O medo acabou

A ofensiva do Congresso resgatou a Constituição revogada pelo Supremo

Foto: Shutterstock

Por Augusto Nunes (*)

Faz quase quatro anos que a bancada majoritária no Supremo Tribunal Federal age como se a Constituição promulgada em 1988 tivesse sido reescrita pelas sumidades jurídicas numa sessão sigilosa. No texto conhecido pelos brasileiros comuns, os Três Poderes são iguais, independentes e devem conviver em harmonia. Na Nova Carta Magna, só acessível a 11 gênios da raça, o Judiciário é mais igual que os outros e pode fazer o que lhe der na telha. Desde 2020 o STF mete-se em assuntos que não figuram em suas atribuições, confisca territórios pertencentes ao Legislativo e ao Executivo, julga quem resolve punir e não é julgado por ninguém. Os que choram o sumiço da harmonia que se queixem ao Tribunal de Haia, ou a algum bispo exilado pela ditadura nicaraguense. Não faz sentido pensar em igualdade se só os integrantes do Pretório Excelso são doutores em tudo.

Nesta primeira semana de outubro, os campeões da soberba tropeçaram na lição de Tom Jobim. Se o Brasil não é para principiantes, o Congresso, até por ser composto de representantes do povo brasileiro, não é para amadores arrogantes. Em apenas três dias, ficou claro que os superjuízes nem desconfiavam da existência de regras não escritas que figuram no DNA do Congresso brasileiro. Primeira delas: o Legislativo é o único poder cujos integrantes são obrigados a ficar em permanente contato com os eleitores. Não podem, por exemplo, desfrutar da agenda inventada pelo atual chefe do Executivo. Como se fosse um presidente do mundo, Lula anda viajando para o exterior com tanta frequência que já tem milhagem de veterano comandante de Boeing. As conversas com Janja tomam tanto tempo que alguns ministros ainda lutam para conseguir a primeira audiência.

Janja e Lula, na Base Aérea de Brasília (DF), recebem as despedidas do vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, durante partida para Havana, Cuba (15/9/2023) | Foto: Ricardo Stuckert/PR

Um parlamentar precisa saber o tempo todo o que pensam seus eleitores — e, se quiser reeleger-se, jamais deve contrariá-los. “O Congresso sempre faz o que o povo quer”, repetia o deputado gaúcho Ibsen Pinheiro. “Mas o povo precisa mostrar o que deseja.” Neste segundo semestre, aproximou-se da estratosfera a taxa de impopularidade do STF, catapultada por sucessivas agressões à Constituição e aos códigos legais que continuam em vigor no Brasil decente. O espetáculo da prepotência escancarou o abismo que separa a Pasárgada dos togados do mundo real. Fechados em carros oficiais, jantares supervip, sessões proibidas para réus e seminários em paragens distantes, os ministros enxergam um louvável conjunto de medidas, todas fundamentais para a sobrevivência da democracia, no que aos olhos de milhões de brasileiros sem toga não passa de um monumento à perversidade liberticida.

Nas democracias genuínas, não existem presos ou exilados políticos, nem há motivos para temer um Tribunal concebido para garantir o cumprimento da Constituição

Com o começo do julgamento da multidão de acusados de envolvimento no que o STF qualificou de Golpe de 8 de Janeiro, precipitou-se a reação dos congressistas dispostos a deter a marcha da insensatez. O súbito crescimento do grupo exibiu outro componente do DNA do Legislativo. Entre o eleitorado e o partido a que está filiado, o parlamentar invariavelmente fica com o dono do voto. Esse agudo instinto de sobrevivência eleitoral também atinge ligações pessoais. Políticos calouros aprendem em poucas semanas que devem ficar ao lado de algum velho parceiro em dificuldades — mas só até o fim do velório. Não se sabe de um único parlamentar que tenha solicitado um lugar no caixão. Veja-se o caso de Eduardo Cunha. Era o monarca do centrão que reinava na Câmara. Depois de poucos dias agonizante, quase conseguiu o aparentemente impossível: ter o mandato cassado por unanimidade. Pela súbita mudança de postura, o senador Rodrigo Pacheco e o deputado Arthur Lira sabem que é preciso permanecer atento a mudanças na direção dos ventos. Presidentes das duas Casas do Congresso devem vocalizar a vontade da maioria dos presididos antes que a notícia seja divulgada por um presidido à caça de manchetes.

Declarações e decisões exemplarmente sincronizadas revelaram que o Legislativo perdera a paciência com o expansionismo da toga. Na terça-feira, Rodrigo Pacheco afirmou ser favorável à ideia de que os ministros do STF, hoje premiados com um maldisfarçado emprego vitalício, exerçam mandatos de dez anos. O decano Gilmar Mendes viu por trás da opinião do presidente do Senado os golpistas de sempre. Na quarta-feira, Arthur Lira voltou a exigir respeito aos limites estabelecidos pela Constituição de 1988 nos textos que tratam dos Três Poderes. O ministro Luís Roberto Barroso não conseguiu ocultar seu desconforto com o presidente da Câmara. “O Supremo talvez seja uma das instituições que melhor serviram ao Brasil na preservação da democracia”, recitou o novo presidente da Corte. “Não está em hora de se mexer.”

Presidência do Senado
Rodrigo Pacheco, presidente do Senado – Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Não funcionou. Na mesma quarta-feira, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado, numa votação que durou 42 segundos, aprovou um projeto que impõe limites e restrições a decisões individuais (“votos monocráticos”, em juridiquês) nos Tribunais superiores. Foi a continuação da ofensiva desencadeada no Senado pela aprovação a toque de caixa de uma proposta que, na prática, anula a recente decisão do STF sobre o marco temporal das terras indígenas. A Constituição decidiu que só poderiam ser reivindicados espaços ocupados por tribos na data de sua promulgação, em 1988. Os ministros decidiram que é pouco: por que não permitir que seja reclamada qualquer terra ocupada por indígenas em 21 de abril de 1500?

O Congresso costuma mostrar-se especialmente imaginoso quando confrontado com tempestades em formação. Foi assim no fim de agosto de 1961, quando a renúncia do presidente Jânio Quadros e o veto dos ministros militares à posse do vice João Goulart assombraram o país com o fantasma da guerra civil. O Congresso precisou de sete dias para afastar o perigo com a implantação do parlamentarismo. No início de 1967, o governo militar avisou que só incluiria na nova Constituição emendas apresentadas por congressistas se tanto o texto original quanto as alterações fossem entregues até determinada data. Faltavam 15 minutos para o vencimento do prazo quando o senador Auro de Moura Andrade, presidente da sessão, entendeu que seria impossível votar o que faltava em tão pouco tempo. Imediatamente, ordenou que os ponteiros do relógio do plenário fossem paralisados. A papelada foi devolvida só no dia seguinte. Mas tudo fora votado às 23h45 do dia fixado pelo governo militar.

Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) – Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Também inconformado com o martírio imposto a centenas de brasileiros punidos sem julgamento, presos sem provas ou castigados sem culpa, o senador Mourão anexou ao acervo de propostas criativas a decretação de mais uma anistia. Tomara que o Congresso se mostre igualmente compassivo — e rápido no gatilho. As vítimas do ministro Alexandre de Moraes ficarão livres de grades, tornozeleiras eletrônicas, restrições absurdas e acordos indecorosos. Ampliada a abrangência do texto, o país se livrará da mancha vergonhosa. Nas democracias genuínas, não existem presos ou exilados políticos, nem há motivos para temer um Tribunal concebido para garantir o cumprimento da Constituição. A constatação de que o Congresso não tem medo do Supremo melhorou a primavera. A mobilização popular poderá torná-la ainda mais luminosa.

(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-185/o-medo-acabou/

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