O cartel de Brasília

Pablo Escobar foi um traficante e narcoterrorista colombiano, fundador e único líder do Cartel de Medellín - Foto: Montagem Revista Oeste/ Wikimedia Commons/Shutterstock

Por Augusto Nunes (*)

Em setembro de 1989, no segundo dia do encontro da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) no México, os participantes foram atropelados pela notícia condenada a virar manchete: outra bomba explodira no prédio do jornal El Espectador, em Medellín. Junto com meu amigo Júlio César Mesquita, eu debutava em reuniões da entidade como representante do Estadão. Naquele ano, a SIP agrupava mais de 2,5 mil jornais espalhados por cidades das três Américas. Todos os presentes sabiam que o caso dispensava investigações. Era apenas um item a mais na extensa relação de violências promovidas pelo cartel de Medellín contra o diário que ousava publicar verdades sobre seu chefe Pablo Escobar.

Execuções de jornalistas, sequestros de funcionários da empresa, mutilações de prédios com explosivos — essas e outras abjeções compunham a espiral de brutalidades que chegara ao clímax com o assassinato do jornalista Guillermo Cano, proprietário do jornal transformado em alvo preferencial do mais poderoso narcotraficante do mundo. Julinho e eu propusemos que a SIP reagisse à audácia sociopata de Escobar com a publicação simultânea de um editorial que exigisse ações imediatas e vigorosas em defesa da liberdade de imprensa e da democracia colombiana. Os organizadores entregaram aos autores da proposta a redação do texto. Colocado em votação duas horas depois, foi aprovado quase por unanimidade.

Quase. Por ter sido rejeitado em peso por uma única delegação: a formada pelos colombianos. Desconcertado com o veto das vítimas diretas dos cartéis fora da lei, pedi a um deles que revelasse o motivo do veto. “Medo”, respondeu o jornalista. “Vocês nem imaginam o poder dos cartéis. Eles têm cúmplices no Judiciário, no Congresso, no governo. Vão acabar controlando o país inteiro.” A marcha da insanidade seria bloqueada na última década do século pela entrada dos Estados Unidos na zona conflagrada. Em parceria com governantes decentes, oficiais militares imunes à corrupção e policiais sem medo, especialistas norte-americanos orientaram a contraofensiva vitoriosa. Hoje, Pablo Escobar só assusta espectadores de séries que contam o que houve na Colômbia até pouco tempo atrás.

Guillermo Cano, na redação do El Espectador – Foto: Reprodução/El Espectador

Em 1989, o país parecia um caso perdido. Antes de virar uma lembrança inverossímil, o monarca do narcotráfico matou meio mundo impunemente, intimidou a metade restante, foi deputado federal, reinou em Medellín como benfeitor dos desvalidos e fechou com o presidente da República o acordo de espantar um García Márquez: toparia passar uma temporada na prisão, desde que pudesse construir um presídio customizado. Com as bênçãos do governo, um serial killer de filme americano ergueu La Catedral e ali se hospedou. A fachada simulava uma cadeia. Por trás da camuflagem, o dono da prisão de araque e um bando de condenados amigos atravessaram alguns meses ocupados com festas, bebedeiras e visitas femininas.

Uma cláusula do acordo ordenava que militares e oficiais ficassem a pelo menos 1.000 metros de distância do mais acolhedor presídio da história. Essa espécie de promiscuidade entre quem deveria prender e quem merecia ser preso pareceu excessiva até para os padrões colombianos da época. Forçado pelos aliados ianques a romper o acerto pornográfico, o governo tratou o proprietário e prisioneiro do lugar com a devida deferência. Escobar soube com dois dias de antecedência a hora e a data da invasão por tropas do Exército. Sem sobressaltos, retirou-se da prisão cabaré e deslocou-se sem pressa para um esconderijo seguro.

Nesta semana, uma denúncia do Estadão escancarou constrangedoras semelhanças entre o Brasil de Lula e a Colômbia de Pablo Escobar — e pode ter interrompido a gestação de uma espécie de Cartel de Brasília. Em 1984, para deixar claro o que ocorreria com quem se atrevesse a obstruir-lhe o caminho, Escobar ordenou o assassinato do ministro da Justiça, Rodrigo Lara Bonilla. Como o similar brasileiro Flávio Dino está concentrado na consumação de iniquidades prioritárias, deixou por conta de assessores de confiança a missão de estreitar laços de amizade com uma das versões brasileiras dos cartéis que atormentaram a Colômbia no último quarto de século.

Almeida acha que é coisa de racista criticar o patrocínio com dinheiro dos pagadores de impostos uma das visitas a Brasília da cônjuge de Tio Patinhas. Na cabeça do ministro, todo preso que apoia Lula é mais uma vítima da infância sofrida e da injustiça social

De novo, Flávio Dino esqueceu-se de providenciar um álibi menos mambembe para justificar a visita feita ao Ministério da Justiça e Segurança Pública por Luciane Barbosa Farias. Segundo os anfitriões, quem esteve lá foi a comandante do Instituto Liberdade da Amazônia, uma ONG concebida para melhorar as condições de vida da população carcerária. Se quisessem saber direito quem era a visitante, os assessores descobririam no Google que Luciane vem lutando para driblar uma condenação estacionada na segunda instância; que é conhecida no submundo da bandidagem pelo título de “Dama do Tráfico”; que é casada com Clemilson dos Santos Farias, o “Tio Patinhas”; e que o maridão está engaiolado numa cela no Amazonas pelo que fez para tornar-se um dos chefões do Comando Vermelho (CV). A facção ocupa a segunda colocação no ranking das organizações criminosas especializadas em tráfico de drogas e controle de presídios. A liderança continua com o Primeiro Comando da Capital, o PCC.

Já se sabe que emissários do PCC mantêm “conversas cabulosas” com Altos Companheiros do PT. Embora o conteúdo dos diálogos permaneça desconhecido, pode-se afirmar que não entraram na pauta os malefícios do tabagismo ou o possível rebaixamento do Corinthians à série B do Campeonato Brasileiro. Quanto ao que conversaram a Dama do Tráfico e emissários do ministro que fingiu ter rompido com o PCdoB, alguma coisa vazou. Ela confirmou, por exemplo, que um dos temas debatidos foi a abolição das revistas íntimas na entrada dos presídios. Os doutores do Ministério da Justiça ainda não confessaram se aprovam a livre entrada de mulas carregando armas, drogas e celulares.

Flávio Dino ainda recitava desculpas esfarrapadas quando a Dama do Tráfico contou que anda recebendo afagos também de Silvio Almeida, instalado no primeiro escalão pelo critério de cotas: pegaria mal entregar a algum branco o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania no Brasil. No cargo por ser negro, Almeida acha que é coisa de racista criticar o patrocínio com dinheiro dos pagadores de impostos uma das visitas a Brasília da cônjuge de Tio Patinhas. Na cabeça do ministro, todo preso que apoia Lula é mais uma vítima da infância sofrida e da injustiça social. Mais importante ainda, a Dama do Tráfico é uma mulher de preso que conseguiu subir na vida. Como Janja. Ambas merecem respeito.

Em países normais, ministro que adula meliantes perde o emprego. No Brasil do PT, quem faz uma coisa dessas, e até entra na Favela da Maré sem pedir licença, merece ganhar uma toga de ministro do Supremo. Estes tempos andam mesmo estranhos. Não só os idiotas identificados por Nelson Rodrigues, mas também os fora da lei irrecuperáveis perderam a vergonha de vez e estão agora por toda parte. Por que haveriam de ficar fora da cúpula dos Três Poderes?

Flávio Dino, ministro da Justiça e Segurança Pública – Foto Lula Marques/Agência Brasil

(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-191/o-cartel-de-brasilia/

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