Um homem brilhante

O juiz Clarence Thomas conquistou seu lugar na história de uma maneira edificante, mas, curiosamente, não é celebrado nas bolhas hollywoodianas ou no movimento Black Lives Matter

Ana Paula Henkel
Clarence Thomas, juiz da Suprema Corte norte-americana | Foto: John Amis/AP/Shutterstock

Por Ana Paula Henkel (*)

Não há um dia sequer que não falemos do Supremo Tribunal Federal e seus integrantes com suas canetadas draconianas no Brasil. Nossos iluministros e suas decisões nada republicanas que não seguem a letra fria de nossa Constituição são, provavelmente, um dos tópicos mais comentados em toda roda de conversa. Hoje em dia, o brasileiro não sabe a escalação da Seleção de Futebol, mas tem na ponta da língua os nomes daqueles que deveriam salvaguardar nossa Carta Magna, mas que vilipendiam suas páginas diariamente.

Apesar de Brasil e Estados Unidos serem países muito diferentes desde o seu nascimento, atualmente há similaridades impressionantes em pontos do cenário político. A esquerda, por exemplo, tanto lá quanto cá, vem usando as mesmas ferramentas para controle social e cerceamento de liberdades, seja através da mídia, de partidos e governantes, seja através do tosco ativismo judicial.

No entanto, quando o assunto é a comparação da Suprema Corte do Brasil com a Estados Unidos, talvez o único ponto em comum entre elas seja a toga preta que os juízes usam. Digo juízes, como nos Estados Unidos, e não essa colcha de retalhos que são nossos ministros do STF, indicados para a Corte mais importante da nação apenas como advogados.

As diferenças entre os tribunais são tão profundas que não caberiam em apenas um artigo. Nossos advogados de toga do STF, que adoram lagostas, vinhos caros e interferir em outros Poderes, vivem citando a SCOTUS (Supreme Court of the United States), mas, curiosamente, não citam como os honrados homens e mulheres da Corte constitucional norte-americana se comportam como verdadeiros magistrados e protetores da lei. É claro que há algumas pinceladas de ativismo judicial nas páginas da SCOTUS, mas elas são a exceção, não a regra, como no Brasil.

Nesta semana, a Suprema Corte norte-americana deu outra prova de que os juízes constitucionalistas, indicados por presidentes republicanos, sempre protegerão a letra fria das leis e a Constituição. A SCOTUS derrubou na última quinta-feira uma lei de Nova Iorque que restringia os direitos de porte de armas, no julgamento mais importante sobre o tema em mais de uma década. Na verdade, a decisão expande os direitos de armas em meio a um acirrado debate nacional sobre o assunto, quando a esquerda norte-americana tenta desarmar a população de bem que quer defender a propriedade, a família e o estado de lei e ordem. Essa é a grande e vasta maioria da população armada nos EUA.

A decisão, que compromete regulamentações semelhantes em Estados como Califórnia e Nova Jersey, deve permitir que mais pessoas carreguem armas legalmente. Cerca de um quarto dos norte-americanos vive em Estados que podem ser afetados se suas próprias restrições de armas forem desafiadas. O tribunal decidiu que uma lei de Nova Iorque exigindo que os moradores provem “causa adequada” — ou uma boa razão — para portar armas de fogo escondidas em público viola a Constituição dos EUA. A decisão da Suprema Corte continua um padrão constante de decisões que expandiram esse direito, sustentando que o porte de armas de fogo tanto em casa quanto em público é garantido pela Segunda Emenda da Constituição dos EUA. Mesmo à sombra dos tiroteios em Uvalde e Buffalo, a maioria conservadora de seis juízes na Suprema Corte manteve uma ampla interpretação da Segunda Emenda de “manter e portar armas”. O juiz Clarence Thomas, escrevendo em nome dos seis juízes conservadores que compõem a maioria do tribunal, decidiu que os norte-americanos têm o direito de portar armas de fogo “comumente usadas” em público para defesa pessoal. Thomas escreveu: “Não conhecemos nenhum outro direito constitucional que um indivíduo possa exercer somente após demonstrar aos funcionários do governo alguma necessidade especial”.

Um exemplo a ser seguido

E, apesar de a Corte norte-americana e sua espinha dorsal serem um assunto fascinante (infelizmente um sonho inatingível para nós brasileiros), é exatamente sobre o brilhante juiz Clarence Thomas que gostaria de escrever hoje. Tento sempre trazer para nossos encontros semanais alguém de minha assembleia de vozes que possa refrigerar um pouco o espírito, não nos deixar desanimar diante de tantos descalabros e bizarrices no mundo atual. E Clarence Thomas é, sem dúvida, uma dessas vozes. Para a nossa sorte, ele ainda está vivo e sua altivez pode — e deve — ser um exemplo. Quem sabe, não custa sonhar, nossos “juízes” não se inspirem em homens como Thomas.

Clarence Thomas completou 74 anos no último dia 23 de junho e segue sendo um dos juízes mais respeitados da Corte. No tribunal desde 1991, ele é o segundo afro-norte-americano a ser nomeado para a SCOTUS. Sua confirmação deu ao tribunal um elenco conservador decisivo. E a própria vida de Clarence Thomas repudia o ódio da esquerda pelos conservadores e pela América.

Clarence Thomas testemunha perante o Comitê Judiciário do Senado dos EUA, em 1991 – Foto: Shutterstock

A vida de Thomas é um testemunho emocional da persistência do homem aliada à sua fé em Deus em meio aos altos e baixos da história norte-americana. “Venho de um lugar regular”, diz o juiz. Thomas conquistou seu lugar na história de uma maneira edificante, mas, curiosamente, não é celebrado nas bolhas hollywoodianas, na imprensa, no movimento Black Lives Matter ou no Mês da História Negra. O documentário sobre sua vida, “Created Equal: Clarence Thomas In His Own Words” é simplesmente espetacular e foi retirado em 2021 do site da Amazon. Sua história é, ao mesmo tempo, o epítome do melhor e do pior da América.

Sem fugir das sérias razões que ele e muitos outros norte-americanos tratados injustamente podem ter para o cinismo sobre o projeto de “liberdade e justiça para todos”, o juiz da Suprema Corte também demonstra como transcender o ódio com magnanimidade. É uma lição que todos podemos aprender melhor. Justice Thomas tem razões legítimas para odiar a América. Aos 6 anos, vagava sozinho pelas ruas segregadas de Savannah, na Geórgia, enquanto sua mãe trabalhava em turno duplo depois que o pai abandonou a família. Eles moravam em um cortiço só para negros, com esgoto a céu aberto nas valas perto de onde as pessoas cozinhavam. “Savannah era o inferno”, diz ele, no documentário. Seus avós assumiram a responsabilidade de criá-lo e o enviaram para escolas católicas, onde Thomas recebeu uma rara e excelente educação para um jovem negro.

Após o colegial, Thomas se matriculou no seminário com o objetivo de se tornar um padre católico. O racismo cultural de seus colegas brancos, no entanto, acabou fazendo com que ele abandonasse o seminário depois de receber bilhetes dizendo “Eu gosto de Martin Luther King — morto” e ouvir um estudante do seminário se alegrar quando MLK foi baleado. Isso foi seguido pelos distúrbios raciais e pelo assassinato de Robert Kennedy, no verão de 1968, e fez Thomas mergulhar na raiva: “Pela primeira vez na minha vida, o racismo e a raça explicavam tudo para mim. Tudo aquilo havia se tornado uma espécie de religião substituta. Eu empurrei o catolicismo de lado, e fiz tudo ser sobre raça”.

Ele se juntou aos revolucionários marxistas negros no College of the Holy Cross, em Worcester, Massachusetts. Passavam o dia demonizando as forças policiais e planejando atacá-las com pedras. Durante uma visita aos avós na Geórgia, o avô de Thomas e o irmão veterano do Vietnã ficaram envergonhados e irritados com suas atividades e ideologia de “poder racial negro”, mas ele ainda se sentia justificado por fazer parte daquele grupo e beber daquela fonte.

Depois que ele se formou na Faculdade de Direito de Yale, no entanto, a única pessoa que contrataria Thomas era um republicano. Os empregadores presumiram que os graduados negros de Yale eram de menor calibre do que os brancos por causa da ação afirmativa e se afastaram dele. “A parte mais difícil de aceitar o emprego foi que ele era republicano. E a ideia de trabalhar para um republicano era, na melhor das hipóteses, repulsiva”, diz Thomas. No entanto, com uma esposa e um filho para sustentar, Thomas engoliu seu desgosto e aceitou o emprego no Missouri.

O trabalho era como procurador-geral adjunto. Hoje, rindo de seu eu mais jovem, ele diz: “Na época, meu pensamento era que todos os negros eram prisioneiros políticos. Esse era o nível com que eu olhei para o sistema de justiça criminal”. No entanto, através de seu trabalho, Thomas entrou em contato com tantos casos e dados que ele teve de finalmente reconhecer que isso não era verdade. A grande maioria dos negros envolvidos no sistema de justiça criminal estava lá por motivos justos. “Foi uma dessas experiências de estrada para Damasco”, diz ele, no filme, engolindo em seco, com uma dor óbvia em seus olhos.

O tratamento injusto de Thomas continua até hoje, principalmente nas mãos de pessoas filiadas ao partido político que afirma representar o antirracismo

Thomas trabalhou em Direito societário em seguida, depois voltou para o Direito público. Ao longo do caminho, tornou-se cada vez mais conservador em seu pensamento. A imprensa acabou descobrindo e o tornou notório. O ápice disso foi a batalha de confirmação de Thomas para a Suprema Corte dos EUA, em 1991 — recomendo uma pesquisa no YouTube, você assistirá a cenas lamentáveis de latente racismo de senadores democratas, inclusive Joe Biden.

O documentário explora de forma significativa essa saga, incorporando imagens da audiência com flashbacks atuais de Thomas e sua esposa, Virginia. Você verá que não é difícil se emocionar com os clipes do que Thomas chamou de “linchamento de alta tecnologia”, diante de acusações hediondas de abuso sexual. Sim, como todo manual para desacreditar conservadores, havia uma acusação de assédio sexual. A acusadora de Thomas, Anita Hill, mudou sua história várias vezes e não conseguiu corroborar suas alegações. Pesquisas da época mostram que a maioria dos norte-americanos acreditava que ela estava mentindo.

O tratamento injusto de Thomas continua até hoje, principalmente nas mãos de pessoas filiadas ao partido político que afirma representar o antirracismo. O documentário mostra alguns dos insultos que pessoas e publicações proeminentes aplicaram a Thomas que seriam furiosamente criticados como racistas se aplicados a alguém com diferentes compromissos filosóficos. Aparentemente, o racismo só importa para as pessoas que controlam a cultura e se ele puder ser usado como arma política contra seus oponentes.

Mesmo já próximo de uma possível aposentadoria, a história de Clarence Thomas não termina com um documentário. Seu corpo monumental de erudição constitucional justifica sua mente, e a fé justifica sua alma. Como reflexo dessas graças, e embora tenha todos os motivos para ser vingativo e amargo, Clarence Thomas escolheu não ser. Em vez disso, ele é grato, eficaz e alegre. Talvez acima de tudo entre os juízes da Suprema Corte, a jurisprudência de Thomas mostre veneração pelas ideias majestosas do que alguns racistas automaticamente desqualificam porque um bando de “homens brancos” concordou com eles. No entanto, as maiores ideias dos Pais Fundadores da América — homens que descendem de uma grande gama de pessoas de aparências diferentes — transcendem construções mentais menores, como raça, sexo e opção sexual, e nos possibilitam fazê-lo também. É por isso que Thomas ama e enaltece esses homens, assim como todas as pessoas sábias o suficiente para ver além da pele na alma o fazem.

O honroso cumprimento de seus deveres por Clarence Thomas, independentemente do sofrimento que eles trouxeram, não apaga os pecados cometidos contra ele, mas os redime. Ele, majestosamente, transforma o que foi um trampolim para a glória em apenas uma pedra de tropeço de vergonha. Esta é a história norte-americana e a história de Thomas. E pode ser a de cada um de nós também. Pena que essa estirpe de homem e juiz não faz parte dos discursos hedonistas de nossos ministros do STF.

(*) Pesquisadora associada do Instituto Ronald Reagan, é hoje arquiteta e analista política. Ex-atleta, atuou pela Seleção Brasileira de Voleibol e disputou quatro Olimpíadas. Foi medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de 1996, em Atlanta, Estados Unidos, pelo vôlei de quadra. É bicampeã mundial no vôlei de praia. Tornou-se um dos principais nomes femininos do pensamento liberal-conservador. Vive em Los Angeles, onde cursa Ciência Política pela Ucla, e é colaboradora da Rádio Jovem Pan.

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