O torturador do português

De olho nas urnas, Moraes conseguiu um TSE para chamar de seu

Por Augusto Nunes (*)

Oreino de Alexandre de Moraes é a mais espantosa aberração jurídica do planeta. A sala do trono está instalada no gabinete de ministro, mas o latifúndio que governa vai muito além do Egrégio Plenário e da Praça dos Três Poderes. A expansão começou em 2019, quando virou relator do inquérito das fake news. Passados cinco anos, Moraes é também presidente do Tribunal Superior Eleitoral e comanda o que ele próprio qualificou de “maior vara criminal do mundo”. Hoje, lida simultaneamente com pelo menos oito inquéritos que envolvem mais de 2 mil brasileiros. Alguns já foram condenados a longas temporadas na cadeia por participação no golpe de Estado que não houve. Centenas de cidadãos perplexos aguardam julgamento numa cela ou supliciados no lado de fora pela delirante inventividade do Primeiro Carcereiro: a meia liberdade.

Alexandre de Moraes no evento Democracia Inabalada, em Brasília, que marcou um ano do 8 de janeiro – Foto: Lula Marques/Agência Brasil

Essa invenção do superministro mantém submetida a restrições abjetas — o uso obrigatório de tornozeleira eletrônica, por exemplo — uma multidão de antipetistas que saiu da cadeia por falta de provas. Só se livra dessas violências o inocente que tope a proposta hedionda: assinar um documento em que assume a autoria de crimes que não praticou. Essa Ópera do Absurdo é extensa. O ex-deputado Daniel Silveira foi indultado por Bolsonaro. Está preso, e sem direito à progressão da pena. Acusado de viajar para os Estados Unidos e ali preparar o golpe de picadeiro, o ex-assessor presidencial Filipe Martins demonstrou por A + B que não saíra do Brasil. Continua enjaulado porque Moraes, depois de inverter a regra secular segundo a qual o ônus da prova cabe a quem acusa, resolveu que a perseguição só cessará se o avião em que voou para o Paraná depuser em favor de Martins.

Cuidar de tanta coisa ao mesmo tempo é muito para qualquer homem. Como não consegue ver no espelho um homem qualquer, o monarca de toga resolveu continuar no comando do Tribunal Superior Eleitoral, mesmo depois de encerrado o mandato de presidente, fixado em dois anos. Ficou insatisfeito com a perspectiva de passar o bastão do cargo a Nunes Marques, primeiro dos dois ministros indicados por Jair Bolsonaro e primeiro da fila formada por ordem de entrada no STF. Perturbou-o ainda mais a impossibilidade de repetir as proezas consumadas na campanha presidencial que devolveu Lula ao local dos crimes.

Foto: Shutterstock

A aflição sumiu no fim de 2023, quando lhe ocorreu o plano audacioso: criar um TSE com outro nome que pudesse chamar de seu. Além da permanência no posto de gerente-geral das urnas nas eleições municipais deste ano, a esperteza permitiria a concretização do sonho: reprisar em 2026 a performance registrada na disputa de 2022. Para garantir a vitória do consórcio hoje no poder, e assim neutralizar uma extrema-direita de altíssima periculosidade, mandou às favas o Estado Democrático de Direito. Moraes proibiu que qualquer jornalista contasse a ouvintes, leitores e telespectadores que Lula, engaiolado por 500 dias, é um ex-presidiário. Fez o diabo há dois anos. Quer fazer o diabo daqui a dois anos. Para isso nasceu em 13 de março o Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia, vulgo CIEDDE.

O Primeiro Carcereiro só sabe atacar. Os adversários já perceberam que dificilmente aprenderá a recuar golpeando

O nome cai bem num filhote de chicana vip. Dois atentados ao pobre português revelam que foi escolhido pelo pai e parteiro. Arrogante demais para pedir ajuda a quem trata com gentileza o idioma nacional, impiedoso também com a gramática, Moraes escolheu a denominação e o logotipo sem consultar ninguém. Caso o superjuiz lhe pedisse socorro, um revisor de semanário interiorano teria trocado pelo correto “da” essa crase medonha que aparece entre “enfrentamento” e “desinformação”. E colocaria um “de” antes de “Defesa”. Com apenas duas letras, o Marechal da Verdade afastaria o perigo: muita gente pode acreditar que, além da desinformação, o CIEDDE vai enfrentar os defensores da democracia. Mas talvez o erro seja um prenúncio. O TSE particular do exterminador de mentiras pode transformar-se na Gestapo da democracia relativa à brasileira.

Alexandre de Moraes na inauguração do Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia (CIEDDE), em Brasília (12/3/2024) – Foto: Divulgação

Se março lhe foi bastante generoso, Moraes que se cuide com abril: como no verso de Elliot, pode ser o mais cruel dos meses para um ministro incuravelmente impulsivo. Surpreendido por uma pergunta muito pertinente formulada pelo superempresário Elon Musk, poderia tê-la contornado com uma evasiva, ou meia dúzia de platitudes. A menos que fosse inteiramente desprovido de juízo, até um vereador de grotão em começo de carreira diria que a censura acabou faz tempo, que as coisas vão bem, que a democracia foi salva e esbanja saúde, que não se deve acreditar em fake news fabricadas por extremistas de direita. Moraes resistiu poucas horas à tentação de prosseguir no ataque permanente e sem volta. Alheio aos riscos da opção e às barreiras legais, incluiu o inimigo num dos inquéritos que pilota e partiu para a colisão frontal. Moraes só sabe atacar. Os adversários já perceberam que dificilmente aprenderá a recuar golpeando.

Acompanhei atentamente a ascensão e a queda do pugilista Mike Tyson. Em meados de 1986, tornou-se campeão mundial dos pesos-pesados com apenas 20 anos. Nos quatro seguintes, manteve o título nocauteando, quase sempre no primeiro assalto, uma multidão de desafiantes. O roteiro era o mesmo. Ao ouvir o gongo, Tyson alcançava o alvo em rápidas passadas — e então começava a tempestade de diretos, ganchos, uppercuts, cruzados e pouquíssimos jabs. O adversário escapulia, o campeão o acuava de novo, e o golpe definitivo raramente demorava. Foi assim durante quatro anos. E então um treinador localizou o ponto fraco do boxeador aparentemente imbatível: ele era bem menos ágil nos poucos momentos em que combatia andando para trás. A descoberta foi discretamente repassada ao staff de Buster Douglas, que enfrentaria o campeão no começo de 1990. Durante dez assaltos, Buster valeu-se de jabs, empurrões e diretos no rosto para minar a resistência do campeão forçado a caminhar para trás. No décimo round, Buster nocauteou o fenômeno até então invicto.

Mike Tyson derruba o desafiante Tyrell Biggs, na sétima rodada de sua luta pelo campeonato, no Convention Hall, em Atlantic City, em Nova Jersey, nos EUA (16/10/1987) – Foto: Wikimedia Commons

Faz cinco anos que os avanços de Moraes produzem estragos de bom tamanho na segurança jurídica, nas liberdades garantidas pela Constituição, nos códigos legais, no convívio dos contrários e nas relações entre os Poderes, fora o resto. Nesta segunda semana de abril, o choque com Musk interrompeu a ofensiva. O que ainda não foi revelado deverá obrigar nossa caricatura de Mike Tyson a lidar com recuos. Convém preparar-se para a mudança e ignorar o parecer equivocado de Luís Roberto Barroso: “Essa história já é página virada”, ilude-se o presidente do Supremo. A história mal começou.

(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-212/o-torturador-do-portugues/

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