Gotham City tupiniquim

Quando o Estado do Rio de Janeiro, dominado por bandidos, falha em sua função fundamental, a população assume as rédeas da própria segurança - Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock

Por Rodrigo Constantino (*)

“Soco-inglês, roupa preta, lista de presença e escolta armada: ‘justiceiros’ criam grupos para ‘caçar’ ladrões em Copacabana.” Essa era a chamada do G1 nesta semana, com o seguinte subtítulo: “Em grupos de rede social, integrantes definem como adeptos devem se vestir, esconder tatuagens e levar ‘máscaras de covid’ para tapar rosto. Praticantes de jiu-jítsu também se mobilizaram.”

Quando o Estado, dominado por bandidos, falha em sua função precípua, a população assume as rédeas da própria segurança. Assim nascem as milícias, é verdade. Nada disso é desejável ou alvissareiro. A demanda por justiceiros, porém, surge do fracasso estatal. Afinal, o Estado é justamente o pacto social entre indivíduos para delegar a sua proteção contra terceiros. Mas e quando o próprio Estado só protege os marginais?

Ilustração: Shutterstock

“Estado de uma sociedade caracterizada pela desintegração das normas que regem a conduta dos homens e asseguram a ordem social.” Assim o dicionário define o termo “anomia”, cunhado pelo sociólogo Durkheim. É a palavra que melhor define o perigoso momento que vivemos atualmente.

O sociólogo alemão Ralf Dahrendorf, que acompanhou os terríveis anos nazistas de Berlim, escreveu em 1985 um livro chamado A Lei e a Ordem, que o Instituto Liberal traduziu, onde traçou alguns paralelos entre a situação que estavam vivendo os países desenvolvidos nessa época e a era que antecedeu o nazismo.

Para impedir a anomia, era necessário punir todo tipo de crime, para dar o recado, para mudar o mecanismo de incentivos perversos

Seu principal alerta era quanto ao caminho para a anomia, que costuma anteceder regimes totalitários. Afinal, os índices de criminalidade estavam em alta nesses países desenvolvidos, ameaçando a paz e a ordem dos cidadãos.

Dahrendorf estava preocupado com a incidência da impunidade, cuja consequência é a anomia, “quando um número elevado e crescente de violações de normas torna-se conhecido e é relatado, mas não é punido”. A anomia é, pois, “uma condição em que tanto a eficácia social como a moralidade cultural das normas tendem a zero”. Tudo passa a ser visto como permitido, já que nada é punido.

Quando atos criminosos são praticados à luz do dia, carros da polícia são incendiados, a população é refém dos marginais e ninguém é preso, ou, se é, logo acaba sendo solto, isso é um convite para novos e mais ousados atos criminosos.

Capa do livro A Lei e a Ordem, de Ralf Dahrendorf – Foto: Reprodução

Nova York já foi a capital do crime na década de 1970, e foi somente quando as autoridades compreenderam a teoria da “janela quebrada” que as coisas começaram a mudar. Haveria tolerância zero, mesmo com pequenos delitos, como grafiteiros no metrô. O respeito à lei e à ordem deveria ser pleno. Para impedir a anomia, era necessário punir todo tipo de crime, para dar o recado, para mudar o mecanismo de incentivos perversos.

Gotham City, a famosa cidade de Batman, é claramente inspirada em Nova York em seus anos terríveis. “Nós não vamos chamá-la de Nova Iorque porque queremos que qualquer pessoa em qualquer cidade se identifique com ela”, explicou o escritor Bill Finger. A primeira menção de Gotham City numa história em quadrinhos da DC foi em 1940. Isso serve para lembrar que o caos nova-iorquino não foi novidade na década de 1970. Basta ver o filme Gangues de Nova York para deixar isso claro.

A boa notícia é que as coisas podem melhorar, se a polícia efetivamente cumprir sua tarefa, e o sistema judiciário for duro com bandidos. Quando o crime está totalmente entranhado nas instituições de Estado, porém, reverter o quadro sombrio é um desafio e tanto. O Rio, nossa Gotham City tupiniquim, já é praticamente um narcoestado. Não é que exista muito bandido na política; é que a política virou basicamente uma extensão da bandidagem!

Thomas Hobbes, escrevendo seu Leviatã no século 17, alega que os seres humanos são egoístas por natureza, uma premissa realista e contrária ao romantismo de Rousseau e seu “bom selvagem”. Com essa natureza os homens tenderiam a guerrear entre si, todos contra todos (“bellum omnia omnes“). Assim, para não nos matarmos uns aos outros, será necessário um contrato social que estabeleça a paz, a qual levará os homens a abdicarem da guerra contra outros homens. Mas, egoístas que são, necessitam de um soberano (Leviatã) que puna aqueles que não obedecem ao contrato social. Nasce assim o Estado poderoso.

Capa do livro Leviatã, de Thomas Hobbes – Foto: Reprodução

Quem vigia o vigia? A pergunta, feita pelo poeta romano Juvenal (“Quis custodiet ipsos custodes?“), segue um tanto atual e sem resposta fácil. Para impedir que o próprio Estado se torne a maior ameaça aos indivíduos e suas propriedades e liberdades, cria-se uma série de mecanismos, como a democracia representativa, a Constituição, a divisão entre os Poderes, a descentralização pelo federalismo, os freios e contrapesos. Mas não há garantias. O Estado pode, ainda assim, ser tomado de assalto por um clã, uma tribo, um bando. E, se isso acontece, o resultado é o inferno para os “cidadãos”, tratados como escravos, súditos descartáveis ou vacas leiteiras que servem só para pagar impostos.

Hobbes queria evitar, com seu Estado Leviatã, que a vida dos homens fosse solitária, pobre, sórdida, brutal e curta. Mas e quando com o próprio Estado a vida de uma maioria decente está exatamente assim? Ora, é aí que surge a demanda por revoluções, por justiceiros, por milícias. É necessário olhar para onde escorregamos, não onde caímos. Ou o Estado volta a servir a população com sua função primordial, ou a população vai buscar meios alternativos. Ninguém suporta o caos da anomia por muito tempo.

(*) Economista liberal-conservador, autor do best-seller “Esquerda Caviar” (Editora Record)

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-194/gotham-city-tupiniquim/

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