Por Augusto Nunes (*)
Alexandre de Moraes e o Ato Institucional nº 5 nasceram no mesmo 13 de dezembro de 1968, mas não se conheceram nem de vista. O conjunto de medidas autoritárias que escancarou a ditadura foi revogado no primeiro minuto de janeiro de 1979, quando o futuro ministro do Supremo Tribunal Federal era um menino de 10 anos. Tinha 12 quando foi aprovada pelo Congresso a anistia ampla geral e irrestrita proposta pelo presidente João Figueiredo, 16 quando o regime militar acabou. Aos 21, enquanto cursava a Faculdade do Largo de São Francisco, o advogado em gestação votou em Fernando Collor na eleição que devolveu ao povo o direito de escolher nas urnas o presidente da República. Moraes logo ingressaria no Ministério Público paulista sem saber qual é a diferença entre ditadura e democracia.
(Aquela sexta-feira 13 atropelou-me quando cursava a Faculdade Nacional de Direito e era o terceiro vice-presidente do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira. O Caco foi fechado, começou a agonia do movimento estudantil, sumiram amigos atraídos pela ilusão suicida da derrubada do governo a tiros. No ano seguinte, sem saber direito por quê, fiquei engaiolado quatro dias numa prisão da Aeronáutica. Em dezembro de 1969, o diretor da faculdade apresentou-me a encruzilhada: transferência para outras paragens ou expulsão sumária. Moraes ainda não podia assistir a filmes com Brigitte Bardot quando virei jornalista em São Paulo. Desde sempre amo a verdade acima de todas as coisas, entendo que só a vida em liberdade vale a pena, não tolero ditaduras, sei exatamente o que é um golpe de Estado e me oponho a todos. Sou um democrata radical. Não preciso de babás de toga.)
A trajetória de Moraes fortalece a suspeita de que, com frequência, data dita o destino. O bebê que chegou com o AI-5 seria um autoritário de nascença, um universitário brigão e um promotor que só acusava. A carreira política colidiu com a ausência do poder de sedução. Secretário municipal, inscreveu-se na corrida pela prefeitura de São Paulo. Nem passou pela fase de aquecimento. Secretário de Segurança Pública de Geraldo Alckmin, destroçou com meia dúzia de entrevistas amalucadas o sonho de governar São Paulo. E parecia condenado ao semianonimato quando resolveu, com surpreendente discrição, o caso da invasão do celular da mulher de Michel Temer. A dívida de gratidão foi paga com o Ministério da Justiça depois da chegada ao poder do vice de Dilma Rousseff.
Presenteado em seguida com a vaga no Supremo Tribunal Federal, era o hesitante caçula do Pretório Excelso quando o parceiro Dias Toffoli o convidou para comandar um certo inquérito das fake news. Passados cinco anos, o resumo da ópera mostra o que acontece com a presença do homem errado no lugar errado. O que começou como uma reação do STF a críticas e declarações consideradas insultuosas se transformou em usina de insegurança jurídica — e num tumor que corrói o Estado Democrático de Direito. Sobram sinais de que pode estar em trabalho de parto a ditadura do Poder Judiciário. A infame chicana rebatizada de Inquérito do Fim do Mundo, por exemplo, acaba de ser prorrogada e não tem prazo para ser concluída. No que Moraes chama de “minha Vara Criminal”, amontoam-se horrores que incluem pelo menos mais sete inquéritos tão abusivos quanto o que puxa a fila. Filhotes do monstrengo inaugural investigam o “golpe” de 8 de janeiro, delimitam fronteiras que separam a mentira da verdade e prometem erradicar a praga dos atos antidemocráticos, fora o resto.
Faz tempo que o superministro decidiu sepultar uma norma que vigora há muitos séculos: o ônus da prova cabe a quem acusa. Os acusados por Moraes é que têm de provar que são inocentes
Não é pouca coisa. Mas não é tudo. Para continuar no controle do Tribunal Superior Eleitoral, inventou um cargo que o promove a gerente-geral das eleições municipais deste ano. E vai engrossando o acervo de proezas que inclui o extermínio do direito de ampla defesa, a aposentadoria do devido processo legal, a invenção do flagrante perpétuo e da prisão provisória sem fim, o Programa de Apoio aos Fabricantes de Tornozeleiras, o sigilo seletivo, a abolição da individualização de conduta, o depoimento que os inquisidores redigem e os inquiridos só rubricam, a condenação de professoras septuagenárias à morte na cela, a multa milionária, a punição por crimes inexistentes, a descoberta do mendigo golpista e o desmonte do sistema acusatório, além da selvageria capaz de assombrar advogado do PCC: para livrar-se da tornozeleira e das restrições que a acompanham, inocentes libertados por falta de provas têm de assinar um “termo de acordo” em que assumem a autoria de delitos que não cometeram.
Tudo isso sem deixar de perseguir Jair Bolsonaro 24 horas por dia, incluídos fins de semana e feriados. Ou tudo o que se moveu, move ou pode mover-se em torno do ex-presidente, informa o que anda fazendo Moraes com o ex-assessor da Presidência Filipe Martins. Amparado numa fantasia da Polícia Federal, o ministro mandou prendê-lo em 8 de fevereiro por ter integrado a comitiva que acompanhou Bolsonaro na viagem à Flórida, em dezembro de 2022, para detalhar a “minuta do golpe”, e por estar “em lugar incerto e não sabido”. Munidos de cópias de passagens e de informações oficiais da Latam, os advogados da vítima do abuso provaram que na data da suposta viagem internacional ele voara de Brasília para Curitiba, de onde seguira rumo a Ponta Grossa, no Paraná, e ali continuava hospedado na casa da namorada. Diante das provas de inocência, o procurador-geral da República recomendou a soltura do prisioneiro. Não foi atendido. Faz tempo que o superministro decidiu sepultar uma norma que vigora há muitos séculos: o ônus da prova cabe a quem acusa. Os acusados por Moraes é que têm de provar que são inocentes. Ao mandar às favas as contundentes evidências apresentadas pelo ex-assessor de Bolsonaro, o Primeiro Carcereiro avançou mais alguns metros na trilha do penhasco: ele agora se nega a enxergar provas de inocência. Martins está enjaulado há quase dois meses.
Ou o próprio STF recupera o instinto de sobrevivência ou a Corte será desmoralizada pelos próprios integrantes. Aviso é o que não tem faltado. Faz anos que todos os ministros são permanentemente escoltados por um punhado de agentes de segurança. Gente forçada à adoção de tais cuidados não sabe como anda a vida lá fora. No dia em que Martins foi capturado, a AtlasIntel divulgou uma pesquisa que merece um minuto de atenção do Egrégio Plenário. Do total de brasileiros entrevistados, 47,3% acreditam que o país “vive sob uma ditadura do Judiciário”. Outros 16,7%, embora discordem da existência de uma ditadura, acham que “muitos juízes cometem abusos e ultrapassam suas atribuições”. Quem não crê nessa preocupante impopularidade pode escancarar facilmente o que seria outra fake news. É só promover na Avenida Paulista uma manifestação e apoio ao Supremo em geral e, em particular, à versão brasileira de Alexandre, o Grande.
(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.
Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-210/as-vezes-a-data-dita-o-destino/