Brasil e o feitiço do tempo

A história se repete: STF, Alexandre de Moraes, a covardia de Pacheco e Lira, Barroso, inconstitucionalidades, censura

Cena do filme Feitiço do Tempo - Foto: Montagem Revista Oeste/Reprodução

Por Ana Paula Henkel (*)

O Brasil dos últimos anos tem sido um filme. Ou melhor, o Brasil dos últimos anos tem sido vários filmes. Começamos vendo um filme bom com a Lava Jato, daqueles clássicos em que os bandidos vão parar na cadeia e o povo comemora. Depois fomos virando outros gêneros: perseguição, comédia, ação, terror, suspense, ficção, passamos até pelo que o nosso mestre Augusto Nunes chama de “faroeste à brasileira”, onde os bandidos conseguem sair da cadeia com a ajuda de outros bandidos, retomam o poder, ameaçam toda a região e ainda tentam prender os mocinhos.

Já há algum tempo, o Brasil se transformou no filme Feitiço do Tempo (Groundhog Day). Lançado em 1993, o filme dirigido por Harold Ramis e estrelado por Bill Murray no papel principal transcende o gênero comédia em que foi colocado. A história gira em torno de Phil Connors, um meteorologista que se vê inexplicavelmente preso no tempo e obrigado a reviver o mesmo dia repetidamente — o famoso Dia da Marmota.

A narrativa começa com Phil, junto com sua produtora Rita Hanson (interpretada por Andie MacDowell) e o cinegrafista Larry (interpretado por Chris Elliott), indo para Punxsutawney, na Pensilvânia, para cobrir os festejos anuais do Dia da Marmota. No entanto, Phil acorda na manhã seguinte apenas para descobrir que ainda é 2 de fevereiro, data em que chegaram à cidade. Não importa o que faça, ele não consegue escapar da repetição desse dia específico. Hospedado em um hotel para a cobertura da tradição local de inverno que mostrará se a estação seguirá fria e escura por mais algumas semanas, ele acorda no dia seguinte e se vê preso em um looping temporal, sendo forçado a viver o mesmo dia repetidamente. Todas as manhãs, em sua cama, ele desperta com a música I Got You, Babe, de Sonny e Cher, tocando no rádio-relógio:

“They say we’re young and we don’t know / We won’t find out until we grow / Well I don’t know if all that’s true / ‘Cause you got me, and baby, I got you…”

“Dizem que somos jovens e não sabemos / Não vamos descobrir até crescermos / Bem, eu não sei se tudo isso é verdade / Porque você me tem, e baby, eu tenho você…”

Há pelo menos três anos falamos do Supremo Tribunal Federal e sempre de Alexandre de Moraes. Mas há Barroso, Cármen, Gilmar… todos querem ser protagonistas do hospício jurídico que nos tornamos

O filme é considerado um clássico e uma das maiores comédias românticas de todos os tempos, mas poderia ser a realidade do brasileiro demonstrada na cena em que Connor está em um bar local e diz a um homem: “Eu acordo todos os dias, bem aqui em Punxsutawney, e é sempre 2 de fevereiro. E não há nada que eu possa fazer sobre isso. O que você faria se estivesse preso em um lugar, e todos os dias fossem exatamente iguais, e nada do que você fizesse importasse?”.

Há pelo menos três anos falamos do Supremo Tribunal Federal e sempre de Alexandre de Moraes. Mas há Barroso, Cármen, Gilmar… todos querem ser protagonistas do hospício jurídico que nos tornamos. Entra dia, sai dia, os brasileiros vivem, atônitos, o “2 de fevereiro” de Connors. Ministros do STF que desrespeitam a Constituição, ministros que ignoram prerrogativas do Congresso, o Congresso de joelhos para o sistema, as inconstitucionalidades, as arbitrariedades, prisões sem a devida investigação e o devido processo legal, censura, Rodrigo Pacheco e Arthur Lira sem espinha dorsal, perseguições e presos políticos, cidadãos exilados… a lista é grande.

Foto oficial dos ministros do STF (3/8/2023) – Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

O Brasil saiu do caminho do progresso, mesmo aos trancos e barrancos, saiu do despertar político e saudável dos últimos anos para entrar nas páginas ruins dos livros de história quando Estados totalitários e policialescos viraram o cotidiano de populações. Medo, insegurança, instabilidade econômica, social e jurídica são o cenário estabelecido pelos devaneios cometidos por narcisistas autoritários.

E agora, na longa lista de atrocidades cometidas pelos bárbaros, temos uma JUÍZA exilada — sim, uma juíza! Há 11 meses, ainda em atividade, a juíza do Estado de Minas Gerais Ludmila Lins Grilo foi afastada de seu cargo pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Nesta semana, Ludmila divulgou que está exilada nos Estados Unidos desde novembro de 2022 por causa da perseguição política que vinha sofrendo pelos integrantes da cúpula do Judiciário brasileiro. De acordo com a juíza, essa perseguição motivou seu exílio logo após o segundo turno das eleições presidenciais e a vitória de Lula.

Ludmila relata que sua saída do Brasil foi decidida depois que ficou claro que suas opiniões sobre as inconstitucionalidades cometidas pelo STF seriam usadas para persegui-la. Ela resolveu deixar o Brasil por avaliar que os abusos do STF e do CNJ se assemelham às atrocidades jurídicas praticadas por regimes totalitários. Três meses depois do afastamento de Ludmila pelo CNJ, os desembargadores do Tribunal de Justiça de Minas Gerais decidiram aposentá-la compulsoriamente, alegando um tweet em que a magistrada critica a audiência de custódia, uma aberração que favorece apenas bandidos no Brasil, e uma palestra sobre ativismo judicial que Ludmila havia feito a convite da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag) em que ela aponta o atual ativismo judicial no Brasil.

Nesta semana, ao revelar a sua nova condição nos Estados Unidos, Ludmila publicou em suas redes sociais uma carta que escancara que o Brasil, tranquilamente, já faz parte dos países sob regimes persecutórios e totalitários do mundo e que, em sua longa lista de barbaridades, agora tem uma juíza exilada:

“Mantive tudo em segredo por mais de um ano.

Esse foi meu segundo réveillon nos Estados Unidos da América, a terra da liberdade onde eu escolhi viver, e que caridosamente me acolheu e me protegeu da ditadura que, miseravelmente, se instalou no meu país.

Passei todo esse tempo reorganizando minha vida, e chegou a hora de revelar o que aconteceu.

Sou, oficialmente, uma juíza brasileira em asilo político nos Estados Unidos.

Eu era uma juíza em atividade quando aportei em terras americanas. Em silêncio, continuei exercendo meu trabalho por videoconferência, cumprindo toda a agenda diária da vara criminal. Sofri calada todo tipo de difamação quanto à minha conduta profissional, pois ainda não podia revelar que eu não morava mais no Brasil.

No dia de meu afastamento do cargo, silenciei sobre minha condição de asilada política, pois eu ainda estava me documentando. Além disso, eu ainda tinha bens no país, e era necessário salvaguardá-los.

Toda essa trama envolvendo os atos persecutórios praticados pelo STF, mais especificamente por Alexandre de Moraes, assim como pelo CNJ e TJMG, foi detalhadamente documentada e entregue às autoridades americanas.

Da mesma forma, narrei minuciosamente o desprezo que aqueles órgãos tiveram com a minha segurança física, e como eles, maliciosamente, utilizaram-se da minha situação de risco pessoal para atacar a minha honra.

Meus alunos e apoiadores não precisam mais se preocupar: a identidade de vocês não está mais acessível ao Brasil.

Já estou em contato com juristas e jornalistas americanos. Espero, daqui de fora, fazer o que vocês não podem mais fazer daí.

Cada conta de rede social que for bloqueada, cada ataque do STF, cada lawfare, cada ameaça, ainda que virtual, serão utilizados em meus processos nos EUA, e também serão entregues aos profissionais da mídia e da Justiça estrangeiros que acompanham meu caso.

Todo aquele perseguido por ditaduras que escolhe permanecer no país é obrigado a colocar o rabinho entre as pernas e se calar para se proteger. Não é o meu caso. Contem comigo.

Que Deus salve nosso país desses tiranos de toga que tomaram de assalto nossa liberdade.”

STF, Alexandre de Moraes, a covardia de Pacheco e Lira, Barroso, inconstitucionalidades, censura, perseguições, STF, Alexandre de Moraes, a covardia de Pacheco e Lira, Barroso, inconstitucionalidades, censura, perseguições… E o rádio-relógio continua tocando a mesma música para o brasileiro. A vida segue imitando a arte.

Alexandre de Moraes
Alexandre de Moraes, ministro do STF – Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

No filme de 1993, há uma parte em que Connors encontra um mendigo todos os dias. Já não aguentando aquela prisão temporal, num gesto de desprezo ele faz questão de bater nos bolsos da calça como se nunca tivesse dinheiro. Ao longo do filme, mas já com a mente voltada para tentar o melhor que pode a cada dia reprisado, já que tudo indica que ele está definitivamente preso no tempo, o jornalista começa a ajudar repetidamente o mendigo, mas acaba descobrindo que não importa o que faça, o homem sempre morre. E, numa aparente comédia boba, fica a lição da Oração da Serenidade, escrita pelo teólogo Reinhold Niebuhr e, posteriormente, cooptada pelos Alcoólicos Anônimos pelo mundo: “Deus, conceda-me a serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, coragem de mudar as coisas que posso, e sabedoria para saber a diferença”.

E se o amanhã que deixaremos para os nossos filhos for o mesmo de hoje? Um conto draconiano que sufoca qualquer palavra contra os tiranos? Contra o sistema? Uma repetição sem inspiração, sem propósito e sem esperança?

Cada dia que vivemos não é tão diferente do anterior. No entanto, as mudanças existem e estão nos detalhes que exigem coragem para serem exaltados e seguirem seu caminho da transformação. Às vezes, repetimos nossos maus hábitos porque estamos no piloto automático ao qual fomos submetidos durante décadas, dentro do nosso próprio feitiço do tempo. E nos acomodamos, ouvindo a música de Sonny e Cher, esperando que o feitiço se quebre sozinho… “Dizem que somos jovens e não sabemos / Não vamos descobrir até crescermos”…

Ludmila Lins Grilo é mais um ponto numa lista macabra que o Brasil de 2024 tem para ser exibida. A história nos mostra, em centenas de páginas, que regimes totalitários colocam alvos naqueles que são capazes de influenciar as pessoas pela via intelectual.

Mas Ludmila Lins Grilo também é inspiração. Em meio à perseguição, o espírito indomável da coragem se destaca como um testemunho da resiliência humana. As palavras de Winston Churchill ecoam profundamente em tempos desafiadores como esses: “O sucesso não é definitivo, o fracasso não é fatal: é a coragem de continuar que conta”.

Diante de uma perseguição implacável, indivíduos recorrem a uma reserva interna de valentia, reconhecendo que a jornada rumo à justiça está repleta de obstáculos. A sabedoria de Churchill destaca a compreensão de que a coragem não é apenas uma resposta ao triunfo, mas um compromisso firme de perseverar diante da adversidade. Aqueles que enfrentam a perseguição exemplificam essa tenacidade, encontrando força em sua coragem para persistir, inspirar mudanças e, ultimamente, triunfar sobre a opressão.

(*) Pesquisadora associada do Instituto Ronald Reagan, é hoje arquiteta e analista política. Ex-atleta, atuou pela Seleção Brasileira de Voleibol e disputou quatro Olimpíadas. Foi medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de 1996, em Atlanta, Estados Unidos, pelo vôlei de quadra. É bicampeã mundial no vôlei de praia. Tornou-se um dos principais nomes femininos do pensamento liberal-conservador. Vive em Los Angeles, onde cursa Ciência Política pela Ucla.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-198/brasil-e-o-feitico-do-tempo/

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