‘A lei violou a lei’

As ações ilegais de Moraes expostas no relatório do Comitê Americano mostram a gravidade cometida contra nosso ordenamento jurídico e a normalidade institucional no Brasil

Alexandre de Moraes, durante cerimônia no Senado, em Brasília (17/4/2024) | Foto: Lula Marques/Agência Brasil

Por Ana Paula Henkel (*)

“Alei violou a lei.” Esta foi a frase postada por Elon Musk depois da divulgação do relatório da Comissão do Judiciário da Casa dos Representantes dos Estados Unidos sobre o Twitter Files Brasil, exposto pelo jornalista americano Michael Shellenberger há duas semanas. Os arquivos mostram como o Twitter, antes de ser comprado por Musk em 2022 e se tornar X, recebeu ordens ilegais do TSE sob Alexandre de Moraes para derrubar e bloquear contas de usuários sem o devido processo legal ou qualquer apoio constitucional.

O ataque à liberdade de expressão no exterior e o silêncio do governo Biden — O caso do Brasil

Este foi o nome dado ao relatório de 541 páginas do Comitê Judiciário da Câmara Americana. O documento é estarrecedor e mostra como, por muito tempo, o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral vêm sendo usados de maneira draconiana para legislar, investigar, agir e punir ao arrepio da lei e sem o menor pudor.

Já no início do documento, na página 4, talvez o início de um dos maiores golpes que o Brasil sofreu contra a democracia é exposto. E ele aconteceu logo depois da eleição presidencial de 2018, em que o improvável aconteceu e deixou o sistema irritado — a vitória de Jair Bolsonaro.

Em um parágrafo, os americanos jogam holofotes na transfiguração de um tribunal anômalo que institucionalizou a censura no país:

“Em 2019, o Supremo Tribunal Federal do Brasil concedeu-se novos poderes para atuar como investigador, promotor e juiz ao mesmo tempo em alguns casos. Em vez de depender de um promotor ou de um agente de execução para abrir uma investigação, o presidente do Supremo Tribunal Federal do Brasil, José Antonio Dias Toffoli, ‘emitiu uma ordem outorgando ao próprio STF competência para abrir uma investigação’.”

Trecho do relatório de 541 páginas do Comitê Judiciário da Câmara Americana, divulgado no dia 17 de abril de 2024 | Foto: Reprodução/U.S. House of Representatives

Ainda na mesma página, depois de uma breve explicação sobre como Alexandre de Moraes ascendeu à presidência do TSE, a exposição da atual caneta censuradora do ministro: “Moraes supostamente ordenou que as plataformas de mídia social removessem postagens e contas mesmo quando ‘muito do conteúdo não violava as regras [das empresas]’ e ‘muitas vezes sem dar a razão’.”

Ainda no início do documento, as demandas de Moraes, claramente políticas, são expostas ao mundo:

“Os documentos intimados revelam que, pelo menos desde 2022, o Supremo Tribunal Federal do Brasil, do qual Moraes atua como ministro, e o Tribunal Superior Eleitoral do Brasil, liderado por Moraes, ordenaram que a X Corp. suspendesse ou removesse aproximadamente 150 contas na popular plataforma de mídia social. As demandas de censura foram direcionadas especificamente aos críticos do governo brasileiro: membros conservadores do Legislativo federal, jornalistas, membros do Judiciário e até mesmo um cantor gospel e uma estação de rádio pop — em outras palavras, qualquer pessoa com uma plataforma para criticar o governo esquerdista.”

Trecho do relatório de 541 páginas do Comitê Judiciário da Câmara Americana, divulgado no dia 17 de abril de 2024 | Foto: Reprodução/U.S. House of Representatives | Foto: Reprodução/U.S. House of Representatives
Em um dos rompantes napoleônicos, o ministro aponta que até mesmo as “garantias individuais” deveriam ser suspensas para que suas demandas fossem atendidas

Seria praticamente impossível descrever em apenas um artigo todo o conteúdo colocado sob sigilo por Alexandre de Moraes e agora exposto ao mundo pelo Congresso dos Estados Unidos. Mas é também nas primeiras páginas que podemos entender a importância do documento e o que ainda está por vir.

“O Comitê e o Subcomitê Selecionado continuarão a investigar, realizar audiências e considerar legislação adicional para proteger a liberdade de expressão on-line e responsabilizar aqueles que violam as liberdades fundamentais da Primeira Emenda dos americanos. Os ataques à liberdade de expressão no estrangeiro servem de alerta para a América. Desde o seu compromisso público com a liberdade de expressão, o senhor Musk enfrentou críticas e ataques de governos de todo o mundo, incluindo os Estados Unidos. No Brasil, a censura ao partido político adversário e aos jornalistas investigativos ocorre por meio de ordem judicial. Sob a administração Biden, as exigências de censura são entregues em reuniões à porta fechada com ameaças regulamentares implícitas, além da guerra jurídica para os opositores políticos. Agora, mais do que nunca, o Congresso deve agir para cumprir seu dever para proteger a liberdade de expressão.”

Trecho do relatório de 541 páginas do Comitê Judiciário da Câmara Americana, divulgado no dia 17 de abril de 2024 | Foto: Reprodução/U.S. House of Representatives

Basta ler apenas esse trecho do extenso e detalhado documento para perceber a dimensão que a história vai tomando. Fica óbvio que a comissão vê a ditadura do silêncio no Brasil como um alerta, mostrando quanto a liberdade é preciosa para os americanos desde a concepção da nação — ao mesmo tempo que exibe fragilidade se não for protegida. Não é por acaso que o país é visto pelo mundo como símbolo da liberdade — sua proteção está explícita na Primeira Emenda, considerada pela nação como uma das mais importantes de sua Constituição. Talvez por isso, uma frase dita por Ronald Reagan, o 40º presidente dos Estados Unidos, seja tão famosa e divulgada até hoje: “A liberdade nunca está a mais de uma geração da extinção. Nós não passamos a liberdade para nossos filhos na corrente sanguínea. Devemos lutar por ela, protegê-la e entregá-la para que façam o mesmo”.

Tumulto contra a democracia

As ações ilegais de Moraes expostas no relatório do Comitê Americano mostram a gravidade cometida contra nosso ordenamento jurídico e a normalidade institucional no Brasil. Em um dos rompantes napoleônicos, o ministro aponta que até mesmo as “garantias individuais” deveriam ser suspensas para que suas demandas fossem atendidas. Uma delas foi contra a Ordem dos Advogados Conservadores do Brasil (OACB), expedida em fevereiro de 2023, após — pasmem! — uma representação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB). A entidade que representa os advogados brasileiros afirmou que a ordem composta por “Conservadores” estaria fazendo “supostas atuações ilícitas” e teria “empreendido verdadeiro tumulto contra a Democracia brasileira por intermédio de seus perfis em redes sociais”.

Alexandre de Moraes aceitou o pedido e ordenou que “em face das circunstâncias delineadas, é imprescindível a realização de diligências, inclusive com o afastamento excepcional de garantias individuais que não podem ser utilizadas como um verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas, tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito”.

E ele não parou.

Os documentos, até então sigilosos, mostram que Moraes também mandou a Polícia Federal intimar várias pessoas ligadas à organização, como o presidente Geraldo José Barral Lima e o vice, João Alberto da Cunha Filho, além da suspensão das atividades jurídicas exercidas e bloqueio de todas as contas em todas as redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter, YouTube, Gettr e LinkedIn). Na ordem de Moraes também consta um ofício para a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) para retirar o domínio do site utilizado pela organização de advogados conservadores do Brasil.

Outra decisão que menciona “o afastamento excepcional de garantias individuais” foi expedida contra o youtuber Monark, hoje exilado nos Estados Unidos. Na ação, também de ofício, Moraes teria ficado particularmente irritado porque Monark teria divulgado “notícias fraudulentas sobre as ações deste SUPREMO TRIBUNAL e do TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL”. Segundo o documento, uma das frases postadas por Monark e que levou o ministro a tomar a decisão de censurá-lo foi: “Vemos o TSE censurando pessoas, vemos Alexandre de Moraes prendendo pessoas”.

Aqui, a observação dos americanos no documento diz o seguinte: “Em outras palavras, Moraes ordenou a censura de um cidadão brasileiro que criticou Moraes por censurar brasileiros”.

Para o advogado constitucionalista André Marsiglia, o afastamento excepcional de liberdades presente nas decisões de Alexandre de Moraes é inconstitucional, e os trechos que imputam ao podcaster conduta delituosa “confundem desinformação/notícias fraudulentas com opinião”.

Esses são apenas dois casos em um vasto oceano de absurdos e ilegalidades apontados pelo relatório contra aproximadamente 150 perfis em 400 pedidos de suspensão feitos por Moraes e que não apresentam nenhuma fundamentação — todos abertos apenas de ofício.

‘Assunto encerrado’

No último domingo, em um compromisso em Belo Horizonte, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, afirmou que as recentes declarações de Elon Musk sobre as ações de Alexandre de Moraes seriam “um assunto encerrado”. No entanto, agora, com a entrada dos americanos no caso, não é bem assim.

Além de ter violado nossa Constituição, de acordo com os documentos apresentados pela plataforma X entregues ao Comitê, Alexandre de Moraes pode ter violado leis americanas para empresas americanas estabelecidas em território estrangeiro — e isso é grave.

A Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), ou Lei de Práticas de Corrupção no Exterior, impede especificamente que empresas dos Estados Unidos se envolvam em práticas corruptas em outros países. E o Brasil conhece bem essa lei.

Foi por meio da FCPA que a Petrobras foi obrigada a pagar US$ 853 milhões em multas para resolver o processo do Departamento de Justiça contra a empresa nos Estados Unidos. Além do possível calote em investidores nos EUA, a investigação do governo americano mostrou violações da lei de prática de corrupção no exterior, em um contexto com o papel da Petrobras na facilitação de pagamentos de propinas a políticos e partidos políticos no Brasil.

Foi por meio da FCPA que a Petrobras foi obrigada a pagar US$ 853 milhões em multas para resolver o processo do Departamento de Justiça contra a empresa nos Estados Unidos | Foto: Reprodução/U.S. Department of Justice

Convocado para depor agora na Comissão de Relações Exteriores para falar sobre o caso de censura no Brasil, Elon Musk poderá dizer que Alexandre de Moraes estaria obrigando a plataforma X a agir contra a lei brasileira de “forma corrupta”. Para a FCPA, a palavra “corrupção” incorpora ações além de esquemas de corrupção envolvendo práticas monetárias. Elon Musk pode argumentar que Moares, usando sua posição, coagiu os funcionários do antigo Twitter a persuadirem a plataforma para executar algo ilegal perante as leis brasileiras. Juristas americanos defendem que obrigar uma empresa americana a violar as leis no país em que estão estabelecidas (“agir de forma corrupta”) pode ser enquadrado em “atividade criminosa” pela Lei de Práticas de Corrupção no Exterior.

A FCPA foi recentemente complementada pela “Lei de Prevenção de Extorsão Estrangeira”. O apêndice permite que os Estados Unidos exerçam jurisdição extraterritorial do processo de funcionários estrangeiros que se envolvam em práticas corruptas relacionadas a empresas americanas.

E a caixa de Pandora aberta por Elon Musk pode ir além do imbróglio entre o dono do X e Moraes. As demais plataformas digitais, como Facebook, Meta, Instagram, YouTube, muito provavelmente também receberam essas demandas ilegais do presidente do TSE. A exposição desses documentos e o depoimento de Musk no Congresso Americano, marcado para acontecer até o dia 8 de maio, podem gerar questionamentos às outras plataformas em relação ao respeito à FCPA.

O jornalista americano Michael Shellenberger, responsável pela abertura dos Twitter Files Brasil, acredita que essa não é mais uma questão de censura doméstica apenas, mas uma questão de relações internacionais, já que Alexandre de Moraes teria ordenado que empresas americanas violassem as leis do Brasil.

Onde tudo isso vai dar? Ainda é cedo para afirmações imediatas. Mas essa nova página da política brasileira, aberta por um sul-africano para o Congresso americano, remete a um conto do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875).

Na história de Andersen, havia um rei muito autoritário e vaidoso que não admitia ser contrariado. Certo dia apareceu um homem que se dizia ser alfaiate, mas que, na verdade, não passava de um charlatão. O homem então se ofereceu para fazer a roupa mais bonita que qualquer monarca, em todo o mundo, jamais havia tido, mas com um encanto: somente as pessoas inteligentes poderiam vê-la. O rei, tocado pela vaidade, logo se interessou e o contratou, providenciando todos os materiais que lhe foram solicitados. Fios de ouro, tecidos finos, adereços de diamantes e tudo que havia de melhor e mais valioso no reino.

O monarca então acomodou o “alfaiate” em um ateliê e deixou que desenvolvesse seu trabalho. Passadas algumas semanas, como não teve notícia, o rei foi ao local onde estava sendo confeccionada a roupa. Viu uma mesa vazia, e o homem fazendo inúmeros movimentos como se estivesse medindo, costurando, esticando tecidos. O rei, para não deixar transparecer diante de seus súditos que não estava vendo nada, começou a elogiar a maravilhosa peça. Por sua vez, os súditos presentes, que também nada viam, passaram a elogiar o trabalho do picareta.

Após mais uma semana, o “alfaiate” deu o trabalho por terminado e convocou o rei para ir vestir a roupa. O rei convocou todo o povo para um desfile onde ele mostraria sua nova roupa tecida com fios de ouro e pedras preciosas. Com o rei nu, e todos fingindo que viam as vestes reais, o desfile seguiu, mas ninguém se manifestava diante da nudez do monarca para não ser tachado de ignorante. Somente uma criança, em sua pureza e inocência, vendo toda aquela encenação e o homem sem roupas, gritou: “O rei está nu! O rei está nu!”.

No Brasil, foi preciso o grito de um estrangeiro para que a plateia finalmente parasse de ignorar o que está acontecendo há um bom tempo em cima do palco.

(*) Pesquisadora associada do Instituto Ronald Reagan, é hoje arquiteta e analista política. Ex-atleta, atuou pela Seleção Brasileira de Voleibol e disputou quatro Olimpíadas. Foi medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de 1996, em Atlanta, Estados Unidos, pelo vôlei de quadra. É bicampeã mundial no vôlei de praia. Tornou-se um dos principais nomes femininos do pensamento liberal-conservador. Vive em Los Angeles, onde cursa Ciência Política pela Ucla.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-213/a-lei-violou-a-lei/

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