Tremenda viagem (fim)

A última etapa do voo pela cabeça de Moraes inclui um looping em zona de turbulência e um rasante na Guerra de Secessão

Alexandre de Moraes - Foto: Pedro França/Senado Federal do Brasil

Por Augusto Nunes (*)

— Mas voltando… voltando ao que interessa…

Assim Alexandre de Moraes retomou a palestra de encerramento do II Congresso Internacional de Direito Financeiro e Cidadania. “Como é que é?”, intriga-se quem assiste ao trecho da discurseira eternizado no vídeo que esta coluna começou a analisar em 13 de outubro. Quer dizer que o palestrante não dirá mais nada sobre a fórmula milagrosa que sintetizara em apenas 18 palavras, entre as quais dois verbos no infinitivo previsivelmente castigados com a amputação do “r” final?

— Se tirá um ano o celular de todo mundo, o Brasil vai virá um país de Primeiro Mundo — revelara o ministro do Supremo Tribunal Federal, presidente do Tribunal Superior Eleitoral e Primeiro Superjuiz da Nação, fora o resto.

Depois desse looping numa zona de turbulência especialmente traiçoeira, qualquer orador trataria de detalhar o assombro. Mas Moraes não é um orador qualquer, confirmou a decisão de manter em segredo explicações que muitos ouvintes e espectadores ainda aguardam como personagens de Nelson Rodrigues: com o olho rútilo e o lábio trêmulo. Sim, o ministro havia ensinado no parágrafo anterior que brasileiro perde tempo demais com zaps imbecis (e frequentemente criminosos), fake news, conversas imprestáveis, safadezas espalhadas por golpistas e outras bijuterias que reduzem dramaticamente a produtividade nacional. Também informara que bastaria aplicar em atividades produtivas esse tempão desperdiçado para transformar um grotão sul-americano atulhado de miseráveis numa Noruega com sol, samba e Carnaval. Mas restavam interrogações relevantes a dissipar.

Por exemplo: como se comunicariam os sem-celular durante os 12 meses de jejum? Nesse período doloroso, seria permitido o uso do telefone fixo e do orelhão da esquina? Se a resposta for sim, a ressurreição desses avós da modernidade proscrita não resultaria numa gastança que pode retardar a chegada ao Primeiríssimo Mundo? Se a resposta for não, as famílias deverão voltar a visitar-se sem aviso, como ocorria antes da invenção da televisão? Essas e outras dúvidas podem esperar, deixou claro a continuação do falatório:

— O… Essa… Esse primeiro ataque ao… esse ataque ao primeiro pilar da democracia deu muito certo. Porque fez com que grupos de pessoas tenham verdadeiros ódios em relação a alguns jornalistas, a alguns programas, a algumas redes de televisão. As pessoas passaram a ter ódio visceral — mudou de assunto o falatório de improviso.

Quais jornalistas? Quais programas? Que grupos de pessoas? Quem o conhece adivinha que o ministro está se referindo aos apresentadores e comentaristas dos telejornais da Globo e da Globonews. São eles os alvos dos “verdadeiros ódios” ou do “ódio visceral” dos bolsonaristas agrupados na extrema direita golpista. A novidade é a notícia de que, para o comandante do Timão da Toga, o primeiro pilar da democracia brasileira é a Rede Globo. Sem pausas, o palestrante engata a quinta marcha e passa a confundir o público com a conjugação de verbos na primeira pessoa do plural.

Em resumo, Moraes descobriu que o Estado de Direito à brasileira tem como alicerces a Rede Globo e a urna eletrônica

— Ora, conquistamos ou, pelo menos, equilibramos, os meios de comunicação… pessoa não sabe mais o que é notícia verdadeira e o que é notícia fraudulenta. Vamos bombardiá… no mínimo fica a dúvida. Agora, vamos escolhê, já que conseguimos isso, vamos escolhê qual ataque… não vamos atacá a democracia, porque atacá a democracia não dá mais Ibope… Não dá… vamos falá vamos fechá o Congresso, vamos dar um golpe, não. Vamos ser os grandes defens… isso no mundo todo… vamos ser os grandes defensores da democracia, da liberdade. Não por outra coisa se passô a defender a liberdade sem limites… liberdade de se fazê o que quisé… e vamos atacá o instrumento que garante a democracia, que é o segundo pilar, grande pilar das democracias ocidentais: as eleições. Não vamo atacá a eleição, não vamo falá que não pode tê eleição, porque isso pega mal, vão falá que nós não somos democratas. Vamos dizê que as eleições são fraudadas, que o instrumento do escrutínio popular, que é o voto, é fraudado.

Ministro Alexandre de Moraes votando (2/10/2022) – Foto: Antonio Augusto/Secom/TSE

É preciso sorver com estoicismo e sem pressa a intragável sopa de letras para entender que o “nós vamos isso” ou “nós vamos aquilo” de Moraes nada tem a ver com o “nós derrotamos o bolsonarismo” de Luís Roberto Barroso, nem com o “nós contra eles” de Lula. No caso do palestrante, “nós” quer dizer “eles” — eles, os fascistas; eles, os inimigos da Globo; eles, os ressentidos com a vitória da frente que apoiou Lula. Demora-se a descobrir que quem está dizendo aquelas coisas atribuídas a um misterioso nós é a turma que o doutor prendeu, está prendendo ou quer prender.

O falatório delirante ao menos permite a identificação do “segundo grande pilar das democracias ocidentais”: as eleições. Em resumo, Moraes descobriu que o estado de direito à brasileira tem como alicerces a Rede Globo e a urna eletrônica. Ele também acha inútil aperfeiçoar o sistema eleitoral com o voto auditável: bolsonarismo é mal sem cura que tem como sintoma mais visível a incapacidade de engolir disputas malsucedidas. Então, de novo sem prevenir tripulantes e passageiros, o piloto concluiu a viagem com um rasante na Guerra de Secessão e o pouso forçado no Vaticano.

— Nos Estados Unidos, se atacô o quê? O voto por carta. Aqui no Brasil é muito estranho a gente pensar em voto por carta… imagina o que ia tê de carta rodando por aí, né? Ao invés dos cento e cinquenta e seis milhões de eleitores, nós íamos ter um bilhão, quatrocentos e oitenta e três milhões de cartas chegando. Mas nos Estados Unidos é uma instituição nacional… porque foi consagrado pra possibilitá a eleição durante a Guerra de Secessão… pra garantir a eleição e aí a reeleição do presidente Lincoln. E é um crime gravíssimo fraudá esse voto. Só que, tradicionalmente, quem mais vota por carta são os democratas — e não os republicanos. E nos Estados Unidos, como é um bipartidarismo, é muito fácil vê isso, porque vê daonde vêm… as cartas. Você não sabe quem votô, mas sabe que daquele local mais votos são democratas ou mais votos são republicanos. Então lá se atacô o quê? Se atacô o voto por carta. São fraudáveis. Houve fraude. No Brasil se atacô a urna eletrônica. Se o voto aqui fosse no papel, ia atacá o papel… ó, tem que ser urna eletrônica. Se o voto fosse por sinal de fumaça, aí iam atacá o sinal de fumaça.

Enquanto vocês tentam traduzir em língua de gente a salada de sílabas, recomendo ao Primeiro Superjuiz da Nação que escreva 20 vezes no quadro-negro as lições que se seguem:

  1. Abraham Lincoln foi eleito em novembro de 1860, instalou-se na Casa Branca em março de 1861, a guerra civil começou em abril, e o voto pelo correio estreou no pleito em que se reelegeu.
  2. Se a maioria dos votos por carta beneficia candidatos do Partido Democrata, o republicano Lincoln não teria vencido pela segunda vez em 1864.
  3. Sinais de fumaça só são usados na eleição do Papa, que precisa conseguir ao menos dois terços dos votos dos mais de cem cardeais. Se isso não acontece, a fumaça negra que sai da chaminé do Vaticano avisa que o pleito não terminou. A fumaça branca anuncia à multidão reunida na Praça de São Pedro que a Igreja Católica tem um novo chefe. O voto, aliás, é de papel.
  4. Um discurso de improviso é avaliado por quesitos semelhantes aos utilizados nos desfiles na Sapucaí. Um orador só faz bonito se montar mentalmente um bom enredo, mantiver o ritmo ditado por uma bateria imaginária, esbanjar harmonia, caprichar nas alegorias e evoluir com leveza e fluência.

Os improvisos de Alexandre de Moraes lembram desfiles de blocos carnavalescos de subúrbio, em andrajos e sem ensaio. Nem mereciam entrar em avenidas. Mas não param de invadi-las, e já foram longe demais.

(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-189/tremenda-viagem-fim/

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