O exemplo da maior de todas as gerações

Precisamos apreciar a perspectiva de que, por mais desesperadora que esteja nossa situação, o mundo é um lugar melhor por causa de um 6 de junho

Um Landing Craft, Vehicle, Personnel (LCVP) do USS Samuel Chase, tripulado pela Guarda Costeira dos EUA, desembarca tropas na Praia de Omaha na manhã de 6 de junho de 1944 (Dia D) - Foto: Robert F. Sargent/Domínio Público

Por Ana Paula Henkel (*)

De tempos em tempos precisamos revirar algumas páginas da história e trazer os fatos para a superfície destes estranhos anos em que vivemos. Palavras sem o respeito histórico são comumente usadas hoje em dia com absoluto desprezo pela turba jacobina que precisa calar e cancelar todos aqueles que não se ajoelham para suas posições político-ideológicas — quem não endossa as ações fascistas persecutórias dos justiceiros sociais é logo tachado de nazista. Mergulhar na dimensão correta do passado não apenas protege as reais vítimas de regimes totalitários, mas nos dá a real proporção do que, de fato, é a defesa da liberdade.

Para os amantes de história, como eu, a semana foi marcada por uma data profundamente especial para o Ocidente e para o mundo. Há 79 anos, na Segunda Guerra Mundial, os Aliados atacaram as praias da Normandia no histórico Dia D — 6 de junho de 1944 —, e a queda de Hitler se iniciava. A invasão marcou o maior desembarque anfíbio desde que os persas, comandados por Xerxes em 480 a.C., invadiram o continente grego. Quase 160 mil soldados britânicos, norte-americanos e canadenses invadiram cinco praias da França, ocupada pelos nazistas. O plano era libertar a Europa Ocidental após quatro anos de ocupação, avançar para a Alemanha e acabar com o regime nazista.

Ostensivamente, o ataque parecia impossível até mesmo para ser planejado, quanto mais colocado em prática. As tropas alemãs de Hitler haviam repelido com grandes perdas canadenses um ataque anterior à Normandia, em agosto de 1942, e os alemães já calculavam aproximadamente a chegada dos Aliados. Dessa maneira, Hitler colocou seu melhor general, Erwin Rommel, no comando das defesas da Normandia.

Erwin Rommel, em 1942/43 – Foto: Wikimedia Commons

A gigantesca força militar empenhada no Dia D exigia enormes operações para suprimentos de armas. Não havia meios de capturar nem mesmo um porto na costa francesa, fortemente armada e protegida pelos alemães. Então, para os Aliados desembarcarem tantas tropas de maneira rápida, uma operação de total supremacia naval e aérea seria necessária. Eles teriam que rebocar da Grã-Bretanha seus próprios portos, colocar em operação seu próprio gasoduto através do Canal da Mancha e inventar novos navios e veículos blindados apenas para entrar e sair das praias. As famosas unidades alemãs Panzer, tropas experientes com mais de três anos de combate na Frente Oriental e armadas com assustadores tanques, estavam confiantes de que poderiam aniquilar em questão de dias invasores levemente armados em menor número que tentassem penetrar no mapa conquistado pelos alemães nas praias da Normandia.

Para ter alguma chance de furar a poderosa força militar de Hitler, uma operação sólida com o mínimo de chance de sucesso exigia um procedimento para lá de robusto e arriscado — mais de 80 quilômetros de espaço de pouso nas praias francesas. Na vasta extensão que seria usada, no entanto, havia locais de pouso que seriam menos do que ideais para a total potencialidade da operação. A Praia de Omaha, em particular, era um desses pontos de fraqueza para os Aliados.

A França estava tomada pelos alemães e ninguém sabe ao certo quantos soldados, aviadores e marinheiros aliados foram perdidos durante as primeiras 24 horas do Dia D nas praias da Normandia. Alguns historiadores concordam que cerca de 10 mil vítimas é um bom palpite, incluindo mais de 4 mil mortos. Apenas na Praia de Omaha, a área de pouso mais arriscada para os Aliados, mais de 400 soldados foram mortos, feridos ou capturados a cada hora do primeiro dia. Os penhascos da geografia local ofereciam linhas de fogo perfeitas para os alemães, já que o grande campo de visão de todo o desembarque era muito favorável de cima dos desfiladeiros. Paredões de concreto bloqueavam o acesso das praias, e as tropas alemãs de elite haviam recentemente reforçado as fortificações.

Desembarque na Praia de Omaha no Dia D, 6 de junho de 1944 – Foto: Shutterstock

A Praia de Omaha é um dos lugares mais falados quando o assunto é Segunda Guerra Mundial, exatamente por ser um trágico paradoxo do Dia D. Enquanto os outros quatro locais de pouso funcionaram como um relógio perfeito e com poucas baixas, a Praia de Omaha provou ser um pesadelo terrível. As imagens de Omaha registradas em muitos documentários mostram que ali, diante da morte absoluta e do terror, nasceria o caminho para a vitória dos Aliados e a libertação do mundo das garras nazistas. Nas sete semanas seguintes de combate na Normandia, quase 250 mil soldados aliados foram mortos ou feridos na histórica Operação Overlord. Os Aliados não conquistaram a Normandia até o final de julho de 1944, quando finalmente invadiram as planícies da França e começaram a correr em direção à Alemanha.

Muitos aqui nos Estados Unidos nesta semana relembram seus veteranos e se perguntam como os americanos em Omaha seguiram firmes, direto de suas embarcações em meio a um caótico desembarque e uma saraivada de metralhadoras e artilharia pesada alemã. Por que, apesar de terem sido abatidos em massa, ali mesmo nas areias da Praia de Omaha, eles não pararam ou mesmo se reagruparam? Porque eles acreditavam na palavra “liberdade”. Acreditavam que ela sempre foi a pedra angular da nação norte-americana e da civilização ocidental. Homens forjados no sacrifício, moldados em uma geração que emergiu da pobreza esmagadora da Grande Depressão para enfrentar a realidade de que as potências do Eixo queriam destruir sua civilização e os princípios de seu país. Eles estavam convencidos de que lutavam pela causa certa. Eles não se impressionaram com a força tecnológica alemã ou de seus militares com anos de experiência em batalha. Eles entenderam, como seus predecessores na América, que nada nos Estados Unidos era garantido e que toda geração tem sua tocha para ser recebida e sua responsabilidade para ser exercida quando chamada para o campo de batalha — onde quer que esteja.

Soldados norte-americanos operam rádios do Signal Corps, entre 6 e 8 de junho de 1944, na Normandia, França – Foto: Shutterstock

Os homens e mulheres que lutaram nessa guerra foram heroicos e ganharam o título de A Maior Geração, não apenas durante a Segunda Guerra Mundial, mas também antes e depois dela. Aqueles que lutaram na Segunda Guerra Mundial passaram a juventude na Grande Depressão. A idade média dos norte-americanos durante a guerra era 26 anos, então a geração da Segunda Guerra Mundial nasceu entre 1915 e 1919. Eles haviam experimentado a quebra do mercado de ações, a devastação e queda dos pilares econômicos e o início da Grande Depressão na infância. Essa geração passou os dez anos seguintes de sua vida tentando encontrar trabalho. Qualquer dinheiro ganho voltava para a família para ajudar a manter a casa aquecida e a comida na mesa.

Os homens de Omaha não acreditavam que a América precisava ser perfeita para ser boa — apenas muito melhor do que a alternativa apresentada ao mundo. O mínimo que nossa geração — rica, ociosa, afetada e tão frequentemente egocêntrica com seus ridículos pronomes — pode fazer é lembrar quem eles foram, o que fizeram e quanto devemos a eles, e, por isso, esta semana eu não poderia escrever sobre outro assunto.

Além de lembrarmos e prestarmos homenagens ao histórico Dia D, é no começo do mês que também lembramos a morte de Ronald Reagan, em 5 de junho de 2004. O 40º presidente norte-americano lutou incansavelmente contra o comunismo e regimes totalitários não apenas quando estava na Casa Branca, mas durante décadas de sua vida. E foi em 1984, na celebração de 40 anos do desembarque das tropas norte-americanas nas praias da Normandia, que Reagan fez um discurso histórico no Cemitério e Memorial Americano na Praia de Omaha, com a presença de alguns veteranos norte-americanos que sobreviveram àquela batalha.

O presidente norte-americano Ronald Reagan e o presidente François Mitterrand, da França, participam de uma cerimônia de colocação de coroas de flores no cemitério norte-americano na Praia de Omaha (6/6/1984) – Foto: Wikimedia Commons

Em seu discurso, facilmente encontrado na internet, com a voz embargada, ele diz: “Quarenta verões se passaram desde a batalha que vocês travaram aqui. Vocês eram jovens no dia em que tomaram esses penhascos; alguns de vocês eram apenas garotos, com as mais profundas alegrias e prazeres da vida diante de vocês. No entanto, vocês arriscaram tudo aqui. Por quê? Por que vocês fizeram isso? O que os levou a deixar de lado o instinto de autopreservação e arriscar suas vidas para tomar esses penhascos? O que inspirou todos os homens dos exércitos que aqui se reuniram? Nós olhamos para vocês e, de alguma forma, sabemos a resposta. Fé e crença. Lealdade e amor”.

É difícil imaginar, mesmo diante de tantas fotografias e imagens, o que a Força Expedicionária Aliada experimentou em 6 de junho de 1944. A maioria dos homens que desembarcou nas águas da Normandia naquele dia tinha 20 e poucos anos. Eles deveriam estar trabalhando no comércio local, ajudando seus pais nas plantações ou aproveitando as férias de verão das aulas da faculdade. Em vez disso, eles estavam a mais de 8 mil quilômetros de distância de casa, e no lugar mais perigoso do mundo.

Todos os dias, lamentamos a morte de mais desses bravos homens. Agora, na casa dos 90 anos de idade, logo chegará o momento em que nenhum deles estará entre nós. Jamais podemos esquecer seu heroico serviço e sacrifício naquele dia fatídico há 79 anos. Devemos valorizar sua memória, agradecer a Deus por eles em nossas orações e garantir que as gerações futuras saibam de seu valor — cada vez mais incomum. Os soldados do Dia D representam a humanidade em seu aspecto mais nobre, valente e altruísta. Eles realmente foram A Maior Geração que a humanidade já viu.

Cemitério militar norte-americano na Normandia, França – Foto: Pixabay

No final do discurso de Reagan na homenagem aos veteranos em 1984, o tom é de profunda gratidão àqueles que sacrificaram sua vida por todos nós, mas há também um aviso: “Quando a guerra acabou, havia vidas a serem reconstruídas e governos a serem devolvidos ao povo. Havia nações para renascer. Acima de tudo, havia uma nova paz a ser assegurada. Essas eram tarefas enormes e assustadoras. (…) Nós, na América, aprendemos lições amargas de duas Guerras Mundiais: é melhor estarmos prontos para proteger a paz, do que nos abrigarmos cegamente no mar, correndo para responder apenas depois que a liberdade já tiver sido perdida. Aprendemos que o isolacionismo nunca foi e nunca será uma resposta aceitável a governos tirânicos”.

Por mais que estejamos vivendo um momento complicado em nossa história, com auras totalitárias embrenhando-se em nossas páginas, neste feriado prolongado, pare por alguns minutos e converse com os filhos, sobrinhos e netos sobre a história do Dia D

Nossas batalhas hoje contra esses governos tirânicos, hoje rondando nossa bandeira, são incrivelmente menores e incomparáveis àquelas vividas por homens de extrema bravura há 79 anos. Mas a vez de a nossa geração lutar por algo muito maior e que vai além do nosso tempo de vida chegou. E é deles, desses homens, que podemos tirar o exemplo de patriotismo — palavra tão demonizada pela atual geração mimada, afetada e egocêntrica — que pode e deve servir como combustível durante tempos de sacrifício, disposição e compromisso com o futuro.

Memorial próximo à Praia de Utah, Normandia, França – Foto: Shutterstock

Por mais que estejamos vivendo um momento complicado em nossa história, com auras totalitárias embrenhando-se em nossas páginas, neste feriado prolongado, pare por alguns minutos e converse com os filhos, sobrinhos e netos sobre a história do Dia D. Saia das redes sociais e dê uma chegadinha com a sua família ali no YouTube ou na Netflix e coloque na barra de pesquisa: “D-Day”. Inspire-se. Mergulhe nas imagens e lave-se nas lágrimas que são difíceis de ser evitadas. Precisamos apreciar a perspectiva de que, por mais desesperadora que esteja nossa situação, o mundo é um lugar melhor por causa de um 6 de junho. E é esse legado que nos move adiante.

Ana Paula Henkel

(*) Pesquisadora associada do Instituto Ronald Reagan, é hoje arquiteta e analista política. Ex-atleta, atuou pela Seleção Brasileira de Voleibol e disputou quatro Olimpíadas. Foi medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de 1996, em Atlanta, Estados Unidos, pelo vôlei de quadra. É bicampeã mundial no vôlei de praia. Tornou-se um dos principais nomes femininos do pensamento liberal-conservador. Vive em Los Angeles, onde cursa Ciência Política pela Ucla.

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