Relações incestuosas

O STF agora está empenhado em ajudar Lula a governar

Luiz Inácio Lula da Silva concede ao ministro do STF Alexandre de Moraes a Grã-Cruz, o mais alto grau da Ordem de Rio Branco, em solenidade realizada no Palácio do Itamaraty, em Brasília (21/11/2023) - Foto: Wilton Junior/Estadão Conteúdo

Por Augusto Nunes e Cristyan Costa (*)

Em 13 de novembro de 2018, o presidente eleito Jair Bolsonaro encontrou-se no Supremo Tribunal Federal com a ministra Rosa Weber, que acumulava o comando do Tribunal Superior Eleitoral. Era uma visita de cortesia, mas a anfitriã recepcionou o futuro chefe do Poder Executivo estacionada na difusa fronteira que separa a provocação irônica da grosseria explícita. E presenteou o vitorioso nas urnas com um exemplar da Constituição Federal. Bolsonaro poderia ter devolvido o presente durante a festa de despedida de Rosa Weber — engajada desde janeiro de 2019 na bancada que controla o STF e trata a socos e pontapés a Constituição.

A ex-ministra agora tem tempo de sobra para escrever num quadro negro, dez vezes por dia, o artigo 142 do que os superjuízes togados continuam chamando de Carta Magna. “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição.” Durante meses, cada linha foi minuciosamente examinada pelos constituintes até a aprovação do texto final em 1988. Nenhuma expressão está ali por acaso. A palavra “precipuamente”, por exemplo, informa qual é essencialmente o papel do STF: garantir que seja preservada e cumprida a Constituição.

A então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministra Rosa Weber, e Jair Bolsonaro, durante cerimônia da diplomação do presidente eleito e de seu vice, general Hamilton Mourão, no TSE, em 2018 – Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

O que deveria ser uma Corte constitucional não existe mais. O que há é um monstrengo político-jurídico que delibera sobre rigorosamente tudo (e, desde o dia da posse, em tudo favorece o governo do ex-presidiário que livrou da cadeia). Segundo a Constituição oficial, só devem entrar na pauta do Supremo casos que envolvam quem tem direito a foro especial. No Brasil real, reizinhos togados decidem o destino de qualquer vivente, instituição, clube, torcidas, grupos de WhatsApp ou o que lhes der na telha.

Enfim inconformado com o drama vivido pela multidão de capturados em 8 de janeiro, o presidente da OAB do Distrito Federal, Délio Lins e Silva Júnior, acusou o Supremo de ter virado vara criminal. Virou mesmo, matou no peito Alexandre de Moraes neste 12 de dezembro, em entrevista à Folha de S.Paulo. “Eu tenho uma vara criminal hoje com quase 2 mil ações”, gabou-se o recordista mundial da modalidade inquéritos ilegais simultâneos. “Eu diria que poucas varas criminais no país têm tanto volume.”

O entrevistador quis saber quando será concluído o inquérito do fim do mundo, em andamento há quase cinco anos. “Acaba quando termina”, retrucou Moraes, estendendo às arbitrariedades que pratica uma frase muito usada por técnicos de futebol. A abolição de prazos para as investigações que promove em sigilo é só mais uma evidência de que a Constituição foi substituída por um conjunto de normas reescritas ou fabricadas conforme as conveniências e humores do Grupo dos 9.

Délio Lins e Silva Júnior, presidente da OAB do Distrito Federal – Foto: Reprodução/Divulgação

A Constituição de 1988 estabeleceu que os Três Poderes são iguais e devem conviver em harmonia. Os ministros constituintes resolveram há pouco mais de dois anos que o Judiciário é mais igual que os outros. “Nós já temos um semipresidencialismo com um controle de poder moderador que hoje é exercido pelo Supremo Tribunal Federal”, comunicou em novembro de 2021 o ministro Dias Toffoli, de passagem por Lisboa. “Basta verificar todo esse período da epidemia.” O poder moderador nasceu no início do reinado de dom Pedro I e morreu com a Proclamação da República. De acordo com Toffoli, ressuscitou com a chegada de um vírus chinês.

O surto de patriotismo que contagiou o tribunal foi provocado pela constatação de que o Brasil estava “ameaçado por uma onda de autoritarismo”. Tradução: era preciso abortar a possível reeleição de Bolsonaro, e o passo inicial seria a escolha de um candidato

Dias depois do desembarque no Brasil da primeira esquadrilha de coronavírus, o Timão da Toga entrou em campo e impediu que o presidente da República cuidasse do problema. Incontáveis trapalhadas e derrapagens depois, o STF empurrou 700 mil mortos para o colo de Bolsonaro, declarou-se vitorioso e continuou em campo — pronto para invadir territórios alheios. O comando do Congresso, infestado de candidatos a réu do Pretório Excelso, aprendeu a conviver de joelhos com seus possíveis julgadores. Basta a relação incestuosa com o Executivo para assegurar ao Supremo o comando na guerra que, para salvar a democracia e o estado de direito, primeiro precisa assassinar o estado de direito e a democracia.

“A Corte passou por um processo de ascensão e se tornou um poder político nos últimos cinco anos”, reconhece o atual presidente, Luís Roberto Barroso. O surto de patriotismo que contagiou o tribunal foi provocado pela constatação de que o Brasil estava “ameaçado por uma onda de autoritarismo”. Tradução: era preciso abortar a possível reeleição de Bolsonaro, e o passo inicial seria a escolha de um candidato. Por falta de opções, os doutores optaram por Lula. Para resgatá-lo da gaiola, o ministro Edson Fachin inventou a Lei do CEP. Para consumar a retomada do Palácio do Planalto, foi escalado Alexandre de Moraes. Ele fez o contrário do que defendeu numa pilha de livros sobre Direito Constitucional. Sem remorso: como ensinou Barroso, “eleição não se ganha, se toma”. Até os bebês de colo sabem que o STF e o TSE fizeram coisas de que até Deus duvida. Mas a missão foi cumprida. “Derrotamos o bolsonarismo”, festejou Barroso numa quermesse promovida pelo PCdoB.

Ao longo deste 2023, o Supremo fez o diabo para ajudar o parceiro a equilibrar-se no governo. No início do ano, o agora aposentado Ricardo Lewandowski recolocou de pé o programa Desemprego Zero para a Companheirada ao liberar indicações políticas para o preenchimento de cargos em empresas públicas. O critério do compadrio fora extinto em 2016, quando o Congresso, com o voto contrário do PT, aprovou a Lei das Estatais. Em setembro, Dias Toffoli considerou “imprestáveis” provas contra Lula e a Odebrecht obtidas sete anos atrás pela Operação Lava Jato. Como brinde, o ministro jogou no lixo a imensidão de provas armazenadas no departamento de propinas da empreiteira. Na sentença, Toffoli caprichou no esforço para mostrar que ainda não pagou a dívida gerada pela toga que ganhou: qualificou a prisão do antigo chefe como “erro histórico” e fingiu enxergar na Lava Jato “uma armação, fruto de um projeto de poder de agentes públicos em seu objetivo de conquista do Estado brasileiro”.

Ricardo Lewandowski – Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

O raquitismo da bancada esquerdista no Congresso induziu o presidente a pedir socorro ao Supremo sempre que sofre uma derrota de bom tamanho. No momento, para driblar as sucessivas derrubadas no Senado dos vetos presidenciais, Lula planeja anular no STF o marco temporal endossado pelos representantes do povo. Caso decidam que o Brasil deve ser devolvido aos descendentes dos que aqui moravam em 1500, os doutores em tudo amputarão outro trecho da Constituição. Coisa pouca para quem já enterrou em cova rasa até cláusulas pétreas e regras em vigor desde o Império Romano.

Sempre em defesa da democracia, imaginariamente ameaçada por bolsonaristas que tentaram camuflar os atos liberticidas do 8 de janeiro com a convocação de vendedores de algodão-doce, septuagenários enfermos e até mesmo um autista, Alexandre de Moraes mantém presos em celas ou atados a tornozeleiras eletrônicas cerca de 1,5 mil cidadãos brasileiros. Disposto a vencer pelo medo os que ousam discordar do consórcio que junta Lula e o STF, o ministro criou a pena de morte anunciada, a prisão perpétua, o congelamento de contas bancárias de adolescentes, a interdição do acesso a redes sociais, o julgamento por lotes, a condenação por atacado e outras obscenidades.

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Vendedor de algodão-doce no 8 de janeiro, em Brasília – Foto: Divulgação/Redes Sociais

Graças à performance de Moraes, nenhum país do mundo tem mais presos políticos que o Brasil, foi ressuscitada a figura do exilado político, o ônus da prova agora cabe ao acusado. Os primeiros acusados — “golpistas”, prefere o ministro — foram condenados a 17 anos de prisão e castigados com multas milionárias. Nada disso, nem mesmo a morte do preso Cleriston Pereira da Cunha, consegue comover um juiz desprovido de compaixão. Convencido de que salvou o Brasil de uma ditadura fascista, acha que agiu com brandura. É o que mostra o trecho da entrevista abaixo reproduzido:

“São cinco crimes. As penas poderiam chegar a mais de 40 anos, quase 50 anos, se fossem as penas máximas. As maiores, até agora, foram só 17. Só que, e isso é muito importante salientar, por uma previsão da legislação brasileira, as pessoas só vão poder, nesses casos, ficar presas em regime fechado um sexto da pena. Ou seja, não chega a três anos, dois anos e oito meses. Vários já estão presos há quase um ano.”

Feliz com o que fez, já se prepara para as eleições municipais, mais uma etapa da guerra que trava há cinco anos contra difusores de fake news. Sem exibir quaisquer vestígios de remorso, lembra que todas as decisões que tomou tiveram o endosso dos demais ministros. Sem ficar ruborizado, garante que foram respeitados em todos os casos o direito de ampla defesa e o devido processo legal. “Isso é o maior motivo de satisfação, mostrando que a minha conduta vem sendo dentro dos parâmetros constitucionais”, delira Moraes.

Entusiasmados com os resultados das relações incestuosas entre os dois Poderes, os parceiros já começaram os festejos de fim de ano. Um “jantar de confraternização” na casa de Luís Roberto Barroso juntou o presidente Lula, destaques do primeiro escalão do governo e nove ministros togados. Também estava lá Flávio Dino, às voltas com a mudança do Ministério da Justiça para o Supremo. Surgiu no jantar a ideia de comemorar no dia 8 de janeiro o primeiro aniversário do que consideram uma vitória histórica da democracia sobre o fascismo à brasileira.

Se acreditassem no próprio discurso, os festeiros celebrariam a façanha histórica nas ruas em todo o país. Preferiram reunir-se no prédio do Senado. Caso tentassem transformar o 8 de janeiro num segundo 7 de Setembro, reprisariam o fiasco desmoralizante. O palanque estaria atulhado de pais da pátria. Mas nenhum deles seria aplaudido. Há um cadáver estendido na Praça dos Três Poderes. O povo seria o grande ausente.

(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-196/relacoes-incestuosas/

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