Falar de improviso é um perigo

Desfrute de uma intrigante viagem pela cabeça de Moraes (1ª parte)

Por Augusto Nunes (*)

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, vigia com lupa o interminável terceiro turno da eleição de 2022. Falta esvaziar de vez o baú de candidatos à cassação. Ele também precisa manter sob estreita vigilância os que seguem sonhando com o aperfeiçoamento do voto eletrônico. E continua aos cuidados do ministro o cursinho que ensina a defender a democracia com pontapés na Constituição e nas leis em vigor. Figurão de uma corte suprema que decide até quem foi o campeão brasileiro de futebol em 1988, Moraes faz questão de dizer o que pensa do aborto, ou da devolução do Brasil aos descendentes dos índios que habitavam o país em 1500. Parteiro e padrasto de sabe Deus quantos inquéritos secretos, o superjuiz desempenha em cada um e ao mesmo tempo os papéis de vítima, queixoso, detetive, delegado, promotor, magistrado e juiz revisor. Não é pouca coisa.

Mas não é tudo. Também relator do julgamento de mais de mil acusados de envolvimento nos distúrbios de 8 de janeiro, Moraes decide o tamanho do lote de réus, se a sessão ocorrerá no plenário ou será virtual, quantos anos de cadeia merece cada golpista, quais serão os castigos adicionais, além da multa escorchante e da tornozeleira tão apreciadas pelo inventor da meia liberdade, do culpado por falta de provas, do julgamento por lote, da prisão provisória sem prazo para acabar e outros prodígios de perversidade. Tanta trabalheira não o impediu de aceitar o convite para encerrar o II Congresso Internacional de Direito Financeiro e Cidadania, realizado no Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Má ideia. Neste 6 de outubro, uma sexta-feira, o que Moraes produziu não foi uma palestra, nem um pronunciamento com começo, meio e fim, muito menos uma aula. O vídeo a seguir contém parte da apresentação. Dele foram extraídos, e reproduzidos abaixo sem retoques nem correções, desfiles de consoantes e vogais que tropeçam em interjeições sem serventia, estacionam em reticências perplexas e mudam subitamente de rumo. Extraordinariamente bizarro, o palavrório convida a uma intrigante viagem pela cabeça do superjuiz.

O vídeo começa com Moraes no meio da evocação de uma fake news que capturou não sabe exatamente quando. “Três, quatro anos, talvez mais”, murmura. “A Venezuela já havia invadido o Acre, o Brasil, e estava marchando, e tal, e o especialista estava falando que isso era comunismo, tal… é…” , diz o ministro. Esse tipo de mentira não é novo: Lula, por exemplo, revelou em primeiríssima mão que Napoleão Bonaparte invadiu a China. De todo modo, Nicolás Maduro teria concretizado o maior dos milagres desde a travessia do Mar Vermelho por Moisés se começasse a invasão do Brasil pelo Acre. O Estado não tem um único centímetro de fronteira com a Venezuela.

Ilustração: Shutterstock

“Por que é impressionante como o comunismo dá ibope, né?”, prossegue Moraes, exumando uma expressão tão envelhecida quanto cáspite ou homessa. (Alguém precisa avisá-lo que o Ibope nem existe mais). “Noventa e nove por cento das pessoas que falam nem sabem o que é comunismo, né? Um por cento que sabe, sabe que não existe mais comunismo.” Como seus companheiros de Pretório Excelso, Moraes tem no cérebro um poço de certezas com profundidade suficiente para abrigar um cardume de baleias. Ele certamente se achava doutor também em comunismo. Deve ser transferido para o grupo dos 99% pelo que disse em seguida. “A China é comunista, né?… É mais capitalista que nós… O Putin é o rei do comunismo, né? Mas você fala em comunismo, principalmente para as pessoas mais velhas, cê fala em comunismo é um negócio… É o… Por que que você é contra não sei o quê? Porque vão instalá o comunismo no Brasil.”

O país que o orador considera “mais capitalista que nós” é governado há mais de 70 anos pelo Partido Comunista da China, que controla os meios de produção, decide o que os governados devem fazer e determina até o número de filhos que um casal pode ter. Desde 1961 o Partido Comunista Cubano resolve o que farão os habitantes da ilha-presídio concebida pelos irmãos Castro. Desde sempre, sacerdotes do marxismo tentam camuflar a real identidade com truques semânticos. Até a erosão acelerada pela queda do Muro de Berlim, a Mãe Rússia e seus satélites se fantasiaram de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A decomposição da URSS mostrou que não haveria salvação fora do capitalismo. Desde então, para escapar da senilidade fatal, tanto a China quanto Cuba vêm adotando medidas econômicas que obrigam Karl Marx a colecionar piruetas na sepultura. Mas em ambas as nações o partido único faz o que quer, oposicionistas vão para a cadeia, não há liberdade de expressão, a imprensa e a internet não publicam uma vírgula que desagrade aos donos do poder. É com isso que sonham comunistas de todos os sotaques

China
Xi Jinping, em reunião do Partido Comunista Chinês – Foto: Reprodução

Ainda que não existisse no mundo um único país comunista, a espécie que promoveu Stalin a Guia Genial dos Povos continuaria em expansão no Brasil de Lula. Até por presidir o TSE, Moraes decerto sabe da existência do Partido Comunista Brasileiro, do Partido Comunista do Brasil e de pelo menos duas outras legendas — PCO e PSTU — que defendem ostensivamente a ditadura do proletariado. Ele também sabe que Flávio Dino, comunista juramentado, só se escondeu no Partido Socialista Brasileiro para instalar-se sem muito barulho no comando do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Mas para Moraes e para a maioria do STF não existem nem a extrema esquerda nem a direita democrática. Na cabeça do ministro cabem apenas a extrema direita (dominada por fascistas de alta periculosidade), a esquerda (que abriga apenas democratas) e o centro (que é rebaixado a “centrão” quando o presidente é Bolsonaro e promovido a “centro conservador” se é Lula quem está no Planalto).

Na discurseira da sexta-feira, Moraes garantiu que a pandemia de fake news estaria reduzida a quase zero se os brasileiros voltassem a acreditar exclusivamente no que os telejornais noticiam. “Não importa que nenhuma televisão dê isso”, surpreendeu-se ao constatar que, mesmo ignoradas pelas emissoras da TV aberta, a invasão do Brasil por tropas venezuelanas continuava em ascensão no ranking dos boatos bem-sucedidos. “As pessoas passaram a assistir menos televisão”, lamentou na sexta-feira. Engatou a quinta marcha e pisou no acelerador. “Por que que a influência, e isso é outra coisa estudada nesse ataque à democracia no Brasil, por que que a influência maior nas redes sociais começou com a classe média? Porque foram diminuindo de assistir muita televisão, pra notícias”, ensinou. “As classes economicamente abaixo continuaram a ouvir muito rádio. O rádio voltou a tê um valor para a democracia gigantesco. Por que o rádio continua, a pessoa deixa o rádio ligado. Tá lá trabalhando, geralmente um trabalho manual que não dá pra ficá… E a classe média, os advogados, duas petições, o juiz, o promotor, cada duas petições três zap. E… isso também vai tê que sê um dia estudado: quanto o mundo perdeu em produtividade por causa das redes sociais? Se tirá um ano o celular de todo mundo, o Brasil vai virar um país de primeiro mundo, não é?”

Eis aí outra ousadia que exige uma réplica de grosso calibre. Semana que vem a gente volta a embarcar no vídeo para concluir a viagem pela cabeça de Alexandre de Moraes.

(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-186/falar-de-improviso-e-um-perigo/

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