Democracia sem povo

As elites globalistas da atualidade querem a censura, querem controlar as redes sociais, pois consideram os indivíduos ignorantes demais para decidir por conta própria

Por Rodrigo Constantino (*)

Você confia no indivíduo para julgar por conta própria as notícias e informações e separar o joio do trigo na hora de escolher? Essa é a pergunta fundamental para definir se alguém realmente é democrata. Afinal, a democracia pressupõe a escolha do povo. Churchill disse que o melhor argumento contra a democracia é conversar por cinco minutos com um eleitor médio. Mas ele também disse sua famosa frase: “A democracia é o pior sistema que existe, exceto todos os outros já testados”.

Sir Winston Churchill, em 1941 – Foto: National Portrait Gallery (London)/Wikimedia Commons

Michael J. Sandel, filósofo popular e professor de Harvard, defende que apenas a mobilização da sociedade civil fora de governos e grandes empresas poderá salvar a democracia, restabelecendo o princípio da discussão civilizada entre quem pensa diferente. A “ditadura do algoritmo”, disse ele numa entrevista recente, “piora a polarização”. Para o norte-americano, hoje este é o maior elemento corrosivo da democracia: a repetição de padrões de consumo em bolhas. “Perdemos a arte do discurso público porque perdemos a habilidade de ouvir palavras, princípios, convicções, opiniões.”

Quando a democracia se torna populismo? Quando um líder popular vira um demagogo perigoso? Quando Obama usou as redes sociais para se conectar aos jovens, isso foi aplaudido pela mídia. Mas, quando Trump foi eleito em 2016 utilizando bastante as redes sociais, elas passaram a ser vistas como perigosas.

Michael Sandel – Foto: Greg Salibian/Wikimedia Commons

As democracias ocidentais modernas estão em crise. Os eleitores não se sentem representados por seus supostos representantes. A imprensa demonstra claro viés esquerdista. As elites viraram as costas para o povo, considerado limitado demais para deliberar sobre assuntos importantes, como o “aquecimento global” ou o Brexit, no caso britânico. O nacional-populismo é tido como ameaça de reacionarismo de extrema direita por uma turma que ignora os problemas da imigração desenfreada.

Uma linguagem depreciativa é usada pela mídia para retratar esses “ignorantes”. No Reino Unido, durante a votação do Brexit, também em 2016, muitos compararam esses eleitores mais “pobres” e “broncos” com porcos. Nada novo aqui. Esse debate é tão antigo quanto a filosofia grega, onde nasceu a democracia. Devemos ser governadores pelos “reis filósofos” platônicos ou pelo povo? Atualizando para a era moderna, após a pandemia, devemos delegar todo o controle aos “especialistas”, ou será que o José e a Maria ainda devem ter alguma voz na coisa pública?

Hayek, Nobel de Economia, considerava que a liberdade fica muitas vezes ameaçada pelo fato de que leigos delegam o poder decisório em certos campos para os “experts”, aceitando sem muito questionamento suas opiniões a respeito de coisas que eles mesmos sabem apenas um pequeno aspecto. Adotar uma postura de maior ceticismo, questionando até mesmo os especialistas nos assuntos, é fundamental.

Friedrich Hayek, em Gotemburgo, Suécia (1981) – Foto: Wikimedia Commons

É a preocupação com o processo impessoal da sociedade onde mais conhecimento é utilizado do que qualquer indivíduo ou grupo organizado de pessoas pode possuir que coloca os economistas liberais em constante oposição às ambições de outros especialistas que demandam poderes de controle porque sentem que seu conhecimento particular não é levado suficientemente em consideração. A humildade é fundamental aqui.

Claro que indivíduos podem ser manipulados por demagogos. Tocqueville apontava para o risco de a democracia virar uma “tirania da maioria”. Daí o mecanismo de freios e contrapesos, as garantias constitucionais às minorias, a divisão dos Poderes etc. Liberais clássicos sempre desconfiaram da concentração de poder e de uma massa emotiva exigindo medidas estatais que colocariam em risco liberdades individuais. Não há uma resposta única e definitiva para esse dilema.

Alexis de Tocqueville, em pintura de Théodore Chassériau (1850) – Foto: Wikimedia Commons

Mas parece inegável que a fé na democracia anda abalada hoje justamente por aqueles que se dizem democratas. Afinal, eles repudiam as escolhas populares que colocam no poder gente como Trump ou Bolsonaro ou a opção pela retirada do Reino Unido da União Europeia. É preciso, então, encontrar bodes expiatórios, as redes sociais, as fake news, a “desinformação” promovida pela “extrema direita”, o “discurso de ódio” dos “fascistas”. E a solução proposta é autoritária.

Em essência, isso representa um ataque à própria democracia, por causa de uma total desconfiança em relação à capacidade individual de julgar. “A verdadeira liberdade ocorre quando os homens, nascidos livres, precisando dirigir-se ao público, podem falar livremente”, disse Eurípides. Em Areopagítica, John Milton apresenta argumentos liberais contra a censura prévia. Publicada em 1644, a obra-prima do poeta defende que a censura sempre esteve associada à tirania e, mais recentemente, seria fruto do reacionarismo da Inquisição.

Milton defendia que cada um pudesse julgar por conta própria o que é bom ou ruim. “Todo homem maduro pode e deve exercer seu próprio critério”, ele escreveu. Ele diz ainda: “O conhecimento não pode corromper, nem, por conseguinte, os livros, se a vontade e a consciência não se corromperem”. Para ele, todas as opiniões são de grande serviço e ajuda na obtenção da verdade. Os homens não devem, portanto, ser tratados como idiotas que necessitam da tutela de alguém.

Livro Areopagítica | Foto: Divulgação

Desconfiar das pessoas comuns, censurando sua leitura, “corresponde a passar-lhes um atestado de ignomínia”, considerando que elas seriam tão debilitadas que “não seriam capazes de engolir o que quer que fosse a não ser pelo tubo de um censor”. Para Milton, ao contrário, cada um tem a razão, e isso significa a liberdade de escolher. O desejo de aprender necessita da discussão, da troca de opiniões. A censura, então, “obstrui e retarda a importação da nossa mais rica mercadoria, a verdade”.

“A maravilha da democracia não reside em seus resultados — alguns dos quais são bons, como o Brexit, outros questionáveis, como o terceiro mandato de Tony Blair — e sim em seu exercício. A democracia nos convida a encontrar maneiras de fazer nossas vozes serem ouvidas, ouvir outras vozes e julgar o peso moral de tudo o que ouvimos”

As elites globalistas da atualidade querem a censura, querem controlar as redes sociais, pois consideram os indivíduos ignorantes demais para decidir por conta própria. A democracia teria ido longe demais! Sob o disfarce de populismo, o que essas elites estão atacando, no fundo, é a própria democracia. Eles não confiam na liberdade de expressão. Eles não confiam no povo. Para Brendan O’Neill, autor de A Heritic’s Manifesto, isso coloca em xeque a liberdade básica de pensar e se expressar, além de ameaçar a maior vantagem da democracia. Não sua capacidade de escolha sempre adequada, pois isso não existe, mas a participação de todos no processo de escolha, o que reforça a cidadania.

Livro A Heretic’s Manifesto – Foto: Divulgação

Para Brendan, “a virtude da democracia reside na mobilização do povo para pensar e falar sobre questões de grande importância. A maravilha da democracia não reside em seus resultados — alguns dos quais são bons, como o Brexit, outros questionáveis, como o terceiro mandato de Tony Blair — e sim em seu exercício. A democracia nos convida a encontrar maneiras de fazer nossas vozes serem ouvidas, ouvir outras vozes e julgar o peso moral de tudo o que ouvimos. A democracia pede que nos levemos a sério, que levemos as ideias a sério e que entremos na esfera pública como cidadãos”. Temos de fazer escolhas e assumir a responsabilidade por elas. Às vezes serão escolhas boas, às vezes ruins, mas é o ato de fazer essas escolhas que importa. Isso fortalece nosso músculo moral, torna real nosso papel como cidadãos e une as pessoas numa sociedade de escolha. Os “democratas” de hoje rejeitam tudo isso em troca da epistocracia, do governo dos “especialistas”, uma “democracia” de gabinete, de fachada, uma democracia sem povo, lembrando que o termo “demo” vem do grego e quer dizer justamente “povo”.

(*) Economista liberal-conservador, autor do best-seller “Esquerda Caviar” (Editora Record)

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