A Abolição dos Sem-Teto

Decisão de Moraes transforma calçadas e praças em hotéis ao ar livre administrados pelo grupo Boulos

Por Augusto Nunes (*)

Há mais de quatro anos no comando Supremo, há quase dois na gerência do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes acha que está longe do fim a missão de assegurar a saúde da “democracia relativa” mantendo em estado de coma o Estado de Direito. “Tem muita gente pra prendê, muita multa pra aplicá”, repete nas conversas com as dobras da toga. Mas avança em bom ritmo a ofensiva desencadeada em março de 2019 contra as catacumbas que escondem terroristas especializados em atos antidemocráticos, parteiros compulsivos de fake news, nostálgicos do fascismo, indígenas sublevados, autistas beligerantes, septuagenários sem juízo, snipers entrincheirados em gabinetes do ódio e golpistas em geral. É compreensível que tenha voltado do ligeiro descanso em Siena convencido de que é hora de abrir outra frente de combate.

Alexandre de Moraes, em sessão plenária do TSE (30/6/2023) | Foto: Alejandro Zambrana/Secom/TSE

Sempre de olho no inimigo principal, Moraes reiniciou o tiroteio ainda em território italiano. Sob a alegação de que fora ofendido no aeroporto de Roma por três suspeitos de “bolsonarismo”, o viajante enxergou num possível bate-boca na fila de embarque outro atentado à segurança nacional. De volta ao reino sul-americano, recorreu ao arsenal de mandados de busca e apreensão, depoimentos na Polícia Federal e ameaças explícitas para deixar claro quem manda por aqui. Ele nunca perde chances de aumentar a população carcerária composta de quem não votou em Lula. Surpreendente foi a performance inaugural de um Moraes disposto a dar um jeito em todos os problemas do Brasil.

Deliberadamente ou por descuido, o presidente do TSE acaba de desfraldar uma das mais vistosas bandeiras costuradas por um caso de polícia fantasiado de deputado

No mesmo dia em que anexou mais acusações sem provas aos que o hostilizaram na batalha de Roma, Moraes atropelou o Legislativo e emparedou o Executivo com um monumento ao delírio erguido com quase 40 páginas. Na largada, o palavrório proíbe terminantemente “a remoção forçada de pessoas em situação de rua”. As medidas seguintes ordenam aos governos estaduais, distritais e municipais que parem de recolher “bens e pertences dessa população”, aposentem “técnicas de arquitetura hostil contra esse público”, divulguem com a devida antecedência “dia, horário e local das ações de zeladoria urbana”. Cuidados com a higiene, de agora em diante, só se agendados com os novos proprietários dos espaços públicos.

Barracos improvisados lotam a rua de uma área central, ocupada por usuários de drogas, conhecida popularmente como Cracolândia, em São Paulo, SP (12/1/2014) | Foto: Shutterstock/Nelson Antoine

A Abolição dos Sem-Teto vale para todos os municípios e distritos. Nem Lula escapou da revolução urbana: o governo federal tem de apresentar em 120 dias “um plano de ação e monitoramento para a implementação de uma política nacional para moradores de rua”. A exigência figura entre as urgências urgentíssimas relacionadas no pedido encaminhado ao STF em 2022 por três extravagâncias lideradas por Guilherme Boulos: a Rede, o Psol e o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto. Candidato a prefeito de São Paulo, Boulos aplaudiu de pé a expropriação do patrimônio até agora pertencente a todos os brasileiros. Deliberadamente ou por descuido, o presidente do TSE acaba de desfraldar uma das mais vistosas bandeiras costuradas por um caso de polícia fantasiado de deputado.

Opinião do Estado de S. Paulo (27/7/2023) | Foto: Reprodução

É provável que a salva de palmas seja endossada em silêncio por boa parte das vítimas do recordista mundial de prisões por atacado. Faz sentido. Para escapar de cadeias, bloqueios de contas, tornozeleiras, multas escorchantes e outras torpezas, homens e mulheres sem culpa recorreram ao sumiço e ao exílio. Se o plenário do STF aprovar a Abolição dos Sem-Teto, o fim do pesadelo estará a alguns passos de distância. Os alvos da fúria só precisarão acomodar-se num banco de praça ou num pedaço de calçada e declarar-se “pessoa em situação de rua”.

Feito isso, terão direito a regalias que incluem três refeições por dia, faxina com hora marcada, o habeas-corpus vitalício concedido pelo Supremo e, mais importante que tudo, o sono sem sobressaltos negado à gente perseguida por doutores em situação de insanidade.

Não estaríamos num país pelo avesso se o escolhido pelo presidente Michel Temer tivesse cumprido o que prometeu na sabatina que aprovou sua indicação para o Supremo. Ele jurou, por exemplo, combater uma praga que leva o Judiciário a intrometer-se em assuntos que não lhe dizem respeito. “ Há um enorme perigo à democracia e à vontade popular na utilização exagerada do ativismo judicial”, constatou. “Um juíz ativista ignoraria o texto da Constituição, a história de sua promulgação, as decisões anteriores da Suprema Corte, que tentaram interpretá-las, e as duradouras tradições da sua cultura jurídica. O juíz pode incorrer num perigoso grau de subjetivismo ao impor seu próprio ponto de vista aos demais poderes”.

É o que Moraes não para de fazer há intermináveis quatro anos e meio.

(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.

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