Vozes de coragem

Tudo o que estamos testemunhando vai ser contado um dia e será lembrado como parte de nossa assembleia de vozes para as futuras gerações. Pessoas comuns que desafiaram a tirania de impostores disfarçados de juízes

Larissa Claudia Lopes de Araújo e Sebastião Coelho da Silva, defensores de réus acusados pelos atos do 8 de janeiro - Foto: Reprodução/STF/TV Justiça

Por Ana Paula Henkel (*)

De tempos em tempos, temos que recorrer à nossa assembleia de vozes e tentar encontrar a perspectiva correta aliada a alguma esperança para superarmos desafios grandes. Faço essa busca com uma certa constância em minhas leituras diárias e, em algumas ocasiões, tento retratar o que absorvi trazendo inspirações em nossas resenhas semanais aqui em Oeste.

O vírus chinês não trouxe apenas ansiedade, mas uma epidemia de medo. Medo da doença, sim, mas um medo muito maior do cancelamento, das guilhotinas, da perseguição injusta por não compactuar com o discurso único dos vendidos na imprensa, nas redações, no Judiciário e nas rodinhas lobistas das Big Pharmas espalhadas por toda a sociedade.

Em 2022, a pandemia foi deixada para trás, e a vida seguiu seu rumo para o mundo. Mas não para o Brasil. No ano em que o mundo deu um basta nas mordaças, nos decretos inconstitucionais e nos projetos de tiranos, nosso país atravessou uma de suas maiores provações: a escuridão da censura e das perseguições políticas com a tumultuada eleição presidencial. A dor de cabeça debilitante da ressaca de uma eleição ainda cheia de perguntas e sem muitas respostas não passa. A “censura só até segunda-feira” de dona Cármen Lúcia não acaba. Então, depois de quase quatro anos com intensas e incontáveis interferências do Supremo Tribunal Federal em prerrogativas do Executivo e do Legislativo, chegamos ao final de 2022 com gosto de 1968. Não pode falar isso, não pode mencionar aquilo nem mostrar aquela outra coisa. “Mas é tudo verdade!”, tentamos nos defender. “A gente sabe, mas a censura é só até segunda-feira”, responderam. Só não disseram qual segunda-feira.

E eis que aterrissamos no fatídico 8 de janeiro de 2023. Era tudo o que eles queriam. Como criaturas de um filme, o evento foi como a água de que precisavam e que tanto queriam — os falsos bichinhos bonitinhos defensores da demogracinha escancararam os dentes pontiagudos e as garras afiadas para, como monstros que sempre foram, aterrorizar sem piedade a sociedade. Prisões arbitrárias em LOTES — como animais indo para o abate —, cidadãos trancafiados em celas durante meses sem julgamentos ou condenações, advogados sem acesso aos autos, discursos narcisistas e ameaçadores em público e, claro, sempre sob os holofotes que tanto amam. O tom e a mensagem estavam claros: esqueçam o legislativo, esqueçam leis — para quem não havia percebido antes, quem manda no pedaço agora é a gente.

Os meses foram passando durante o ano, e o que já imaginávamos que seria ruim, com a “volta do ladrão à cena do crime” (by Geraldo Alckmin), ficou ainda pior: o país estava entregue às mãos de corruptos no Executivo, de um Legislativo acovardado e leniente, e um Judiciário que extrapola e desrespeita suas prerrogativas constitucionais e institucionais. Os atuais togados editores do Brasil acreditam, piamente, que foram eleitos pelo povo brasileiro e, portanto, possuem o direito de legislar, executar e julgar. Nas horas vagas, ainda sobra tempo para serem vítimas e investigadores.

Alexandre de Moraes e Luiz Inácio Lula da Silva, em cerimônia de diplomação como presidente e vice-presidente da República de Lula e Geraldo Alckmin (12/12/2022) – Foto: Antonio Augusto/Secom/TSE

Não, não é difícil desanimar. Haja conversa com nossa assembleia de vozes para encontrarmos um rastro, mínimo que seja, de esperança de que algo vai mudar, para que as pessoas não desistam. São tantos os desmandos perpetrados diariamente por aqueles que deveriam estar zelando pelos pilares das leis e da liberdade no Brasil, que fica difícil acreditar que o que estamos vivendo só é visto em páginas de história de países sob regimes totalitários. Então, como não desanimar e prosseguir?

Por várias vezes, o saudoso professor e filósofo Olavo de Carvalho tentou nos avisar do que estaria diante de nós se não desempenhássemos nossa missão de maneira disciplinada e correta. E, hoje, parece que ele já profetizava o que estava por acontecer: “Ou se prendem os comunistas pelos crimes que eles cometeram, ou eles, fortalecidos, irão nos prender por crimes que não cometemos”. Olavo vivia pedindo que falássemos com nossa assembleia de vozes em tempos de desafios excruciantes. Por várias vezes, disse: “Os mortos conduzem os vivos. Todos os meus mortos queridos… não sinto saudade deles, porque eles estão presentes, eles existem. Nada do que aconteceu ‘desacontece’. Aquilo que aconteceu aqui durante uma fração de segundo já está na eternidade, nunca mais volta ao não-ser. Todas as lições permanecem”.

Olavo de Carvalho – Foto: Reprodução/Redes Sociais/Josias Teófilo

Olho para o passado em busca de refúgio e encontro Ronald Reagan, em 1981, em seu discurso de posse como presidente dos Estados Unidos. Diante de uma plateia hipnotizada por seu carisma e profunda entrega às palavras, e de um país combalido entregue por Jimmy Carter, Reagan convida sua audiência a lutar sem pensar em desistir. Olhando para o cemitério militar de Arlington, ele diz:

“As fileiras e mais fileiras de lápides brancas simples com cruzes ou estrelas de David somam apenas uma pequena fração do preço que foi pago por nossa liberdade. Cada uma dessas lápides é um monumento ao tipo de herói que mencionei em meu discurso. Suas vidas terminaram em lugares como Belleau Wood, The Argonne, Omaha Beach, Salerno e do outro lado do mundo em Guadalcanal, Tarawa, Pork Chop Hill, Chosin Reservoir e em centenas de arrozais e selvas de um lugar chamado Vietnã.”

Sob forte emoção, ele pausa e prossegue:

“Sob uma dessas lápides está um jovem, Martin Treptow, que deixou seu emprego em uma barbearia de uma pequena cidade, em 1917, para ir para a França com a famosa tropa Rainbow Division. Lá, na frente ocidental, ele foi morto tentando levar uma mensagem entre batalhões sob forte fogo de artilharia. A história nos conta que em seu corpo foi encontrado um diário. Na contracapa, sob o título “Minha promessa”, ele havia escrito estas palavras: ‘A América deve vencer esta guerra. Portanto, vou trabalhar, vou salvar, vou sacrificar, vou suportar, vou lutar com alegria e fazer o meu melhor, como se o resultado de toda a luta dependesse apenas de mim’.”

Ex-presidente Ronald Reagan fazendo o discurso de posse no Capitólio dos Estados Unidos (20/1/1981) – Foto: Domínio Público

É impossível transportar para as palavras a profunda maneira como Reagan entregou esse discurso para a história, para os norte-americanos e, por que não, para nós, brasileiros, e todos aqueles que podem sentir com suas próprias mãos o valor de uma luta, de um sacrifício pela justiça e pela liberdade. Por favor, vá até o YouTube e veja — ou melhor, sinta — o valor desse discurso.

Sebastião Coelho mostrou o que é ter honra e o que significa não negociar princípios inegociáveis da defesa da verdade

Aristóteles dizia que a coragem é uma das principais qualidades humanas, porque é a partir dela que podemos ganhar outras — sem ela, não há como chegar a outras virtudes. A coragem é o ponto de partida na defesa do que é correto. Há homens e mulheres valiosíssimos em nossas assembleias de vozes. Esta semana, no entanto, a coragem estampada em grandes espíritos saiu das belas páginas de nossos queridos mortos e tomou forma no presente.

Diante da turba togada do STF, em discurso proferido na quarta-feira, 13 de setembro, na defesa de um dos inocentes presos no 8 de janeiro, o ex-desembargador Sebastião Coelho mostrou aos membros de uma Suprema Corte ativista uma brilhante e inspiradora defesa DAS LEIS em um país que vê sua Constituição ser rasgada à luz do amanhecer todos os dias pelo tribunal que deveria apenas protegê-la.

Em tempos estranhos, quando a coragem parece ter desaparecido quase que por completo, em que a independência intelectual foi desvirtuada, e muitos, inclusive “conservadores” e “liberais”, escolheram o silêncio para se sentarem no colo quente dos lobbies de cursos, de políticos e do Judiciário — mesmo com a liberdade com uma corda no pescoço —, Sebastião Coelho mostrou o que é ter honra e o que significa não negociar princípios inegociáveis da defesa da verdade, mesmo que isso incomode os tiranos de plantão:

Sebastião Coelho da Silva – Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

“Nestas bancadas aqui, dos dois lados, estão as pessoas mais odiadas deste país. Infelizmente. Quantas fotos eu tenho com ministros desta corte… muitas, muitas. Não vim ao velório de Sepúlveda Pertence, uma pessoa que eu amava muito, para não dizer que estava afrontando esta corte. Vossas Excelências têm que ter consciência de que são pessoas odiadas neste país. Essa é uma realidade que Vossas Excelências têm que saber diretamente. E alguém tem que dizer isso!”

Depois do desabafo inicial, ele prosseguiu com mais verdades quando mencionou os policiais militares do Distrito Federal que estão presos sem salário, sem o menor respeito ao devido processo legal: “Presos e sem salário! ISSO É TORTURA! Tirar um salário de um homem, senhor ministro Alexandre de Moraes, sem que haja uma condenação! Isso não pode acontecer! Essas famílias estão desesperadas, torturadas! Essa é a minha posição e a minha opinião”.

O honrado jurista se aposentou do cargo de desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT) e renunciou à função de vice-presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal (TRE-DF) em setembro de 2022, em protesto depois de o ministro Alexandre de Moraes tomar posse como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Na ocasião, ele criticou o discurso de Moraes em sua posse no TSE e disse que o ministro fez uma “declaração de guerra ao país”. Na ocasião, Sebastião disse: “O seu discurso é um discurso que inflama, é um discurso que não agrega, e eu não quero participar disso”.

Alexandre de Moraes – Foto: Montagem Revista Oeste | Wikimedia Commons | Carlos Moura | SCO | STF

Posso imaginar nossas vozes inspiradoras de nossas assembleias sorrindo diante da coragem do desembargador, que é inspiradora para remar contra o aplauso fácil, para dizer o que é significativo e verdadeiro — e não o que é confortável e conveniente. Ele sabe, assim como nossos sábios mortos sabiam, que as guilhotinas chegarão para todos com o covarde silêncio escolhido por muitos.

Com os olhos fitados na TV Justiça, o Brasil quebrou o silêncio retumbante do 7 de setembro e foi, em massa, até as redes sociais mostrar total apoio ao ex-desembargador. De alma lavada, muitos desabafaram que estavam em lágrimas. “Não aguentamos mais. Obrigado, Sebastião” era o que mais se via em milhares de mensagens.

Para a feliz surpresa de uma nação triste, combalida e, às vezes, desesperançosa, em outro julgamento de um dos réus do 8 de janeiro, a advogada Larissa Araújo também lavou a alma dos brasileiros em uma belíssima argumentação final na defesa de seu cliente, Matheus Lima, que, de acordo com sua defensora e com o seu laudo, não entrou nos prédios públicos da Praça dos Três Poderes e foi preso a 4 quilômetros das cenas do 8 de janeiro.

Em suas considerações finais, a advogada Larissa Araújo, calmamente, deu um banho de dignidade em todos os togados com ares de realeza. Em uma fala emocionada, ela não conteve o choro e desabafou:

“A sentença já está pronta. Como advogados, fomos tão desrespeitados que hoje estou até com medo de estar aqui.”

Advogada Larissa Claudia Lopes de Araújo, defensora de um dos réus acusados pelos atos do 8 de janeiro – Foto: Reprodução/STF/TV Justiça

Medo. Uma advogada fazendo o seu trabalho com medo de confrontar as alegações do Ministério Público e mostrar aos “juízes” da mais alta corte do país as razões pelas quais era injusto que seu cliente permanecesse preso ou fosse condenado a 17 anos de prisão, como fora sentenciado o primeiro réu do 8 de janeiro. Medo do debate. Medo das leis distorcidas. Medo dos tiranos.

A advogada, em certo momento, chega a elogiar a corte. Como ela, todos sabemos e respeitamos a importante instituição que é o Supremo Tribunal Federal e, por isso, lutamos para que a corte abandone seu atual viés ativista e político. Larissa Araújo, emocionada, traz Voltaire para o plenário: “É melhor correr o risco de salvar um homem culpado do que condenar um inocente”. Vale muito a pena encontrar no YouTube a defesa da doutora Larissa e divulgar as muitas conclusões expostas da advogada. Conclusões feitas para a defesa de seu cliente, mas que, na verdade, formam uma defesa de cada brasileiro de bem hoje no Brasil:

Retrato de Voltaire, por Nicolas de Largillière – Foto: Domínio Público

“A Constituição não permite, e esta Casa já debateu várias vezes, que o princípio da inocência seja quebrado — ninguém deverá ser considerado culpado, e me refiro também a chamá-los de golpistas, terroristas, entre outros nomes pejorativos, ANTES do trânsito em julgado. Foi assim que eu aprendi.”

O desabafo de Larissa é o nosso desabafo:

“Eu vi, neste processo, o ministro relator [Alexandre de Moraes] e o Ministério Público. E eu não sabia quem era o Ministério Público e quem era o juiz. Os dois acusaram com tanta veemência que eu falei: ‘Mas quem está julgando?’. Os dois estão fazendo a mesma coisa. Os dois estavam com um ódio mortal.”

Ufa.

Tanto o doutor Sebastião Coelho quanto a doutora Larissa Araújo tocaram em um ponto que sempre defendemos aqui em Oeste, desde o dia 8 de janeiro de 2023. Que os vândalos e criminosos sejam encontrados, julgados e condenados ao rigor das leis. Porém, o que aconteceu nos dias subsequentes ao triste 8 de janeiro não segue nossa Constituição.

Nas considerações finais de seu discurso de posse em 1981, Reagan traz perspectiva para o nosso combate diário, mesmo em 2023:

Ronald Reagan – Foto: Reprodução/Flickr

“A crise que enfrentamos hoje não exige de nós o tipo de sacrifício que Martin Treptow e tantos milhares de outros foram chamados a fazer. Requer, no entanto, o nosso melhor esforço e a nossa vontade de acreditar em nós mesmos e na nossa capacidade de realizar grandes feitos, acreditar que juntamente com a ajuda de Deus podemos e iremos resolver os problemas que agora nos confrontam.”

Há preciosas páginas inspiradoras em nossa assembleia de vozes, como Reagan. No Brasil, há vozes vivas de homens e mulheres que clamam pelo respeito ao império das leis. Tudo isso que estamos testemunhando vai ser contado um dia e será lembrado como parte de nossa assembleia de vozes para as futuras gerações. Pessoas comuns que desafiaram a tirania de impostores disfarçados de juízes e homens do povo.

Mr. Reagan, permita-me pegar emprestadas algumas palavras de um de seus mais inspiradores discursos, proferido não apenas para os norte-americanos, mas para o mundo: O Brasil deve vencer esta guerra. Assim como Sebastião e Larissa, vamos trabalhar, salvar, sacrificar, suportar, lutar com alegria e fazer o nosso melhor, como se o resultado de toda a luta dependesse apenas de nós.

Ana Paula Henkel

(*) Pesquisadora associada do Instituto Ronald Reagan, é hoje arquiteta e analista política. Ex-atleta, atuou pela Seleção Brasileira de Voleibol e disputou quatro Olimpíadas. Foi medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de 1996, em Atlanta, Estados Unidos, pelo vôlei de quadra. É bicampeã mundial no vôlei de praia. Tornou-se um dos principais nomes femininos do pensamento liberal-conservador. Vive em Los Angeles, onde cursa Ciência Política pela Ucla.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-182/vozes-de-coragem/

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