A cláusula pétrea da roubalheira

Fica cada vez mais claro que a destruição da Lava Jato e a ressurreição política de Lula tiveram um objetivo: eliminar qualquer possibilidade de combater a corrupção no sistema político do país

Foto: Shutterstock

Por J. R. Guzzo (*)

Imagine, num momento de fantasia livre, que um cachorro grande do serviço público recebe 360 dias de férias, de um golpe só. Alguma vez já aconteceu isso na sua vida, ou na vida de alguém que você conhece? Fica pior quando se pergunta por que raios um cidadão pago com o dinheiro dos seus impostos teria 12 meses de férias a receber. O brasileiro comum tem direito a 30 dias de férias por ano; se é um magistrado já pula para o dobro, ou dois meses anuais de folga remunerada, por um mistério que ninguém jamais conseguiu desvendar. Mas como é possível alguém receber do Tesouro todo aquele monte de dinheiro — por acaso ele teria ficado 12 anos seguidos sem tirar férias, trabalhando como um burro de carga, e agora está levando os atrasados? Não há registro na história universal, desde o tempo dos faraós, de algum funcionário público que tenha feito uma coisa dessas. Também não foi agora. O funcionário em questão de fato não tirou férias entre 2017 e 2022. O problema é que ele também não trabalhou durante esses anos — e não trabalhou porque estava envolvido em acusações de corrupção.

É demente — e é puro Brasil 2024. A alucinação descrita acima acaba de acontecer com um conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, que tecnicamente ainda tem o direito ao adicional de 30% sobre os salários devidos às férias (ele ganha por volta de R$ 50 mil por mês) e, para completar, está habilitado a receber tudo em dinheiro. Como seria possível a uma pessoa, pelos princípios mais básicos da física, ter deixado de tirar férias durante o tempo em que não trabalhou? Ela  estava de férias, levando-se em conta que ninguém consegue viver duas vezes o mesmo espaço de tempo. Na verdade, o conselheiro nem podia comparecer ao local de trabalho, mesmo se quisesse, por causa das investigações de ladroagem. Mas no Brasil de hoje tudo é possível — até receber férias por seis anos não trabalhados, pois é isso que determina a lei. É a “segurança jurídica” à la brasileira, tal como ela acaba de ser confirmada pelo presidente do STF numa palestra na Suíça. Para se aplicar a lei, é preciso abolir qualquer traço de decência — ou mesmo os mandamentos da lógica mais elementar.

Capa da Revista Oeste, edição 201 – Foto: Montagem Revista Oeste/Acervo Sem Anistia Arquivo Senado Federal/Reprodução/Shutterstock

Nenhuma autoridade pública achou nada de errado nessa história. O que importa à coligação de interesses que manda atualmente no Brasil é defender a democracia do “golpe de Estado” que a direita, armada com estilingues e bolas de gude, tentou dar em Brasília no dia 8 de janeiro de 2023. “Sem anistia”, prega o consórcio Lula-STF todo santo dia. Mas paguem, pelo amor de Deus, as férias do conselheiro. É assim que funciona. Não há nenhuma surpresa, então, que o déficit nas contas públicas de 2023, o primeiro ano de Lula no governo, tenha sido o segundo pior da história — R$ 230 bilhões. O cidadão pagou R$ 3 trilhões em impostos no ano passado nos três diferentes níveis de arrecadação, mas não deu: o governo conseguiu gastar 230 bi a mais. O presidente Lula, o ministro Haddad e Nossa Senhora de Lourdes podem cobrar quanto imposto quiserem; não há “arcabouço fiscal” capaz de sustentar uma máquina estatal que gasta desse jeito. Falam que houve 90 bi pagos por dívidas já vencidas na Justiça, mas e os outros 140? Não foram, obviamente, dados aos “pobres” — foram para as férias do alto marajá que não trabalhou, e para tudo o mais que se faz de parecido, todos os dias, com o dinheiro público.

Dá no seguinte, no fim das contas: o Brasil está com um orçamento federal de R$ 5,5 trilhões para este ano, e a maioria dos brasileiros não tem um tostão furado no bolso. É a situação normal do “capitalismo de Estado” que tanto encanta Lula, os economistas de esquerda e os que enriquecem com as despesas do Erário. Mas esse naufrágio geral não é apenas uma agressão maciça às exigências morais da boa governança. Quando é protegido de maneira praticamente oficial pelas leis em vigor e pela ação da Justiça, o descontrole abre todas as portas possíveis para que a corrupção se transforme em política de Estado. Não há países controlados pelo tráfico de drogas — os “narcoestados”? Pois há também os países controlados pela roubalheira, os “ladroestados”. O Brasil é um deles. O problema, aqui, não é que se rouba muito. Isso já é coisa antiga, embora esteja ficando cada vez pior: o último índice de corrupção mundial da Transparência Internacional, que acaba de ser divulgado, mostra que o Brasil, em 2023, caiu dez posições entre os países mais corruptos do mundo. Estava muito ruim. Agora piorou. Numa escala de 0 a 100, onde 100 é a nota máxima em honestidade, o Brasil recuou para 36 pontos, sua segunda pior nota na história da lista. Não é tão ruim como Venezuela, Nicarágua e Haiti, os países onde mais se rouba na América Latina — mas é o máximo que se pode dizer.

Alguém consegue imaginar que Lula, ou qualquer coisa parecida com Lula, possa ser punido pela Justiça brasileira hoje em dia, mesmo que pego em crime de corrupção flagrante?

O problema, na verdade, é que a ladroagem brasileira é uma situação contratada. Está tudo armado para ser assim; então, é assim que fica. Trata-se do resultado direto da situação de impunidade semilegal para a corrupção que o sistema de Justiça brasileiro, a partir do STF, criou nos últimos anos. Como é possível não haver corrupção se na prática o crime de corrupção é permitido para os amigos da junta de governo Lula-STF? Fica cada vez mais claro, a cada decisão do maior tribunal de Justiça do Brasil, que a destruição da Lava Jato e a ressurreição política de Lula tiveram, no fundo, um único objetivo realmente estratégico: eliminar de uma vez por todas qualquer possibilidade séria de combater a corrupção no sistema político do país. Não se tratou apenas de tirar condenados da cadeia e de anular as suas sentenças. Também não foi só a devolução de dinheiro roubado, ou a vingança contra os magistrados que combateram o roubo. O que se quis, mesmo, foi garantir que nunca mais a corrupção seria punida ou traria riscos legais para os ladrões. O país que começou a se desenhar com a Lava Jato era um perigo extremo. Tinha de acabar — e acabou.

“O Brasil voltou”, dizem Lula e os seus devotos. Voltou mesmo — para a rotina de concentração extrema de renda que só a corrupção sem limites pode oferecer, e que só a impunidade oficial permite. É muito simples. Alguém consegue imaginar que Lula, ou qualquer coisa parecida com Lula, possa ser punido pela Justiça brasileira hoje em dia, mesmo que pego em crime de corrupção flagrante? É claro que não; isso é coisa já “pacificada”, como se diz. Lula, para resumir essa ópera, tem uma situação de segurança jurídica absoluta — ele, sim, e, naturalmente, todos os que são abençoados pelo STF. Não existe nada de parecido no planeta. Como 100% dos acusados de corrupção são absolvidos, o Brasil teria de ser o país mais honesto do mundo, e até uma criança com 10 anos de idade sabe que não é. A única conclusão possível é que o consórcio Lula-STF transformou a proteção aos corruptos em mais uma “cláusula pétrea” da Constituição do Brasil — aí nem Deus pode mexer. É praticamente uma certeza científica. Se a experiência objetiva mostra que alguma coisa não acontece nunca, todas as vezes que se faz o teste, a dedução é que ela não aconteça mais.

Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República, durante a retirada “simbólica” das grades de proteção que estavam instaladas na Praça dos Três Poderes, em Brasília – Foto: Ricardo Stuckert/PR

O Brasil de Lula, do STF e de tudo o que gira em torno deles é hoje um gerador líquido de soluções para as necessidades da corrupção universal. Criaram aqui a anulação de provas físicas de roubo, como a confissão do crime pelos acusados e a devolução do dinheiro roubado; foi isso o que fez o ministro Dias Toffoli no caso da Odebrecht. Evoluiu-se daí para a destruição material de fitas gravadas — combinada com a devolução de R$ 4 milhões em dinheiro vivo que foram apreendidos pela Polícia Federal com os acusados, como fez o ministro Gilmar Mendes com o deputado Arthur Lira e seus “kits de robótica” em Alagoas. Cogita-se agora uma nova fronteira: a devolução do dinheiro devolvido pelos que confessaram os seus crimes para escapar da cadeia. A Transparência Internacional não é boba, como acha o consórcio; pode não influir em nada, mas não é boba. No seu último relatório, citou Toffoli e a anulação da multa de R$ 10 bilhões que a J&F tinha de pagar para seus donos não serem presos. Citou também a nomeação de Cristiano Zanin, advogado pessoal de Lula, para o STF.

Casa da Moeda
A Casa da Moeda tenta retomar o contrato com a empresa suíça Sicpa, que admitiu pagamento de propina em acordo de leniência – Foto: Reprodução/Agência Brasil

A novidade mais recente em matéria de desenvolvimento de know-how para a área é a tentativa da Casa da Moeda de contratar de novo os serviços de uma empresa suíça que fornece tintas e está legalmente impedida de se relacionar com o serviço público por prática de corrupção — cometida justamente nessa mesma Casa da Moeda. Um contrato com a empresa, no valor de R$ 1,4 bilhão de reais e assinado sem licitação, foi suspenso em 2016. Muito pior que isso: a contratada fechou, também ela, um “acordo de leniência” no qual reconheceu o pagamento de uma propina de R$ 15 milhões a um funcionário, e concordou em pagar R$ 760 milhões de multa aos cofres públicos. Agora, com o apoio do deputado petista Lindbergh Farias, a Casa da Moeda tenta reatar com a empresa que se confessou culpada. (Além disso, aproveitando a moda do momento, querem também a devolução do dinheiro que já pagaram como multa, cerca de R$ 275 milhões.) “Eu peço, por gentileza, que a gente volte aos tempos em que éramos fraternos e colaboradores irmãos”, apela o diretor de Operações da Casa da Moeda, Márcio Dias, indicado para o cargo pelo PT.

Não dá para dizer, como Lula diz em relação à roubalheira na Petrobras revelada na Lava Jato, que foi tudo uma conspiração dos Estados Unidos, via FBI, para sabotar a indústria de petróleo no Brasil. A empresa que a Casa da Moeda quer contratar de novo para voltar aos tempos de colaboração fraterna foi condenada em seu próprio país por corrupção ativa e multada em cerca de 80 milhões de francos suíços. “O processo identificou deficiências organizacionais” que possibilitaram o pagamento de suborno a “servidores públicos no Brasil, na Colômbia e na Venezuela”, escreveu a Procuradoria-Geral da Suíça em nota oficial. É onde estamos no momento. Toffoli, Odebrecht, Arthur Lira, J&F, Casa da Moeda, férias de 360 dias — tudo a ver.

(*) J.R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-202/a-clausula-petrea-da-roubalheira/

DEIXE SEU COMENTÁRIO

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.