Por Augusto Nunes (*)
Em junho de 2015, na sessão do Supremo Tribunal Federal que decidiu livrar de restrições a publicação de biografias não autorizadas, a relatora Cármen Lúcia transformou a primeira metade de um velho provérbio numa concisa declaração de amor à liberdade. “Cala a boca já morreu”, resumiu. “Quem manda em minha boca sou eu”, concordaram os nove ministros presentes ao julgamento, além de milhões de brasileiros que acompanhavam o julgamento pela TV Justiça. Nunca antes naquela Corte a censura fora repudiada com tamanha clareza e tão poucas palavras.
No Pretório Excelso, como sabe qualquer advogado de porta de cadeia, desde sempre a língua oficial foi o juridiquês pedante. Animados com a criação da TV Justiça, os superdoutores parecem resolvidos a piorar o subdialeto com a infiltração de mais velharias do português erudito, mais latinório e mais citações exumadas no cemitério das línguas mortas. Ou coletadas em idiomas inacessíveis ao brasileiro comum: quando é Gilmar Mendes quem empunha o microfone, por exemplo, o palavrório nunca dispensa medonhos grunhidos em alemão. Pois Cármen Lúcia consumara em língua de gente o sepultamento da censura a obras que refrescam a memória de um país assolado pela amnésia voluntária.
Em 20 de outubro de 2016, já ocupando a presidência do Supremo, a ministra deixou claro que a declaração de amor à liberdade não se limitava a biografias não autorizadas. Cabe ao Supremo, lembrou numa palestra proferida em São Paulo, assegurar tanto a liberdade de expressão quanto o direito que tem todo cidadão de informar-se e ter acesso a opiniões distintas. “Deixa o povo falar”, recomendou a oradora depois de reiterar que “cala a boca não morreu”. Para a ministra, “não há democracia sem uma imprensa livre, não há democracia sem liberdade, ninguém é livre sem informações”.
Eu não conhecia direito a jurista que o presidente Lula indicara em junho de 2006 para a vaga aberta pela saída de Nelson Jobim. Sabia que, naquele arquipélago de 11 ilhas sem ligações consistentes entre uma e outra, a mineira de Montes Claros movia-se com discrição e decidia com independência. Durante o julgamento do Mensalão, que promoveu a celebridades os 11 ministros, vira em ação uma Cármen Lúcia com boa formação intelectual, gentil com a língua portuguesa, avessa a votos intermináveis e sem medo de condenar culpados ilustres. Achei que a conhecia bem melhor depois dos três encontros que tivemos em 2017. Não haveria um quarto.
O primeiro ocorreu em julho daquele ano, no seu gabinete em Brasília. Surpreendeu-me o contraste entre a figura extraordinariamente franzina que chefiava o Poder Judiciário e o latifúndio reservado a quem ocupa tal cargo. Um oceano de madeira e concreto cercava a mulher que pesava 39 quilos. Isso mesmo: menos de 40. O temor de vê-la flutuar feito pluma caso irrompesse uma ventania mais forte foi abrandado pela visão das janelas fechadas. Continuou a afligir-me outro enigma espacial: como era possível um corpo tão diminuto acomodar tantos órgãos vitais? Achei melhor parar com dúvidas bizarras e concentrar-me em questões menos estranhas. Duas horas depois, deixei o prédio na Praça dos Três Poderes convencido de que a fragilidade física era amplamente compensada pela conjunção de virtudes e trunfos de nascença.
Cármen Lúcia continuava corajosa e coerente, acreditei. Mantinha o apoio aos avanços da Operação Lava Jato. Não perdia o sono com possíveis pressões articuladas pelo grupo liderado por Gilmar Mendes. E a aversão a corruptos não arrefecera. “Todos os culpados, sejam quais forem o tamanho da fortuna ou suas relações com o poder, têm de ser punidos”, repetiu. Nessa conversa inaugural, também conheci a face espirituosa da magistrada condenada à sobriedade em público. Contou, por exemplo, que encontrara a resposta aos que lhe perguntavam se pretendia engordar um pouco: “Estou tomando Biotônico Fontoura”.
Neste abril, a segunda versão de Cármen Lúcia negou-se a anular o castigo aplicado a Deltan Dallagnol: terá de indenizar Lula, por danos morais, com a pequena fortuna calculada em R$ 100 mil
O apreço por molecagens se manifesta com alguma frequência, souberam os participantes do programa Roda Viva exibido em 28 de outubro de 2016. Foi meu terceiro encontro com a ministra. Encerrada a transmissão ao vivo, entrevistadores e entrevistada continuaram no estúdio. Um jornalista quis saber se a TV Justiça efetivamente tornara os ministros muito mais reconhecíveis nas ruas. “Sim e não”, começou Cármen Lúcia a recordar o fim de tarde em que, a poucos quilômetros de Brasília, um problema mecânico obrigou seu motorista a estacionar o carro oficial no acostamento. Resumo da ópera:
“Eu não podia chegar atrasada a uma reunião que começaria em meia hora. Então vi que se aproximava um policial militar numa motocicleta. Fiz sinais para que parasse, contei o que havia acontecido, ele pareceu me reconhecer e avisou que buscaria socorro. Eu disse que preferia ir com ele para Brasília e fui me acomodando na garupa. Ele perguntou se eu era ministra do Supremo. Confirmei. Quando perguntou meu nome, não hesitei um único segundo. Disse que eu era Rosa Weber.“
Entre a conversa no gabinete e a continuação da entrevista ao Roda Viva, houve na manhã de 15 de agosto o segundo encontro, num seminário sobre a Justiça brasileira promovido pela empresa em que eu trabalhava. Escalado para apresentar os debates no auditório de um hotel em São Paulo, convidei o juiz Sergio Moro para o painel de abertura e a presidente do STF para o encerramento. Caminhava ao lado de Moro por uma saída semiclandestina quando topamos com a ministra que chegava — e testemunhei o curto diálogo.
Moro estava preocupado com a possível revogação da decisão do Supremo que permitiu, em 2010, o começo do cumprimento da pena depois da condenação em segunda instância. Até então, isso só podia acontecer depois do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. “Será um erro restabelecer o texto antigo”, insistiu Moro. “Eu não mudei”, garantiu a ministra, que votara a favor da mudança ocorrida sete anos antes. “Não me preocupo com a senhora, mas com os outros”, esclareceu Moro. “Tenha certeza de que não mudei”, sorriu Cármen Lúcia.
A mudança para pior começaria em 20 de outubro de 2022, durante a sessão do Tribunal Superior Eleitoral que censurou imagens e textos acusados de favorecer Jair Bolsonaro. “Não se pode permitir a volta de censura sob nenhum argumento no Brasil”, balbuciou a ministra no início dos trabalhos. Logo fingiu descobrir que o momento era excepcionalíssimo — e aprovou a censura com codinome. Mascarando o constrangimento, propôs “a inibição até o dia 31 de outubro, exatamente no dia subsequente ao do segundo turno”. Amparado no silêncio da mutante, o cala a boca ignorou o prazo de validade e continua em vigor. Cármen Lúcia esqueceu o que disse no passado recente e incorporou-se à bancada de Gilmar Mendes.
Neste abril, a segunda versão de Cármen Lúcia negou-se a anular o castigo aplicado a Deltan Dallagnol: terá de indenizar Lula, por danos morais, com a pequena fortuna calculada em R$ 100 mil. Não tem perdido nenhuma chance de punir o senador Sergio Moro, cumpre zelosamente missões repassadas por Gilmar e Alexandre de Moraes. Aos 70 anos, de volta à presidência do Tribunal Superior Eleitoral, prepara-se para governar as eleições municipais. Restam cinco anos para recuperar a sensatez e o lugar na História (com maiúscula) que ocupou por algum tempo. Caso prossiga na trilha do penhasco, será apenas protagonista de uma história (com minúscula) desonrosa. Pode acabar mostrando que o cala a boca está mais vivo do que nunca.
(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.
Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-214/o-que-aconteceu-com-carmen-lucia/