um mapa para indicar o rumo correto a seguir nas suas decisões — o caminho da lei, da jurisprudência ou da reponsabilidade pelos efeitos práticos que provoca na ordem social, econômica e política do país. Sem código e sem mapa, fica também sem lógica. Sai o raciocínio. Entra a força.

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, sustenta que “as pessoas” criticam o tribunal porque “não gostam” das suas decisões, como a torcida não gosta das decisões de um juiz de futebol. Fica, diante do que disse e do que aconteceu, a seguinte pergunta: como é possível, dentro de qualquer sistema racional de pensamento, alguém gostar do conjunto de decisões que levaram à morte de Cleriston Pereira da Cunha, por falta de atendimento médico, na prisão onde estava havia quase 11 meses — e sem ter sido jamais condenado por qualquer crime? Não haverá resposta. Há pelo menos cinco anos o STF se sente autorizado a não dar resposta nenhuma a ninguém.

O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, concede ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, a Grã-Cruz, o mais alto grau da Ordem de Rio Branco, em solenidade realizada no Palácio do Itamaraty, em Brasília (21/11/2023) | Foto: Wilton Junior/Estadão Conteúdo

(*) J.R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-192/a-tragedia-chega-ao-supremo/

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