Supremo deboche

O drama vivido por milhares de brasileiros é tratado como piada pelo comando do Poder Judiciário

Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Rosa Weber | Foto: Montagem Revista Oeste/Reprodução/Marcos Oliveira/Agência Senado/Carlos Alves Moura/STF

Por Augusto Nunes (*)

Tão previsível quanto a mudança das estações, a troca de guarda no Supremo Tribunal Federal é menos empolgante que festa de batizado na sacristia da igrejinha. A tradição determina que os dois primeiros da fila de 11 ministros, formada pelo critério da antiguidade, sejam alojados a cada dois anos nos cargos de presidente e vice-presidente. Sempre pelo placar de 10 a 1: as boas maneiras ordenam que os previamente escolhidos votem nos que irão substituí-los na mudança seguinte. Ao divulgar o resultado, portanto, o presidente em fim de mandato está dispensado de identificar os homenageados com o voto solitário. Não precisa, certo?

Precisa, sim, decidiu Rosa Weber neste 9 de agosto, na primeira etapa da cerimônia do adeus que se encerrará com a aposentadoria em setembro. O roteiro começou a desandar quando Rosa Weber cismou de enxergar na cerimônia protocolar uma eleição de verdade, só que sem urna eletrônica e com cédulas de papel. Foi assim que o que seria uma sessão ligeiramente mais solene acabou transformada numa bizarra mistura de hora do recreio num antigo curso de madureza com happy hour da turma da quarta série 30 anos depois da formatura.

Todos estavam felizes na quarta-feira mais que perfeita. Barroso transpirava alegria por assumir o comando da tropa que derrotou o bolsonarismo na frente suprema

Terminada a apuração, Rosa comunicou que Luís Roberto Barroso conquistara a Presidência ao derrotar por 10 a 1 o ministro Edson Fachin, em quem o vencedor havia votado. Em compensação, Fachin só não conseguira a unanimidade na disputa da Vice-Presidência por ter votado em Alexandre de Moraes (que em 2025 será eleito vice do presidente Fachin). Rosa abriu o desfile de algarismos com a expressão severa de quem figurou entre os protagonistas da versão brasileira do Dia da Infâmia, como ficou conhecido o ataque militar japonês à base norte-americana de Pearl Harbor, durante a Segunda Guerra Mundial. Ao topar com o desempenho de Moraes no simulacro de eleição, ela desviou o olhar para o lado direito do Egrégio Plenário, localizou o perdedor e, solidária com o derrotado até então invicto, sorriu.

Ainda sorria quando ouviu o comentário do também risonho Gilmar Mendes:

— Vai colocar esse pessoal num inquérito…

Mero palpite? Sugestão explícita? Outra declaração de guerra? Nada disso, parecia informar a expressão “esse pessoal”, usada pelo decano para referir-se aos dez ministros que haviam imposto a Moraes o primeiro revés em mais de quatro anos de confrontos. O comentário seria remetido ao baú dos chistes e pilhérias em juridiquês se a réplica do artilheiro do Timão da Toga não tivesse escancarado o espetáculo do deboche:

— É que a eleição não foi no TSE…

Moraes ouvira claramente o elogio da desfaçatez, avisou a rapidez da resposta. Mas o olhar intrigado de alguns ministros animou Gilmar a repetir a piada obscena com a boca a poucos centímetros do microfone.

— Vai colocar esse pessoal num inquérito… — reincidiu o decano.

Inquérito é o que não falta. Além da usina de investigações inconstitucionais inaugurada no início de 2019, o ministro que governa também o Tribunal Superior Eleitoral cuida da fábrica de punições destinadas a enquadrar os que pecaram nas eleições do ano passado e os que já preparam delinquências para a disputa do ano que vem. Só o golpe de 8 de janeiro resultou em mais seis inquéritos secretos, sucessivos recordes na modalidade captura em massa, centenas de prisões sem julgamento, milhares de oitivas sem pé nem cabeça, uma infinidade de castigos arbitrários e a eternização da insegurança jurídica. “Tem muita gente pra prendê, muita multa pra aplicá”, não param de ouvir os botões da toga.

Todos estavam felizes na quarta-feira mais que perfeita. Barroso transpirava alegria por assumir o comando da tropa que derrotou o bolsonarismo na frente suprema. Sobrancelhas e pestanas se cumprimentaram quando a garganta de Barroso qualificou de “luminosa” a passagem da introvertida gaúcha pela Presidência do STF. Ele vai suceder Rosa, mas nem tentará substituí-la. É tarefa impossível, conformou-se, alheio aos dicionários que teimam em garantir que sucessor é a mesma coisa que substituto.

Moraes estava feliz desde o começo da manhã, quando soube da prisão preventiva de Silvinei Vasques, ex-comandante da Polícia Rodoviária Federal, acusado de ter dificultado a movimentação de eleitores lulistas no dia da votação em segundo turno. A distribuição de mais um lote de tornozeleiras eletrônicas e castigos adicionais foi promovida pela operação Constituição Cidadã. Era esse o adjetivo colado pelo deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Constituinte, ao conjunto de normas aprovado em 1987 e agora em frangalhos. A marcha da insensatez segue seu curso. Já não há limites para o deboche perverso. Nem haverá salvação para os desprovidos de compaixão.

(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.

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