Por Augusto Nunes (*)
Antes que a pandemia de mediocridade se espalhasse também pelo universo dos caçadores de votos, qualquer vereador de grotão aprendia na primeira campanha que uma grande manifestação promovida pelo inimigo tem de ser retrucada com uma demonstração de força maior, ou pelo menos do mesmo tamanho. Se tal resposta não for possível, melhor botar na cabeça que o eleitorado do adversário é mais numeroso e sair em busca de caminhos que encurtem a desvantagem. “Só existem essas duas alternativas”, ensinou o deputado pernambucano Tales Ramalho, uma sumidade em matéria de política. “Como só a ilusão eleitoral é mais forte que a ilusão amorosa, meio mundo prefere uma terceira opção que nunca funciona: brigar com os fatos e fingir que não aconteceu o que todo mundo viu e ouviu.” Atarantados com a portentosa manifestação que lotou a Avenida Paulista neste 25 de fevereiro, é o que andam fazendo Lula e seus Altos Companheiros, ministros do Supremo Tribunal Federal e jornalistas estatizados.
Na forma e no conteúdo, a reação dos integrantes do consórcio que comanda o Brasil informa que os desafetos de Jair Bolsonaro reincidiram em dois pecados mortais. Primeiro: subestimaram o poder de mobilização do ex-presidente e as dimensões da direita brasileira. Segundo: esqueceram-se de combinar o que diriam se aparecesse na Paulista mais gente do que previam. Confrontados com a realidade, embrenharam-se no atalho balizado pelo negacionismo e estreito demais para comportar tanta mentira. Era previsível que sucumbissem ao surto de amadorismo bisonho que começou no domingo, cresceu na segunda-feira, foi em frente nos dias seguintes e não tem prazo para terminar.
Na vida real, ocorreu no último domingo deste fevereiro uma das maiores manifestações da história política brasileira. Segundo cálculos feitos pela Secretaria da Segurança Pública do governo paulista, endossados por câmeras fotográficas imparciais, vídeos apolíticos e drones apartidários, no clímax do evento havia 600 mil manifestantes na avenida principal e outros 150 mil nas ruas adjacentes. Ainda que a multidão não fosse tão numerosa, nada explica a opção pelo embuste feita pela Folha de S.Paulo e pelo Estadão. Em manchetes e textos, ambos os jornais noticiaram que o ato reunira “milhares” de pessoas. Errado, avisam os manuais de redação. Se os manifestantes ultrapassam a marca dos 200 mil, passam a ser “centenas de milhares”.
Para camuflar a trapaça, editores empenhados em bloquear o crescimento da direita brasileira recorreram a um certo Monitor do Debate Político no Meio Digital da USP. Às 15 horas do domingo, momento que os doutores em vigarice estatística qualificaram de “pico da manifestação”, o Monitor não localizou mais que 185 mil cabeças à espera do início dos discursos. Às 17 horas, continuavam por lá 45 mil. Na década de 1950, no auge da popularidade, o presidente Jânio Quadros garantia que, se ficasse cinco minutos dando pancadas numa lata no Viaduto do Chá, reuniria mais de 5 mil pessoas. Passados 70 anos, combatentes da Globo aquartelados no G1 avistaram na Paulista, no começo da tarde, minguados 12 mil bolsonaristas. (A velha imprensa é bem mais generosa com medições associadas a tribos de esquerda. Por dois anos seguidos, animada com a Parada Gay, a Folha amontoou na mesmíssima Avenida Paulista, espremidos entre carros alegóricos, 2 milhões de foliões. Parece gente demais. É quase nada diante do recorde alcançado pelo Globo em outra Parada Gay: 4,5 milhões. Nem mais nem menos.)
Exemplarmente pacífica, a manifestação do dia 25 não registrou uma única ocorrência policial. Não apareceram na Paulista sequer os ladrões de celulares e batedores de carteiras que sempre agem nos comícios do PT. (Por algum motivo, o alvo preferencial é o companheiro Eduardo Suplicy. Ele já usou três vezes o microfone do palanque para reivindicar ao menos a devolução dos documentos. Não foi atendido.)
O único incidente ligado à manifestação ocorreu bem longe dali. Historicamente, a Polícia Federal em serviço no aeroporto de Guarulhos só retira da fila de desembarque estrangeiros com problemas envolvendo a bagagem, a documentação ou a Interpol. O jornalista português Sérgio Tavares tornou-se o primeiro investigado pelo que carrega na cabeça. O Termo de Declarações redigido pelo chefe dos sherloques resume os principais temas abordados no depoimento de duas horas. O trecho mais relevante, reproduzido entre aspas sem correções, registra que Tavares, por orientação de seu advogado, “ficou em silêncio quando questionado sobre sua afirmação em seu blog de que o Brasil vive uma Ditadura do Judiciário, sobre sua afirmação em seu blog de que a urna eletrônica não é confiável, sua afirmação em seu blog de que o Brasil é chefiado por criminosos e quando questionado sobre os fatos ocorridos em 8 de janeiro”.
Não foi visto um único cartaz ou uma só faixa com inscrições hostis a pessoas ou instituições. Às milhares de bandeiras do Brasil se juntaram algumas de Israel. Não foram ouvidas palavras de ordem agressivas, nenhum orador atropelou a Constituição ou os códigos legais. Ao reconstituir a crescente perseguição sofrida por Bolsonaro, o pastor Silas Malafaia referiu-se explicitamente a ministros do Supremo e subiu o tom nas críticas a decisões da Corte. Mas não contou uma única e escassa mentira.
Acusado de chefiar, arquitetar ou estimular golpes de Estado, genocídios, ataques ao regime democrático, distribuição de armas e gabinetes do ódio, fora o resto, Bolsonaro fez um discurso sereno e conciliador. Propôs a decretação da anistia, a libertação dos presos ilegalmente, a restauração do Estado Democrático de Direito e o fim da insegurança jurídica. As diferentes interpretações do discurso coincidem num ponto: todos os governistas querem ver o orador fora da paisagem política. “Bolsonaro acuado em ato na Paulista inclui novo capítulo de recuos em sua trajetória”, decidiu numa das manchetes de domingo a edição digital da Folha. Na edição impressa de segunda-feira, o especialista em tudo Igor Gielow avisou que ouvira mais do que isso: “Radicalismo dá lugar a platitudes e queixumes”, resumiu. E qualificou Bolsonaro de “tchutchuca”.
A manifestação de 25 de fevereiro foi muito mais que “um ato de apoio a Jair Bolsonaro”. Foi a retomada das ruas pela direita brasileira
Na manhã do dia 25, Lula ordenara a seus ministros que ignorassem a manifestação vespertina. O chefe da Casa Civil, Rui Costa, obedeceu ao presidente. “Uso meu domingo para coisas mais nobres”, desdenhou na segunda-feira. “Ontem curti meus três filhos. Não posso fazer comentários de algo que não vi.” Horas depois, decidiu comentar o que não vira: “O Brasil inteiro ficou surpreso pelo conteúdo”, caprichou na pose de indignado. “Pela primeira vez na história, pessoas que cometeram eventos criminosos chamam evento em praça pública e, na praça pública, em frente à multidão, confessam o crime e vão além disso”, aproveitou para espancar o idioma. “Pedem perdão, anistia pelos crimes cometidos.” Também o ministro da Comunicação Social, Paulo Pimenta, desandou no ziguezague. “Quem tem de fazer avaliação são eles”, irritou-se depois de convidado por um jornalista a dizer o que achara do ato. “Quando a gente fizer um ato”, sugeriu, “aí vocês nos perguntam se a gente achou bom, se a gente achou ruim, se foi mais gente que a gente queria”.
No domingo, Pimenta jurou que nem acompanhara a manifestação. “Eu ia deixar de ver o Grenal?”, debochou. “Pelo amor de Deus!” (O jogo entre o Grêmio e o Internacional só começou às 18 horas, quando o ato na Paulista já terminara.) Na segunda, analisou o que oficialmente não vira nem ouvira. “Foi choro de perdedor.” A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, só tratou de números vinculados ao 44º aniversário do partido. Em 20 de março, um jantar em Brasília reunirá centenas de convidados no Centro Internacional de Convenções do Brasil. Em parceria com a primeira-dama Janja da Silva, Gleisi decidiu que os convites serão adquiridos por meio de doações fixadas em três valores: R$ 350, R$ 5 mil ou R$ 20 mil (equivalentes a 30 mensalidades do Bolsa Família).
Lula fez o possível para cumprir o que ele próprio ordenara. Passou o domingo no Palácio da Alvorada, provavelmente trocando com Janja as poucas ideias que o casal tem. Na segunda, uma jornalista do Valor Econômico quis saber do presidente, numa confusa entrevista coletiva, se poderia ousar (isso mesmo: “ousar”) perguntar-lhe o que tinha a dizer sobre a manifestação. Com expressão apalermada, Lula permaneceu em silêncio. Sem abrir a boca, disse tudo.
Na mesma segunda, a Polícia Federal prometeu “incluir a fala de Bolsonaro nas investigações sobre o golpe”. Como a PF tornou-se o braço da maioria do Supremo, Lula resolveu na terça-feira recuperar a voz e conceder uma entrevista à RedeTV!. No começo do palavrório, pareceu ter recuperado também um pouco de juízo: “Não é possível você negar um fato: eles fizeram uma manifestação grande em São Paulo”, reconheceu. “Mesmo quem não quiser acreditar, é só pegar a imagem que tem a manifestação grande.” Pausa. E então o torturador do idioma transformou-se no velho Lula em toda a sua abominável inteireza. “Como as pessoas chegaram lá é outros 500”, desandou. “O dado concreto é que foi uma manifestação em defesa do golpe.” Sabia-se que Lula não lê nem sabe escrever. A novidade é que também não compreende o que ouve.
A manifestação de 25 de fevereiro foi muito mais que “um ato de apoio a Jair Bolsonaro”. Foi a retomada das ruas pela direita brasileira. Para o consórcio no poder, existem por aqui a extrema direita, o centrão e a esquerda, que abrange o chamado “campo progressista”. Nessa paisagem malandra, não existem nem a extrema esquerda nem a direita, perfeitamente visível em todas as nações civilizadas. Essa tapeação tem vida curta. “Já vi time sem torcida ganhar campeonato, mas nunca vi governo sem povo ganhar eleição”, disse Bolsonaro em seu discurso. Não havia golpistas na Paulista. Havia um oceano de brasileiros que lutam pela pacificação do país, pelo fim das prisões ilegais e pela obediência à Constituição. Seja qual for o destino imediato de Bolsonaro, milhões de eleitores acusados de golpistas mostrarão que o medo acabou. Eles já se mobilizam para decidir eleições municipais. O resultado do pleito poderá mostrar que a campanha para a sucessão presidencial acabou de começar na Avenida Paulista.
Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.
Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-206/o-teste-da-paulista-nao-falha/