A diplomacia das ideias mortas

Lula não tem 'política externa'; tem uma agenda de turismo para encher o álbum de fotos da mulher e fugir dos problemas que nem ele nem o seu governo têm a menor ideia de como resolver

Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, embarcando para Letícia, na fronteira entre Brasil e Colômbia - Foto: Cláudio Kbene/PR

Por J. R. Guzzo (*)

Não há em cartaz no planeta, neste momento, nenhuma exibição mais rasa de subdesenvolvimento, de palhaçada típica do pobre diabo que quer entrar de penetra na festa e de cafajestismo em estado bruto do que o programa de volta ao mundo que Lula e a mulher fazem há seis meses. Desde que pegaram a chave do Tesouro Nacional para sair por aí detonando o dinheiro do pagador de impostos brasileiro, sem controle de ninguém, não pararam mais. É um dos sonhos de consumo mais recorrentes do brega-padrão: viajar pelo mundo “sem pagar um tostão”, com hospedagem em hotéis que cobram diária de R$ 40 mil e jato pessoal equipado com dormitório exclusivo para o casal — ou na base do “vamo gastá, que o governo paga tudo”. Quem paga é você, claro, mas eles estão pouco se lixando para você. O que querem é a viagem de paxá, carregando junto, e por conta do Erário, um cardume gigante de bajuladores-raiz e de jornalistas extasiados com a visão divina do presidente. Acham, ou fazem de conta que acham, que estão realizando algo importantíssimo para a geopolítica mundial. São apenas um bando de suburbanos deslumbrados com mais uma “viagem grátis”. Vão a Paris, Londres ou Roma para ficar falando entre si em português e torrando dinheiro que não é deles. É cômico. Também é uma lástima.

Lula e o cardume descrevem o que estão fazendo como diplomacia e, pior ainda, como “diplomacia de Terceiro Mundo”, para mostrar aos países ricos (e brancos, e imperialistas, e etc. e tal) que os pobres, unidos, jamais serão vencidos. Lula exibe-se como líder mundial e acha que estão lhe devendo há muito tempo o Prêmio Nobel da Paz — embora nunca tenha tido capacidade, estatura ou o mínimo de competência para pacificar uma briga de botequim. A Rede Globo e o resto da mídia de “consórcio” e de opinião única descrevem essa comédia como “intensa atividade internacional”. Alguns, mais agitados, discutem com caras sérias e palavras difíceis, em suas mesas-redondas depois do horário nobre, o que imaginam ser a “política externa” de Lula. A sua “estratégia” seria essa. As suas “opções” seriam aquelas. A sua “leitura” da situação internacional seria sabe-se lá o que, e assim por diante. Lula não tem “política externa”; tem uma agenda de turismo para encher o álbum de fotos da mulher e fugir dos problemas que nem ele nem o seu governo têm a menor ideia de como resolver. Tornou-se, com suas viagens, um exportador de ignorância — apenas isso.

Se Lula fala sem parar dos “pobres”, e que precisa de mais impostos para socorrer os “pobres”, então por que não dá para os pobres as fortunas que gasta nessas viagens todas?

A ciranda alucinada de Lula — já foi para Argentina, Uruguai, Estados Unidos, Portugal, Espanha, China, Abu Dhabi, Japão, Itália (para tirar foto com o Papa), França e Colômbia e está de viagem marcada para a Bélgica — é, mais do que tudo, uma coisa ridícula. Nenhum outro chefe de Estado do mundo faz algo parecido — não faz hoje e nem fez nunca. Ele, Janja e a mídia não percebem, mas o presidente que se acredita uma nova voz no cenário internacional está apenas fazendo papel de bobo, ou de figura exótica de Terceiro Mundo — como foi um dia o Xá da Pérsia, ou como são hoje esses ditadorezinhos africanos que pousam nos aeroportos da Europa com o peito carregado de medalhas, agendas sem um único minuto de trabalho real e comitivas tamanho XXXXX-L. Desfilam diante da guarda. Vão a banquetes. (O presidente do Brasil, inclusive, reclama da comida que lhe deram nos palácios do Quirinale e do Élysée, em Roma e Paris. Quer se fazer de “homem simples”, que gosta de “um arrozinho com feijão”; consegue apenas ser mal-educado.) Gastam como xeiques das Arábias. Perturbam o trânsito. É um alívio quando vão embora. Lula, no fundo, é apenas um deles. As coisas sérias que os estrangeiros têm para tratar com o Brasil são conversadas em outros lugares, em outras ocasiões e com outras pessoas. Do presidente brasileiro, o que fica é a imagem do subdesenvolvimento arrogante, burro, perdulário e sem noção — como ocupar 57 quartos de um dos hotéis mais caros de Londres para ir à coroação do rei. Por que raios seria preciso levar essa multidão para assistir a uma cerimônia? Assinaram algum tratado? Discutiram exportações ou problemas de legislação internacional? Não. Só passearam e gastaram dinheiro público — como em Portugal, onde conseguiram montar (e pagar) uma comitiva oficial de 22 carros para levar Lula daqui até ali.

Janja e Lula, durante encontro com o papa Francisco, em Roma – Foto: Ricardo Stuckert/PR

Os países ricos que recebem Lula tomam nota dessas coisas; a principal sensação que têm é de desprezo. Dão os sorrisos, fazem os rapapés e tiram as fotos que o protocolo diplomático exige. Nas conversas que têm entre si registram o despropósito ofensivo que é torrar, em viagens patéticas, milhões de dólares de um país pobre. Será que está sobrando dinheiro no Brasil? Se Lula fala sem parar dos “pobres”, e que precisa de mais impostos para socorrer os “pobres”, então por que não dá para os pobres as fortunas que gasta nessas viagens todas? Ele conseguiria citar uma viagem indispensável, só uma, entre todas as que fez, ou que fosse necessária, ou que tivesse servido para alguma coisa de útil? É claro que não. Há, também, a desmoralização do Brasil no exterior. Estrangeiro se dá conta, na hora, do desperdício deslumbrado de chefete de país pobre — acha um insulto ver um presidente como Lula, que diz haver “33 milhões” de pessoas passando fome no Brasil, passear e gastar como um sultão nas suas capitais. Os jornalistas se esforçam para demonstrar que Lula está se “projetando no Exterior”, ou “ocupando espaços para o Brasil” e influindo em assuntos sérios. Falam de “influência”, de “alianças”, de “eixos” e repetem bobagens que ouvem, sem entender direito, no Itamaraty. Não é nada disso. É apenas mais uma farsa, como a picanha geral, o Ministério do Namoro e outros truques de quem não sabe e não quer governar.

Ainda não caiu, para Lula, a Rede Globo e a esquerda brasileira, uma ficha elementar: o valor de mercado da Apple, divulgado outro dia, é 50% superior ao PIB inteirinho do Brasil. São US$ 3 trilhões para eles, ante US$ 2 trilhões para nós. Que tal? É o tipo de coisa que faz qualquer um baixar o facho. Não se trata de achar que o Brasil é uma mixaria, porque o Brasil não é uma mixaria. Trata-se apenas de ter um pouco de consciência do tamanho real do país — o Brasil é o que as realidades mostram, e não o que Lula quer. O presidente e o seu sistema não têm ideia disso. Puseram na cabeça que os “países ricos” estão preocupadíssimos com a influência decisiva do Brasil no mundo e no resto do sistema solar — e acham que podem mudar os destinos da humanidade, que irá para onde Lula for. É a fórmula ideal para dividir a política externa brasileira de hoje em dois pedaços, e apenas dois: o inútil e o nocivo. No pedaço inútil estão tolices de 24 quilates, como o “Parlamento Amazônico”, que Lula acaba de propor na Colômbia, a “moeda comum” do Mercosul, a “parceria” em inteligência artificial com Abu Dhabi (não com os Estados Unidos; com Abu Dhabi) ou a troca de “tecnologia” com a Venezuela — e daí para baixo. No pedaço nocivo não é mais, apenas, o embusteiro falando de coisas que não entende. Aí já é a ação direta contra os interesses concretos do Brasil e dos brasileiros.

Lula, durante chegada a Hiroshima, Japão – Foto: Ricardo Stuckert/PR

O veneno básico está na procura permanente, há seis meses, de um conflito com os Estados Unidos, com os países europeus e com o “imperialismo” mundial, em obediência às doutrinas que encantam o governo Lula. O plano-mestre, nessa toada, é ser amigo político da Rússia, da China e, como regra geral, de qualquer ditadura que se declare vítima do sistema capitalista. Tem sido um desastre, é claro. O grande momento, nesse “alinhamento” com a Rússia, foi a declaração de que a Ucrânia é responsável pela invasão do seu próprio território. Conseguiu, de imediato, ofender diretamente aliados vitais do Brasil; não ganhou nada em troca. Para a “política externa” de Lula, a Europa e os Estados Unidos são culpados por “fragilizarem” a Rússia. O que significa isso? É óbvio que europeus e norte-americanos querem dar apoio à Ucrânia contra a Rússia; estão, a propósito, fazendo há mais de um ano um boicote econômico aberto contra os russos. O que Lula propõe: que o Brasil boicote, em represália, os Estados Unidos e a União Europeia? A diplomacia brasileira permite que navios de guerra do Irã, que tanto americanos como europeus declararam oficialmente uma nação terrorista, ancorem no Porto do Rio de Janeiro. Recebe no território nacional, com todas as honras, o ditador da Venezuela — que está com a cabeça a prêmio pelo Departamento de Estado americano, a US$ 15 milhões, por tráfico internacional de drogas. O Exército Brasileiro faz “manobras conjuntas” com a Nicarágua. O governo gosta da “Palestina” e dos seus terroristas. Não gosta de Israel, que é a única democracia da região. Em suma: é alguma coisa contra o “Ocidente”? Então o Brasil é a favor.

Não pode haver nada mais nocivo aos interesses brasileiros, ao mesmo tempo, do que a insistência de Lula em dar dinheiro para as economias mais fracassadas do mundo — lugares como Venezuela, Cuba ou Argentina. Para Lula, a culpa da ruína econômica da Venezuela não é da ditadura de Chávez e de Maduro — é dos Estados Unidos, que não compram os produtos venezuelanos. Não faz sentido. Para começar: que produtos? A Venezuela não produz nem um prego. Não tem papel higiênico. Não tem nada para vender. É um Saara econômico. Para concluir: a ditadura da Venezuela passa o tempo todo fazendo declarações de guerra aos Estados Unidos. Por que raios os Estados Unidos deveriam ajudar a Venezuela? É a mesma coisa com Cuba. A miséria cubana, segundo Lula, não foi provocada pelo regime comunista; na sua opinião, Cuba seria “uma Holanda” se não fosse pela falta de colaboração dos norte-americanos. Lula quer ajudar também a Argentina — o maior caloteiro da economia mundial. Pede “compreensão” dos credores etc. É claro que ninguém no exterior dá a menor atenção ao que ele diz. Nem o Banco do Brics, onde arrumou emprego para Dilma Rousseff; chinês empresta, mas quer receber o dinheiro de volta, e a Argentina não paga ninguém. Mas aqui no Brasil ele tem acesso aos recursos da população. Vai fazer o que puder para arrancar dinheiro do BNDES, e de outros caixas, para doar à Argentina, Venezuela e quem mais se apresentar como país “progressista”.

Nada disso vai melhorar o Brasil em absolutamente nada — e, no fundo, a “política externa de Lula” talvez nem seja mesmo de Lula. Pelo cheiro da brilhantina, é coisa do companheiro que ocupa, no mundo dos fatos, o cargo de ministro das Relações Estrangeiras. Não é o funcionário que dá expediente no Itamaraty. É o assessor externo Celso Amorim. Lula, basicamente, repete o que ouve de Amorim; é ele quem realmente está por trás do que Lula fica falando por aí, e da estratégia diplomática genial que os dois pensam estar executando. A cabeça de Amorim está congelada num momento qualquer entre 1955 e 1960; ele continua a pensar, hoje, como se pensava durante a guerra fria entre a Rússia e os Estados Unidos. Não parece ter notado que a Rússia perdeu essa guerra, nem que houve algumas mudanças tecnológicas de lá para cá, todas elas geradas pelos norte-americanos. Continua festejando o lançamento do Sputnik, torcendo contra os “trustes internacionais” e dizendo que a Rússia comunista pode até ter umas falhas aqui ou ali, mas precisa ter o apoio de todos para nos salvar dos horrores do capitalismo. Parecem ser fruto do seu sistema cerebral ideias tais quais a eliminação do dólar como meio de pagamento das transações do comércio mundial — e tantos outros dos momentos-chave da diplomacia de Lula. O resultado é que o Brasil não tem mais quem defenda os interesses nacionais no exterior. A diplomacia brasileira se transformou num serviço de apoio a ideias mortas.

Celso Amorim e Luiz Inácio Lula da Silva – Foto: Fábio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

(*) J.R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

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