O ano fora da lei

O ministro que celebrou a liberdade em 2018 agora comanda os devotos da censura

Foto: Montagem Revista Oeste | Agência Senado | Divulgação

Por Augusto Nunes (*)

Acampanha presidencial de 2018 ainda engatinhava quando o PDT, amparado numa lei aprovada no fim do século 20, requereu a imposição de restrições à cobertura jornalística da disputa nas urnas. Imediatamente, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) encaminhou ao Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade destinada a anular as normas legais invocadas pelo partido. Apresentado em 21 de junho, e endossado por todos os ministros presentes à sessão, o voto do relator Alexandre de Moraes ergueu um monumento à liberdade de expressão e enterrou a censura em cova rasa. Confira alguns trechos.

“A democracia não existirá e a livre participação política não florescerá onde a liberdade de expressão for ceifada, pois esta constitui condição essencial ao pluralismo de ideias, que por sua vez é um valor estruturante para o salutar funcionamento do sistema democrático.” 

“São inconstitucionais os dispositivos legais que tenham a nítida finalidade de controlar ou mesmo aniquilar a força do pensamento crítico. Não se pode permitir qualquer possibilidade de restrição, subordinação ou forçosa adequação programática da liberdade de expressão a mandamentos normativos cerceadores durante o período eleitoral. Tanto a liberdade de expressão quanto a participação política em uma democracia representativa somente se fortalecem em um ambiente de total visibilidade e possibilidade de exposição crítica das mais variadas opiniões sobre os governantes.”

“O direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias. Ressalte-se que mesmo as declarações errôneas estão sob a guarda dessa garantia constitucional.”

“O fato de a radiodifusão sonora e de sons e imagens constituir serviço público não representa um fator relevante de diferenciação em relação a outros veículos de comunicação social, no que se refere à proteção das liberdades de expressão, imprensa e informação.”

“Não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas. Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, pouco importando o poder estatal de que ela provenha.”

“A Magna Carta Republicana destinou à imprensa o direito de controlar e revelar as coisas respeitantes à vida do Estado e da própria sociedade. (…) O exercício concreto dessa liberdade em plenitude assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero, contundente, sarcástico, irônico ou irreverente, especialmente contra as autoridades e aparelhos de Estado. É da essência das atividades da imprensa operar como formadora de opinião pública e necessário contraponto à versão oficial das coisas.”

“A liberdade de imprensa (…) não é de sofrer constrições em período eleitoral. Ela é plena em todo o tempo, lugar e circunstâncias. O direito à informação, conferido ao cidadão individualmente, implica o reconhecimento de correspondente liberdade aos agentes envolvidos na atividade de comunicação social de não se submeterem a qualquer censura.”

Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal | Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

“A liberdade de expressão permite posterior responsabilidade cível e criminal pelo conteúdo difundido, além da previsão do direito de resposta. No entanto, não há permissivo constitucional para limitar preventivamente o conteúdo do debate público em razão de uma conjectura sobre o efeito que certos conteúdos possam vir a ter junto ao público.”

“A liberdade é constitucionalmente garantida, não se podendo anular por outra norma constitucional, menos ainda por norma de hierarquia inferior (lei civil), ainda que sob o argumento de se estar a resguardar e proteger outro direito constitucionalmente assegurado.”

“Embora não se ignorem certos riscos que a comunicação de massa impõe ao processo eleitoral — como o fenômeno das fake news —, revela-se constitucionalmente inidôneo e realisticamente falso assumir que o debate eleitoral, ao perder em liberdade e pluralidade de opiniões, ganharia em lisura ou legitimidade.”

“A censura prévia desrespeita diretamente o princípio democrático, pois a liberdade política termina e o poder público tende a se tornar mais corrupto e arbitrário quando pode usar seus poderes para silenciar e punir seus críticos. É imprescindível o embate livre entre diferentes opiniões, afastando-se a existência de verdades absolutas e permitindo-se a discussão aberta das diferentes ideias, que poderão ser aceitas, rejeitadas, desacreditadas ou ignoradas; porém, jamais censuradas, selecionadas ou restringidas pelo Poder Público.”

“A garantia constitucional da liberdade de expressão não se direciona somente à permissão de expressar as ideias e informações oficiais produzidas pelos órgãos estatais ou a suposta verdade das maiorias, mas sim garante as diferentes manifestações e defende todas as opiniões ou interpretações políticas conflitantes ou oposicionistas, que podem ser expressadas e devem ser respeitadas, não porque necessariamente são válidas, mas porque são extremamente relevantes para a garantia do pluralismo democrático.”

“Todas as opiniões existentes são possíveis em discussões livres, uma vez que faz parte do princípio democrático debater assuntos públicos de forma irrestrita, robusta e aberta. O direito fundamental à liberdade de expressão, portanto, não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias. Vale também para aquelas que ferem, chocam ou inquietam. Assim o exige o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura, sem os quais não existe sociedade democrática.”

“Nos Estados totalitários no século passado — comunismo, fascismo e nazismo —, as liberdades de expressão, comunicação e imprensa foram suprimidas e substituídas pela estatização e monopólio da difusão de ideias, informações, notícias e educação política, seja pela existência do serviço de divulgação da verdade do partido comunista, seja pela criação do comitê superior de vigilância italiano ou pelo programa de educação popular e propaganda dos nazistas, criado por Goebbels; com a extinção da multiplicidade de ideias e opiniões, e, consequentemente, da democracia.”

“O funcionamento eficaz da democracia representativa exige absoluto respeito à ampla liberdade de expressão, garantindo-se, portanto, os diversos e antagônicos discursos — moralistas e obscenos, conservadores e progressistas, científicos, literários, jornalísticos ou humorísticos. É no espaço público de discussão que a verdade e a falsidade coabitam.”

O que terá acontecido? Um fato inesperado talvez decifre o claro enigma. Em junho de 2018, aos olhos dos superdoutores togados, Jair Bolsonaro era um aventureiro fadado ao fiasco eleitoral (e Lula, já com as portas da cadeia entreabertas, liderava as pesquisas). A vitória do Grande Satã do Supremo pode explicar por que Moraes, com o apoio militante dos que aplaudiram o parecer histórico, tenha dedicado os anos seguintes à missão de trucidar a Constituição, revogar a liberdade de expressão e ressuscitar a censura. Os governantes do Pretório Excelso vão festejar no Réveillon a mais recente façanha: graças ao que andaram fazendo entre janeiro e dezembro, 2023 será lembrado como o mais sórdido dos Anos Fora da Lei.

Foto: Montagem Revista Oeste/Midjourney

(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-197/o-ano-fora-da-lei/

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