Amor e respeito para tempos doentios

Nas plataformas das redes sociais, os debates e disputas religiosas agora também são amplificados e, por vezes, transformados em armas

Ana Paula Henkel

Por Ana Paula Henkel (*)

Em uma era definida por monitores, telas de celular e conectividade, a internet e as redes sociais tornaram-se parte integrante da nossa vida cotidiana. Essas plataformas digitais transformaram a forma como comunicamos, partilhamos informações e entramos em um mundo de conhecimento. O advento da internet aproximou famílias que estavam geograficamente separadas, reavivou amizades há muito perdidas e até lançou revoluções. Nesta era, políticos são desmascarados e cobrados, e a outrora grande imprensa não conseguiu esconder suas verdadeiras cores de assessoria de imprensa de partidos e esquemas do establishment. As tais agências de checagem perderam seus venerados postos de paladinas da verdade e foram igualmente desmascaradas pelo cidadão comum e sua própria agência, individual e intransferível, na palma de sua mão. No entanto, enquanto nos deleitamos com o brilho dos nossos dispositivos digitais, devemos reconhecer a faca de dois gumes que a internet e as redes sociais se tornaram.

O fascínio dessas tecnologias é inegável. A nova era desbloqueou novos domínios de conveniência, criatividade e comunidade, mas também trouxe uma série de desafios e armadilhas. Desde questões de invasão de privacidade até a disseminação de desinformação, muitas vezes apressadamente propagada pela própria imprensa, o mundo digital se tornou um cenário complexo, onde o lado positivo muitas vezes vem acompanhado de uma sombra.

Foto: Shutterstock

Um dos subprodutos mais fascinantes da era das redes sociais foi a criação repentina de celebridades. Os indivíduos não precisam mais aspirar à fama tradicional por meio do cinema, da música, dos esportes ou de carreiras acadêmicas que demandam tempo e estudo, muito estudo. Em vez disso, um tweet oportuno, um vídeo que viraliza ou uma postagem cativante no Instagram podem levar um desconhecido ao estrelato em questão de horas. A democratização da fama tem as suas vantagens, proporcionando uma plataforma para vozes e talentos sub-representados ou sem oportunidades. A fama repentina promove um sentimento de poder, já que qualquer pessoa pode agora ser criadora ou “influencer”, confundindo os limites entre a fama, a excepcionalidade, a qualidade e o comum.

E esse novo caminho para o estrelato trouxe também um conjunto diferente de desafios. A busca por curtidas, compartilhamentos e seguidores muitas vezes incentiva uma corrida ao superficial e às brigas e discussões, tática usada para que um número maior de compartilhamentos seja atingido. Dessa forma, o tal “algoritmo” do sistema entende que há um tráfego relevante em um perfil e, portanto, “deve ser algo popular” para merecer mais impulsionamento. Nas muitas facetas das redes sociais, é seguro afirmar que se tornaram uma ferramenta para perpetuar uma cultura de imagem em detrimento da substância, onde o valor de um indivíduo é determinado pelo número de admiradores on-line, e não pela profundidade do seu caráter ou por suas contribuições para a sociedade. A autenticidade pode ficar em segundo plano em relação a personagens cuidadosamente selecionados, moldados à pressão digital para se conformar às tendências populares.

Geração dopamina

As implicações do estrelato instantâneo e o seu impacto na sociedade por meio dessas pessoas que negligenciam a vida presencial não são pequenos. No brilhante livro Nação Dopamina, já lançado no Brasil, a psiquiatra Anna Lembke explora as novas descobertas científicas que explicam por que a busca incansável do prazer leva à dor. Na obra, a doutora Lembke mostra como estamos vivendo em uma época de acesso sem precedentes a estímulos de alta recompensa e alta dopamina, como drogas, comida, notícias, jogos de azar, compras, games, mensagens de texto, aplicativos de relacionamento (não deu certo com alguém? Troca. Troca. Troca…) e, claro, as redes sociais e seus cliques — uma variedade enorme de estímulos digitais que está emburrecendo e isolando as pessoas em seus castelos de desejo de fama imediata.

Livro Nação Dopamina, de Anna Lembke – Foto: Reprodução

Diretora-médica da Universidade Stanford e chefe da Clínica de Diagnóstico Duplo da Stanford Addiction Medicine, Lembke relata que seus pacientes que lutam contra o abuso de substâncias geralmente acreditam que seus vícios são alimentados por depressão, ansiedade e insônia. Mas ela afirma que o oposto costuma ser verdadeiro: os vícios podem se tornar a causa da dor — e não o alívio dela. Isso porque o comportamento desencadeia, entre outras coisas, uma resposta inicial da dopamina, que inunda o cérebro de prazer. No entanto, uma vez que a dopamina passa, a pessoa geralmente se sente pior do que antes: “Eles começam a usar a droga para se sentirem bem ou sentirem menos dor”, diz Lembke. “Com o tempo, com a exposição repetida, essa droga funciona cada vez menos bem. Mas eles se veem incapazes de parar, porque, quando não estão usando, ficam em estado de déficit de dopamina.” Ela explica que a dopamina é um neurotransmissor que envia sinais de um neurônio para outro e que é provavelmente o neurotransmissor mais importante em nossa experiência de prazer, motivação e recompensa. “A dopamina é o caminho final comum para todas as experiências prazerosas, intoxicantes e gratificantes”, diz ela. E, em uma era digital que se expande quase que na velocidade da luz, a doutora Lembke traz um alerta: “O smartphone é a agulha hipodérmica moderna, fornecendo dopamina digital 24 horas por dia, 7 dias por semana, para uma geração conectada o tempo todo. Sem desligar”.

Os pedestais da fé

Nesta era de celebridades digitais viciadas em seus smartphones, não são apenas as tendências, a música, a moda, os relacionamentos e a política que se tornam parte da conversa, mas também crenças profundamente enraizadas em seus pilares e muitas vezes controversas entre si. Nas plataformas das redes sociais, os debates e disputas religiosas agora também são amplificados e, por vezes, transformados em armas. Depois do que aconteceu em Israel no dia 7 de outubro, uma barbárie perpetrada contra o povo judeu por pura intolerância religiosa, étnica e ideológica, chega a ser estarrecedor passar pelas redes sociais e encontrar provocações e discussões acaloradas, agora entre protestantes e católicos, duas denominações cristãs com uma história de diferenças teológicas.

Há algum tempo, venho notando que alguns novos católicos, recém-convertidos depois de uma vida sem fé ou pulando de religião em religião, resolveram subir em pedestais para julgar a fé alheia e professar as “regras” para quem quiser entrar no rebanho católico e no céu. Ofensas estão sendo cometidas contra evangélicos, protestantes e até espíritas “em nome do amor”, afinal. Faço essa crítica de maneira muito tranquila, uma vez que professo e pratico minha fé na Igreja Católica há 51 anos. A obsessão de alguns em querer empurrar para os outros o que as pessoas DEVEM fazer para que suas almas sejam salvas é profundamente triste e desagregador. Algo como o que estamos acostumados a ver no Brasil, empurrado pelo Estado ou, mais recentemente, pelo Supremo Tribunal Federal: “Só EU sei o que é melhor para você!”.

Foto: Shutterstock

O mesmo pedestal e dedo em riste também é visto sendo levantado por protestantes e evangélicos contra católicos. Não é difícil passar os olhos em disputas religiosas pelo Instagram, e até em comentários no meu perfil, plataforma que muitas vezes uso para enaltecer a fé em Cristo, independentemente da placa na porta da igreja, e encontrar algum seguidor de Lutero “condenando” os meus santos e a minha devoção à minha Igreja. “Porque na minha Bíblia…” Diante de tanta intolerância no mundo, confesso que fiquei surpresa em ver cristãos, tão perseguidos pelo mundo, digladiando-se pela atenção alheia e pelo certificado de “especialista da correta fé” em um ambiente inócuo e frio para o real amor a Cristo.

E o problema acaba sendo exatamente este: as redes sociais proporcionam hoje uma plataforma para a rápida disseminação de conteúdos religiosos, desde discussões teológicas e mensagens inspiradoras até debates divisivos e completamente segregacionistas. Embora o ambiente possa servir de ponte para o diálogo e a compreensão, também pode alimentar as chamas da discórdia religiosa, com influenciadores digitais, muitos dos quais ganham destaque através de conteúdos polêmicos que viralizam, tornando-se figuras influentes nessas discussões, acrescentando uma camada de complexidade à forma como a religião é percebida e praticada na era da dopamina digital. Será que para enaltecer a sua fé e religião você precisa atacar outras?

A busca pela afirmação e validação religiosa é, em alguns casos, paralela à busca pela fama digital em um nicho, à medida que os indivíduos procuram ganhar seguidores e apoio para as suas perspectivas religiosas e financeiras. No entanto, essa busca também pode levar a câmaras de apenas eco e à polarização, onde discussões significativas são ofuscadas pelo sensacionalismo e pelo envolvimento superficial. À medida que a paisagem digital continua a moldar a forma como nos conectamos e comunicamos, é essencial refletir sobre o papel das redes sociais na formação do discurso religioso e nas implicações desta era digital em questões de fé. Essa complexa interação entre tecnologia, fama e religião levanta questões importantes sobre a natureza da crença, da identidade e da comunidade no nosso mundo em constante evolução, mas ressalta de imediato um ponto: é preciso dizer “BASTA!” e enfrentar a vontade narcisista de influenciadores religiosos que insistem em pregar a DIVISÃO entre cristãos.

E, aqui, farei exatamente isso. Basta do que vimos recentemente e do mal que está lá fora, alimentado por desavenças religiosas que se tornaram irremediáveis ao longo dos tempos.

Eu cresci respirando e vivendo a fé católica, mas, vejam vocês, estudei a vida toda em uma escola presbiteriana. Meu pai, fervoroso católico e seguidor de Santo Agostinho, foi chamado pelos reverendos do meu querido Instituto Presbiteriano Gammon, em Lavras, Minas Gerais, para ser diretor pedagógico da instituição; e assim, com o meu pai no comando da escola, seguimos em plena harmonia durante muitos anos entre nossos irmãos em Cristo. Muito foi ensinado, e muito foi aprendido.

Mas creio que o maior exemplo desse amor em comum em Cristo e da tolerância com as pequenas diferenças esteja na referência da profunda amizade entre Ronald Reagan, protestante praticante, e o líder da Igreja Católica, o papa João Paulo II.

Ronald Reagan e João Paulo II, em 1987 – Foto: Wikimedia Commons

Uma amizade verdadeira

A relação entre o presidente e o papa foi notável e historicamente significativa, marcada pelo seu compromisso partilhado na luta contra o comunismo durante a guerra fria. Apesar das diferenças religiosas, eles conseguiram desenvolver uma amizade verdadeira e sólida e colaborar em diversas frentes.

Reagan assumiu o cargo em 1981, durante um período de enorme tensão na guerra fria. Ao mesmo tempo, o papa João Paulo II, originário da Polônia, era um ferrenho opositor do comunismo. A influência do papa dentro da Igreja Católica e sua autoridade moral como líder religioso fizeram dele uma figura significativa no Bloco do Leste Europeu, particularmente na sua terra natal. Apesar das diferentes origens religiosas, Reagan e João Paulo II partilhavam um inimigo comum: o comunismo soviético. Ambos acreditavam nos princípios da liberdade, da democracia e dos direitos humanos. Reconheceram que era necessária uma frente unida para desafiar o reduto ideológico e político da União Soviética e de seus Estados satélites na Europa Oriental.

A ligação emocional entre Reagan e o papa aprofundou-se depois de ambos terem sobrevivido às tentativas de assassinato no início da década de 1980. Em 1981, poucos meses depois de pisar na Casa Branca, Reagan foi baleado por John Hinckley Jr. durante uma tentativa de assassinato. A proximidade com a morte teve um impacto profundo em Reagan, o que o levou a dizer que sua sobrevivência havia se dado por um milagre divino e que, depois do episódio, sua vida havia ganhado um sentido maior no propósito e em sua determinação de se opor ao comunismo em uma escala global.

Da mesma forma, no mesmo ano, dois meses depois do atentado de Reagan, o papa João Paulo II escapou por pouco de uma tentativa de assassinato quando foi baleado por Mehmet Ali Ağca, um cidadão turco com alegadas ligações a organizações comunistas. A sobrevivência do papa foi considerada milagrosa por muitos e solidificou ainda mais o seu papel como símbolo global de resistência contra o império comunista, chamado por Reagan de “império do mal”.

A relação entre o presidente Ronald Reagan e o papa João Paulo II nos proporciona várias lições valiosas sobre tolerância, compreensão e promoção do amor entre as pessoas, mesmo quando provêm de origens diferentes e com crenças diferentes

Ambos os homens, em suas religiões diferentes, mas baseadas em um único Salvador, encararam a sobrevivência como um sinal de um poder superior, reforçando o seu compromisso de trabalhar em conjunto para derrotar as forças do comunismo. Essa experiência partilhada de enfrentar a mortalidade aprofundou a ligação emocional e o respeito mútuo entre um protestante e um católico.

Em 1982, Reagan tornou-se o primeiro presidente dos Estados Unidos a visitar o Vaticano, onde se encontrou com o papa João Paulo II. Durante essa reunião, discutiram seus objetivos e estratégias comuns para enfrentar o regime soviético e formaram uma aliança poderosa, que transcendeu suas diferenças religiosas.

Ao longo de toda a década de 1980, Reagan e João Paulo II continuaram a colaborar com seus propósitos em comum bem maiores que qualquer diferença, prestando apoio a movimentos anticomunistas, incluindo o Solidariedade na Polônia. Os esforços desempenharam um papel significativo no eventual colapso do comunismo na Europa Oriental e na União Soviética e, em 1989, à medida que os regimes comunistas desmoronavam em toda a Europa de Leste, a visão partilhada do presidente e do papa de um mundo livre da tirania do comunismo aproximou-se da concretização. O legado desses ícones na defesa da liberdade, estabelecido na profunda amizade e respeito, deixou uma marca indelével na história da guerra fria e na humanidade.

O vínculo entre Reagan e João Paulo II sublinha o poder dos indivíduos que transcendem as diferenças religiosas e culturais para trabalharem juntos na solidificação de objetivos comuns. O seu legado continua a ser um testemunho do papel das relações pessoais na formação dos acontecimentos, seja em nossa sociedade, seja numa escala mundial.

A relação entre o presidente Ronald Reagan e o papa João Paulo II nos proporciona várias lições valiosas sobre tolerância, compreensão e promoção do amor entre as pessoas, mesmo quando provêm de origens diferentes e com crenças diferentes. Reagan e João Paulo II compreenderam a importância de se concentrarem nos seus objetivos comuns, como a oposição ao comunismo e a promoção da liberdade. Ao concentrarem-se em interesses comuns, conseguiram suprir lacunas religiosas e culturais. Ambos os líderes respeitaram as origens e diferenças religiosas e não permitiram que suas distinções teológicas se tornassem barreiras à cooperação. Abraçar a real diversidade e mostrar respeito pelas crenças dos outros são elementos cruciais de tolerância e amor daqueles que dizem seguir os ensinamentos de Cristo.

Há registros de conversas entre os dois quando o papa menciona que Fátima foi quem salvou sua vida naquele atentado que, curiosamente, deu-se em um 13 de maio, Dia de Nossa Senhora de Fátima. Juntos durante décadas de profunda amizade e trabalho contra o verdadeiro mal, Reagan, mesmo sendo protestante, tornou-se um grande admirador de Nossa Senhora através de inúmeras conversas com seu grande amigo João Paulo II. Algo que surpreende católicos e protestantes.

Em maio de 1985, em uma viagem a Portugal, Reagan fez um discurso em que menciona abertamente Maria e os filhos de Fátima. No discurso, ele fala sobre o grande Santuário religioso de Fátima e diz que, quando se encontrou com o papa João Paulo II, afirmou que “no exemplo de homens como ele e nas orações de pessoas simples em toda a parte, pessoas simples como os filhos de Fátima, reside mais poder do que em todos os grandes exércitos e estadistas do mundo”.

Em 1994, cinco anos depois de deixar o cargo de presidente da nação mais poderosa do mundo, Ronald Reagan revelou que havia sido diagnosticado com Alzheimer. A doença afetou progressivamente suas habilidades cognitivas, e ele se retirou da vida pública. Em 5 de junho de 2004, aos 93 anos, após uma longa batalha contra a doença, o grande amigo de João Paulo II faleceu em casa, rodeado pela família. E foi em seu funeral que o presidente americano protestante demonstrou seu amor pelo amigo católico e por sua fé.

Antes de ser acometido pela gravidade da doença, Reagan deixou explícito para sua mulher, Nancy, que ele havia escolhido Ave Maria, uma das canções mais importantes para os católicos, para ser cantada em seu funeral. Então, em 11 de junho de 2004, a pedido de Nancy Reagan, na missa de corpo presente na Catedral de Washington, Ave Maria foi cantada pelo tenor irlandês Ronan Tynan. O vídeo pode ser facilmente encontrado no YouTube. Pegue um lenço.

Antes de me despedir de nossa resenha semanal, convido-os a parar por um momento e prestar atenção na foto abaixo. Sem pressa, preste atenção nas mãos destes homens. Depois, contemple a maneira como estes soldados da liberdade e do amor em Cristo se olham. Olhe atentamente para seus semblantes. E sinta o que, de fato, importa na vida.

Ronald Reagan e João Paulo II | Foto: Wikimedia Commons

(*) Pesquisadora associada do Instituto Ronald Reagan, é hoje arquiteta e analista política. Ex-atleta, atuou pela Seleção Brasileira de Voleibol e disputou quatro Olimpíadas. Foi medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de 1996, em Atlanta, Estados Unidos, pelo vôlei de quadra. É bicampeã mundial no vôlei de praia. Tornou-se um dos principais nomes femininos do pensamento liberal-conservador. Vive em Los Angeles, onde cursa Ciência Política pela Ucla.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-187/amor-e-respeito-para-tempos-doentios/

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