Resistência individual

Toda tirania só avança porque uma maioria fica acovardada, em silêncio, passiva diante da escalada totalitária

Por Rodrigo Constantino (*)

Foram necessários 12 anos de pesquisa sistemática e intensiva para localizar as fontes e finalmente escrever este livro sobre a resistência judaica individual contra a perseguição nazista”, diz Wolf Gruner, autor de Resisters: How Ordinary Jews Fought Persecution in Hitler’s Germany. Os historiadores, inclusive ele, pintaram um quadro de passividade dos perseguidos. À medida que a discriminação na Alemanha nazista aumentava gradualmente, os judeus adaptavam-se lentamente, assim era dito. Mas não foi bem o caso.

Os alemães judeus desobedeceram frequentemente aos regulamentos nazistas e protestaram em público contra a perseguição, apesar do perigo iminente de denúncias por parte de alemães não judeus e subsequentes punições severas. Os judeus alemães não eram vistos como cidadãos, mas, ironicamente, eram ao mesmo tempo acusados de traidores da Pátria. Qualquer crítica que faziam ao governo era tratada como uma potencial ameaça para derrubar o regime.

Livro Resisters: How Ordinary Jews Fought Persecution in Hitler’s Germany, de Wolf Gruner | Foto: Reprodução

O cenário era de tensão constante desde a ascensão de Hitler ao poder. Em vez de serem simplesmente atirados para um campo de concentração, como muitas vezes se supõe erradamente, esses “judeus atrevidos” eram geralmente processados ​​e levados a julgamento em tribunais especiais por “ataques traiçoeiros ao Estado nazista”. Eles receberam sentenças de vários meses a anos de prisão por seus supostos crimes. Quando libertados da prisão antes da “Kristallnacht” (“Noite dos Cristais”), em 1938, muitos fugiram imediatamente da Alemanha, o que muitas vezes salvou suas vidas.

Nem todos tiveram como fugir, claro. As autoridades nazistas exigiram que os judeus que permanecessem entregassem todas as armas que possuíssem. Embora a posse de armas tivesse sido proibida na Alemanha desde a Revolução de 1918 e uma lei de 1928 previsse algumas isenções para os titulares de licenças, alguns judeus mantiveram as armas do tempo de seu serviço durante a Guerra Mundial, e outros possuíam armas para caça. Mas os nazistas eram desarmamentistas, pois temiam uma reação armada de seus alvos.

Assim como a Stasi fez depois na Alemanha Oriental, Hitler contava com um aparato de denunciantes dos judeus. Dado que a separação entre as esferas privada e pública, bem como a proteção das casas particulares, rapidamente deixou de existir no Terceiro Reich, os tribunais enviaram judeus para a prisão, até mesmo por comentários críticos que faziam na privacidade dos seus próprios apartamentos. Não havia mais esfera privada ao cidadão, principalmente ao judeu, que não era visto como cidadão. Empresários poderiam receber a polícia pela manhã e responder a inquérito por mandar um emoji num grupo fechado de WhatsApp! Ou será que estou confundindo esse evento, o país e a época?

Guardas da SS forçam judeus inocentes, presos durante a “Noite dos Cristais”, a marcharem para as “prisões” pela cidade de Baden-Baden, sob a vista de curiosos, na Alemanha (10/11/1938) | Foto: Reprodução

Mas o importante é que os judeus não ficaram passivamente assistindo a tudo isso sem qualquer reação, como reza a lenda. A fuga dos campos de trabalho forçado, a desobediência à proibição de deixar a cidade de origem, a fuga às deportações ocultando identidades e a passagem ilegal das fronteiras dominaram os anos de 1939 a 1945. O número de judeus escondidos na Alemanha é estimado entre 10 mil e 12 mil. Só em Berlim, de 5 mil a 7 mil judeus (de um total de quase 73 mil) esconderam-se depois do início dos transportes para os campos de concentração, em 1941.

Atos como se sentar em um banco proibido do parque, fotografar uma placa antijudaica, menosprezar Hitler, não usar uma “estrela amarela”, fugir e suicidar-se são realmente resistência? Pode ser considerado demasiado expansivo interpretar esses atos como resistência, mas a realidade numa ditadura é que as autoridades percebem cada expressão de uma opinião diferente, cada desvio do comportamento dominante prescrito e cada desafio a uma orientação ideológica, política, social ou econômica de forma muito diferente do que seria o caso numa sociedade aberta.

Pressionar os parlamentares para impedir a indicação de um comunista a uma Corte Suprema, por exemplo, pode surtir grande efeito. Ocupar as ruas em manifestações para deixar claro que não aceita intimidação, também

Para os nazistas, esses judeus que desafiavam o regime eram resistentes, eram “atrevidos”. Contar a história de alguns indivíduos que foram ícones desse tipo de resistência é o objetivo do livro, e isso tem relevância para desfazer a imagem de passividade atribuída aos judeus na Alemanha Nazista. Claro que podemos apenas conjecturar se uma resistência armada efetiva poderia ter impedido o Holocausto, mas é preciso fazer justiça aos corajosos judeus que se recusaram a simplesmente entregar de bandeja o pescoço para os nazistas.

Outro ponto importante é que talvez uma resistência maior antes de Hitler acumular o poder que acumulou poderia ter impedido o pior. “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”, alertou Martin Luther King. “Para o triunfo do mal só é preciso que os bons homens não façam nada”, alertou na mesma linha e bem antes Edmund Burke. Toda tirania só avança porque uma maioria fica acovardada, em silêncio, passiva diante da escalada totalitária. Muitos só começam a reagir quando a água começa a bater em seu próprio bumbum, ou seja, quando o abuso de poder interfere diretamente em sua vida. Os tiranos contam com essa letargia.

28 de agosto
Martin Luther King fazendo seu célebre discurso – Foto: Reprodução/Agência de Informação dos EUA/Serviço de Imprensa e Publicações

Mas a resistência individual pode fazer a diferença, especialmente no começo das tiranias. Pressionar os parlamentares para impedir a indicação de um comunista a uma Corte Suprema, por exemplo, pode surtir grande efeito. Ocupar as ruas em manifestações para deixar claro que não aceita intimidação, também. E gritar contra a censura imposta na tentativa de calar as vozes dissidentes, idem. Cada indivíduo tem um pequeno poder que, somado, tira o sono dos tiranos. E, na pior das hipóteses, se a tirania for mesmo inevitável, ao menos os resistentes saberão que não se curvaram, não se venderam ao Diabo, não sacrificaram sua consciência e não traíram seus valores. Quem ficou calado durante todo o processo não poderá jamais dizer o mesmo…

(*) Economista liberal-conservador, autor do best-seller “Esquerda Caviar” (Editora Record)

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-193/resistencia-individual/

DEIXE SEU COMENTÁRIO

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.