O promotor deveria ter ouvido o juiz

Por ter ignorado a voz da sensatez, Alexandre de Moraes desconhece a importância do comedimento

Por Augusto Nunes (*)

Ennio Bastos de Barros tinha nome, jeito, cara e modos de juiz de Direito. Coerentemente, ele comandava a comarca de Taquaritinga nos tempos em que minha turma já encerrara a primeira infância mas ainda estava longe da adolescência. O uniforme coletivo era imposto a todos os menores de 11 anos nas horas do dia em que não estávamos na escola ou dormindo: camiseta com a cor do time do coração, barata demais para incluir o distintivo no peito e um número nas costas, e aquele detestável calção improvisado pela mãe ou por alguma tia com a amputação, milímetros acima do joelho, das pernas de uma calça de adulto derrotada pelo tempo.

Não havia no bando de moleques nenhum caso de polícia, tampouco delinquentes mirins em gestação. Mas, por via das dúvidas, convinha adotar medidas preventivas que nos mantivessem fora da mira dos homens da lei. O jogo de futebol na rua de terra, por exemplo, era interrompido assim que despontava na esquina da General Glicério com a Rio Barbosa, perto das 2 da tarde, aquele homem de terno e gravata, semblante grave, cada fio de cabelo em seu lugar, caminhando em direção ao fórum. Entrincheirados sob a parreira no corredor que levava ao quintal da casa dos meus pais, tanto os inocentes de carteirinha quanto os pecadores compulsivos, que nunca escapavam de pelo menos 80 ave-marias e 30 padre-nossos a cada escala no confessionário, uniam-se na reverência silenciosa.

Foto: Rikesh Attadip/Shutterstock

A prudência recomendava que a personificação da Justiça fosse tratada com respeito, mas o doutor Ennio não inspirava medo. Tal sentimento ficava por conta do promotor de Justiça cujo sobrenome exótico lembrava espécies raras de peixe encontradas apenas na Bacia Amazônica. Enquanto representou o Ministério Público na cidade de 15 mil habitantes, o promotor com fama de doidão caprichou no olhar de quem só dormiria em sossego se engaiolasse no mínimo dez por dia. Desse perigo ambulante mantivemos distância até a terça-feira em que o medo foi aposentado pela grande notícia: na véspera, aos 30 e poucos anos, o doutor abandonara a mulher, os filhos e a cidade para, levando apenas a roupa do corpo e o coração transbordante de paixão, fugir com a jovem e bonita empregada doméstica.

Se tivesse um pouco mais de juízo, o promotor que acusava culpados e inocentes com a mesma convicção furiosa talvez virasse ministro do Supremo Tribunal Federal. Prender gente era a coisa que mais apreciava. Em contrapartida, o antigo juiz da comarca se sentiria tão à vontade no Pretório Excelso destes tempos estranhos quanto um Winston Churchill no Ministério do governo Lula. Primeiro nos fóruns de pequenas cidades interioranas, depois como desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, enfim como advogado, o jurista morto em fevereiro de 2017 sempre soube mostrar como é (e como age) um magistrado de nascença. Essa linhagem só tem vagas para quem condena ou absolve com base nos fatos — e somente nos fatos —, toma decisões amparado nos autos do processo, obedece sem hesitações ao que a lei determina, sabe que para quem julga a parcialidade é o oitavo pecado capital, ama a verdade acima de todas as coisas e tenta teimosamente transformar em 11º mandamento uma cláusula pétrea — “Todos são iguais perante a lei” — esquecida no baú das utopias constitucionais. Não é pouca coisa.

Se ainda estivesse entre nós, o grande juiz certamente reprovaria o desempenho dos ministros que controlam o Supremo Tribunal Federal

Mas não é tudo. Juízes de nascença também aprendem ainda no berçário a tratar com carinho o idioma nacional. Autor de vários livros, bom orador, Ennio Bastos de Barros não se limitou a escrever e falar com exemplar elegância. Também fez o que pôde para impedir que a língua portuguesa fosse submetida a medonhas sessões de tortura por promotores de Justiça e advogados. Em março de 1968, por exemplo, ele trabalhava na 10ª Vara Cível de São Paulo quando recebeu um texto produzido pelo defensor do réu de uma ação de despejo. Inconformado com o que considerou uma prova veemente do “primarismo palmar” do bacharel, o magistrado resolveu que era hora de conter a disseminação de crimes contra o idioma praticados por doutores semialfabetizados.

“Como essa entidade é ‘órgão de seleção disciplinar e defesa da classe dos advogados’, acredito que seja de seu interesse apurar as razões da inépcia desse integrante de seus quadros”, diz um trecho da petição encaminhada à seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil. Para comprovar o “ignóbil nível de conhecimento jurídico” de bacharéis “sem um mínimo de formação cultural”, o magistrado anexou dois textos do mesmo advogado em que grifara um punhado de erros crassos. Três deles: denumciadosvestijos e emediatos. A repercussão do caso resultou na criação do exame obrigatório para ingresso na OAB.

Alexandre de Moraes – Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Se ainda estivesse entre nós, o grande juiz certamente reprovaria o desempenho dos ministros que controlam o Supremo Tribunal Federal. Mas é improvável que se surpreendesse com o que anda fazendo Alexandre de Moraes há mais de quatro anos. O magistrado vocacional o conheceu em novembro de 1997, quando o promotor de 29 anos apenas esboçava o estilo que seria aperfeiçoado depois da chegada ao STF. À frente de um grupo de integrantes do Ministério Público, Moraes convocou uma entrevista coletiva para comunicar que havia denunciado Paulo Maluf por improbidade administrativa. Durante o falatório, responsabilizou Maluf pela compra superfaturada de frangos durante sua passagem pela prefeitura de São Paulo.

Advogado do ex-prefeito, o desembargador aposentado foi à réplica: “Ao dar como certo o que ainda lhe caberá provar, o promotor não guarda o necessário comedimento”. Segundo os dicionários, comedimento quer dizer austeridadeautocontrolecircunspecçãocompostura. Todos os termos combinam com Ennio. Nenhum rima com Moraes, confirmou a reação do impetuoso promotor: “Nenhuma ameaça vai impedir que o Ministério Público continue seu trabalho técnico de defesa do patrimônio público”, caprichou na redundância. Em público, de novo. Enxergando ameaças imaginárias, como sempre. Maluf acabou ganhando a causa.

O desempenho do centroavante rompedor do Timão da Toga atesta que Moraes preferiu ignorar a voz da razão. Essa decisão infeliz condenou o jovem promotor nada comedido a tornar-se um ministro cinquentão sem compostura.

(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.

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