Obrigado, Danuza Leão

A escritora chegou à conclusão que qualquer pessoa de bom senso também chegou: a patrulha politicamente correta virou um monstro e encaretou a vida

Danuza Leão – Foto: Reprodução Redes Sociais

Por Guilherme Fiuza (*)

Danuza Leão morreu no dia 22 de junho último. Que pena. Tínhamos nos prometido um café, algum tempo atrás. Me impressionava o pensamento afiado da Danuza — cada vez mais afiado. Queria muito visitá-la, sozinho, numa tarde livre, só para ficar ouvindo-a falar. Cheguei a comentar isso com ela por telefone, e ela topou a ideia. Era melhor esperar passar os riscos da pandemia. Que pena que não deu, Danuza.

Uma vida incrível, muito bem vivida, e que virou matéria-prima para a grande escritora que Danuza Leão se tornou. Ela viveu tudo. Foi símbolo de beleza e charme nos tempos mais charmosos, e aos poucos foi mostrando que os olhares sobre ela só não eram mais aguçados que o olhar dela própria para o mundo. Se tornou uma cronista de costumes, de cultura, de estética e de política. Política no sentido mais nobre, o do olhar sobre as condutas humanas e sua teia de conflitos e conexões. Era sempre bom ver o que a lente da colunista Danuza Leão estava focando no festival das atualidades.

Quando comecei a carreira, em meados dos anos 80, no Jornal do Brasil, Danuza era uma das colunistas importantes do jornal. Cheguei a vê-la na redação, na época em que li o best-seller Minha Razão de Viver, as memórias do lendário jornalista Samuel Wainer organizadas por Augusto Nunes. Danuza tinha sido casada com Wainer (com quem teve três filhos) e era um símbolo dos tempos da Bossa Nova (além de irmã de Nara Leão). Suas crônicas, ainda assim, tinham vida própria. Não dependiam do espelho da sua biografia. Danuza gostava de pensar.

Os novos moralistas estão matando a liberdade de expressão dissimuladamente, por envenenamento

E foi nesse campo talvez a sua última grande decisão. De repente ela se percebeu num processo de autocensura. Logo a voz mais livre, que ajudou a construir a identidade feminina no universo contemporâneo — falando e exercendo a liberdade de sentir e de ser o que se é. O que aconteceu para que Danuza começasse a medir as palavras e restringir sua própria forma de expressão?

Aconteceu o que todo mundo sabe e alguns fingem que não sabem: a nova onda moralista, fantasiada de libertadora. Ou seja: o moralismo mais hipócrita da história. Os reaças metidos a descolados vigiam todo mundo, ávidos para encontrar alguma vírgula fora da cartilha. E quando encontram têm sua apoteose sensorial. A sua glória. A patrulha da checagem, formal ou informal, espontânea ou “profissional”, é a glorificação do dedo-duro — em sua nova nomenclatura científica. Dedurar com fantasia de libertador — é o crime perfeito para os nanicos de alma.

Ou quase perfeito. Danuza Leão eles não conseguiram pegar. Acham que conseguiram. Porque de repente ela anunciou que ia parar de escrever, deixar de ser colunista. Não era aposentadoria, nem cansaço, nem esgotamento criativo. O olhar de Danuza para o mundo estava mais aguçado que nunca. Tanto que ela viu — e identificou perfeitamente — esse cerco insidioso contra a liberdade de expressão, que os novos moralistas estão matando dissimuladamente, por envenenamento.

Danuza sentiu que estava se envenenando. Se pegou começando a rodear assuntos sobre os quais sempre falou diretamente, pensando duas vezes antes de escrever sobre o amor — para ver se não estava esbarrando em algum dos novíssimos dogmas, se não estava deixando de pagar algum pedágio conceitual desses que a patrulha checadora exige. Era só o que faltava: depois de passar décadas ajudando a libertar pessoas e comportamentos, ter que pedir licença para os libertadores de araque — para não arranhar o moralismo moderninho.

A escritora de vários best sellers chegou à conclusão que qualquer pessoa de bom senso (não precisa nem bom gosto) também chegou: a patrulha politicamente correta virou um monstro e encaretou a vida. Danuza nunca se curvou ou fez concessões a esse arrastão mental para ficar bem com os clubinhos de poder. E quando achou que estava prestes a perder a sua liberdade, deu o salto inalcançável: trocou o pensar e escrever pelo pensar e pensar.

A patrulha ficou à míngua. E Danuza continuou se divertindo muito.

Obrigado, Danuza.

(*) Jornalista e escritor carioca, é autor de títulos como Manual do Covarde (2018), O Império do Oprimido (2016), 3.000 Dias no Bunker (2006) e Meu Nome Não É Johnny (2004). Também roteirista de TV, autor de teatro e analista político, é uma voz de destaque no debate contemporâneo.

DEIXE SEU COMENTÁRIO

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.