A lei somos nós

O que vale no Brasil de hoje não é o que está escrito no Código Penal — mas aquilo que sai do gabinete do ministro Alexandre de Moraes ou de seus colegas

Por J.R. Guzzo (*)

Vale a pena, por um instante, pensar no que está acontecendo com a tramoia, ora em execução conjunta por Lula e pelo Supremo Tribunal Federal, para anular uma decisão legítima do Congresso Nacional — provavelmente, na verdade, a decisão mais aplaudida pela população em toda a história do legislativo brasileiro. É um retrato em alta definição do golpe de estado que está sendo imposto ao Brasil, dia após dia, com a falsificação das leis e da Constituição Federal através de decisões judiciais. O STF rasga a lei na cara de todo mundo; mas um ministro diz que nesse caso, e em todos os casos que o STF quiser, a lei rasgada era ilegal, e que a única lei legal, dali por diante, seria a lei que os ministros aprovassem. É um avanço no processo de evolução biológica das tiranias. Agora não é mais o Exército que dá o golpe; os militares apenas procuram uma toga para obedecer, em vez de um general, e aí se colocam a seu serviço de olhos fechados. Dizem que estão defendendo a “legalidade”. Só que a lei, para eles, não é mais o que está escrito na Constituição e nos códigos, mas nos despachos do ministro fulano ou do ministro beltrano. Quem elimina o estado de direito e dá o golpe, agora, são os altos magistrados. É uma quartelada em que o Exército fica no quartel — e entrega aos juízes, junto com a polícia, a força armada necessária para manter vivo o governo ilegal que montaram no Brasil em parceria com o presidente Lula.

A tramoia mencionada acima é a ressureição pelo STF, por exigência de Lula, de um cadáver que, enquanto não era cadáver, só tomou dinheiro do trabalhador — o imposto sindical. Essa indecência aberta, que extorquia um percentual do salário de todos os brasileiros, sindicalizados ou não, para entregar aos sindicatos e à CUT, foi extinta pelo Congresso em 2017. Para Lula e a esquerda que se pendura nele, foi bem pior que uma extinção — foi uma humilhação. O Congresso, na verdade, tornou o imposto voluntário. Quem quisesse dar essa “contribuição” aos sindicatos poderia continuar dando, quem não quisesse não precisava dar mais. Todo mundo sabe o que aconteceu: praticamente ninguém quis pagar nem um centavo de imposto sindical dali para diante. Foi um dos exemplos mais perfeitos da aplicação direta da vontade popular, em qualquer lugar do mundo, por parte de um Legislativo — que, afinal, existe para fazer exatamente isso, mas quase sempre só cuida dos seus próprios interesses. O Congresso, num momento raríssimo, deu ao cidadão brasileiro a oportunidade de escolher, ele próprio, o que queria: pagar ou não o imposto sindical, por sua livre escolha. Os brasileiros, de forma esmagadora, responderam: “Não queremos”. O que mais se pode esperar em termos de clareza em uma resposta? O trabalhador não quer dar dinheiro para os sindicatos. Se quisesse, poderia continuar dando. Não quis, definitivamente.

Luiz Inácio Lula da Silva, Alexandre de Moraes e Rosa Weber (12/12/2022) – Foto: Antonio Augusto/Secom/TSE

Não importou, nesse episódio histórico, qual era a vontade dos deputados e senadores, de qualquer partido ou tendência; não importou o que Lula, a CUT, a esquerda ou a direita queriam. A decisão foi totalmente entregue aos trabalhadores brasileiros, e eles mostraram a sua vontade da forma mais indiscutível que o ser humano conhece — abrindo ou não o próprio bolso, e a decisão foi não abrir. A verdade, nua e crua, é a seguinte: quem quer que o imposto sindical seja obrigatório é Lula, e não “os pobres” que ele jura defender o tempo todo. O presidente continua, até agora, prometendo a sua “picanha” imaginária (agora com uma “cervejinha gelada”), mas na hora de ver dinheiro em cima da mesa, ele quer meter a mão no bolso do infeliz que ganha salário de R$ 2 mil por mês, para repassar aos parasitas dos sindicatos. Eles já ganham do Tesouro Nacional, por conta dos empregos de luxo que têm no governo; querem, além disso, roubar o trabalhador. É roubo esse imposto: o sujeito não quer pagar, mas Lula quer que pague à força. Qual é a diferença em relação a um assalto? A diferença é que o assalto, no imposto, vai se repetir a vida toda.

Lula quer que o STF anule a lei legitimamente aprovada pelo Congresso — e o STF está pronto para atender a mais essa manifestação da vontade divina

A lei aprovada pelo Congresso e apoiada maciçamente pela população é algo que se assemelha ao chamado “ato jurídico perfeito” — uma decisão que não pode mais ser mudada, pois preenche tudo o que a lei pode exigir de um diploma legal. Não só teve os votos dos deputados e senadores; foi levada à apreciação do mesmíssimo Supremo Tribunal Federal, em 1918, e os ministros decidiram que ela era perfeitamente constitucional. O que mais se poderia querer, então, para encerrar esse assunto de uma vez por todas? Ilegal, mesmo, era o imposto sindical obrigatório. O tão falado artigo 5 da Constituição, que faz a lista de todos os direitos da pessoa humana, um por um, diz que ninguém neste país pode ser obrigado a se associar a qualquer tipo de organização. Se ninguém é obrigado a ser sócio de sindicato nenhum, menos ainda pode ser obrigado a pagar para sustentar um negócio do qual não quer fazer parte. O que mais se poderia esperar, humanamente, da perfeição jurídica, política e moral de uma lei aprovada pelo Congresso Nacional? Pois então: é isso, exatamente isso, que Lula está exigindo: que a lei seja anulada e o pagamento do imposto sindical volte a ser obrigatório, embora a população venha deixando claro, há seis anos seguidos, que não quer pagar mais. Numa democracia medianamente séria, os cidadãos mandariam Lula passear. Mas isto aqui é o Brasil ilegal criado pelo STF em favor do presidente, dos seus parceiros e dos parceiros dos parceiros. É mantido de pé unicamente pela força bruta da Polícia Federal e, caso necessário, do Exército que lhe serve hoje como tropa de apoio. Lula quer que o STF anule a lei legitimamente aprovada pelo Congresso — e o STF está pronto para atender a mais essa manifestação da vontade divina.

Congresso Nacional – Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Como assim, se há cinco anos o STJ já decidiu que não há nada de errado com a lei que tornou voluntário o imposto sindical? De lá para cá, não mudou rigorosamente nada. A Terra não bateu na Lua. Os números pares continuam se alternando com os números ímpares. Os trabalhadores não resolveram, de repente, que querem pagar o imposto outra vez. A questão que o STF já julgou em 2018, enfim, é exatamente a mesma que está julgando em 2023. O que acontece é que o Brasil, neste meio-tempo, deixou de ser uma democracia com leis, direitos e deveres e passou a ser uma ditadura construída em cima de despachos judiciais e governada por uma junta — a associação de assistência mútua entre o STF e o Sistema Lula. O ministro que provavelmente vai acabar decidindo essa história, e que votou a favor da lei cinco anos atrás, está dizendo que agora vai votar contra porque “mudou de ideia”. Conversa. Ninguém pode dizer que achava que 2 + 2 eram 4 em 2018, mas que agora acha que são 5. É que Lula quer cobrar o imposto que os “golpistas” da direita deixaram de cobrar — e o STF faz o que Lula manda, enquanto Lula tem de fazer o que o STF quer. É assim que funciona. Depois de tirar Lula da cadeia, onde cumpria pena por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, anular as suas condenações e entregar a ele a Presidência da República, o STF resolveu amarrar o seu futuro ao futuro do novo sócio. Desconfiam que a esta altura, e depois de tudo que fizeram, não vão conseguir sobreviver sem ele, ou numa democracia de verdade. Como chamar de democracia um regime onde o STF e Lula fazem o que estão fazendo?

O Supremo e o presidente só conseguem mandar do jeito que mandam porque transformaram o Brasil num país em que a lei são eles. O imposto sindical é uma prova objetiva disso. Se podem anular uma lei na hora que bem entendem, por que não fariam isso de novo, quantas vezes quisessem? Já fizeram; podem fazer a qualquer momento. Talvez nada ilustre tão bem o Brasil de hoje quanto esse esforço alucinado, por parte de Lula, seus ministros e o STF, de transformar um reles bate-boca de aeroporto num “atentado contra o estado de direito” — uma ação praticada por “animais selvagens”, segundo o presidente da República, e por “bolsonaristas” que estão “soltos na rua” e precisam ser “extirpados”. O próprio ministro Alexandre de Moraes, a figura central do episódio, alega que foi vítima de um crime contra a honra, e não que o Brasil sofreu uma tentativa de golpe de estado. No caso, como não é calúnia ou difamação, só pode ser injúria um delito que está previsto no artigo 140 do Código Penal; a pena é de um a seis meses de detenção, ou multa. Fala-se, também, de uma possível lesão corporal leve; parece que um par de óculos caiu no chão. Mas não há exame de corpo de delito — e de qualquer forma, quinze dias depois da confusão, ainda não apareceram imagens do que aconteceu, não há testemunhas, e as versões de vítima e agressores são opostas. Como uma mixaria dessas pode ser inflada à dimensão de crime de lesa-pátria? É democracia um país onde se faz isso?

Fachada do STF, em Brasília – Foto: Montagem Revista Oeste/Fellipe Sampaio/SCO/STF

A presidente do STF — isso mesmo, a presidente da suprema corte de justiça do Brasil, e não um sargento da PM — fez uma agressão frontal ao que está escrito na lei brasileira, ao mandar apreender computadores, celulares e outros bens pessoais dos acusados. Seus carros foram vasculhados pela polícia enquanto eles estavam sendo interrogados. Que diabo quer dizer isso tudo? Desde quando a presidente do STF envolve o Tribunal num caso de rixa? Desde quando a Polícia Federal investiga supostos crimes de injúria ou de lesão corporal leve — e desde quando é autorizada a fazer operações de busca e apreensão contra os acusados de uma insignificância como essa? Só porque Lula e seu ministro da Justiça dizem que a pátria está em perigo de morte, nenhuma autoridade é obrigada a levar algum deles a sério. Foi uma briga de sala vip, só isso; a acusação de hostilidade a um ministro não pode ser considerada um ato de agressão ao Estado brasileiro. Mas, no Brasil governado pelo comissariado Lula-STF, essa confusão vai ficando cada vez mais fanática — e perigosa. É o que se pode ver pela prodigiosa decisão de um juiz de Alagoas que prendeu uma jornalista, acusada de calúnia e difamação, com base numa decisão do ministro Moraes. A lei, muito pura e muito simplesmente, não permite a prisão de ninguém pela prática de crimes contra a honra, em nenhuma circunstância. Nunca se viu nada parecido com isso na história da Justiça brasileira ou de qualquer país. Mas e daí? O que vale no Brasil de hoje não é o que está escrito no Código Penal. O que vale é aquilo que sai do gabinete do ministro Moraes ou de seus colegas. Moraes, obviamente, não é responsável pelas decisões de um juiz de Maceió. Mas o juiz de Maceió e sabe-se lá quantos outros já estão achando que a lei é Moraes — e o STF.

(*) J.R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

DEIXE SEU COMENTÁRIO

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.