Homens comuns, crimes bárbaros

O transe em que muitos entram, sem sequer lutar contra o claro sentimento pessoal de que estavam fazendo algo terrível, lembra os dias sombrios que estamos vivendo desde 7 de outubro

Cena do documentário da Netflix Homens Comuns - Foto: Divulgação

Por Ana Paula Henkel (*)

Bastam dois neurônios, menos da metade de um coração e o mínimo de conhecimento histórico para entendermos a gravidade do que aconteceu em 7 de outubro. Diante do terror cometido contra bebês, crianças, pais, mães, idosos e jovens que celebravam a vida em um festival de música, não é difícil questionar o que não percebemos para chegar até aqui novamente, como se estivéssemos revisitando páginas sombrias da história.

Desde aquele dia, o mundo permanece em choque com os detalhes agora conhecidos da violência cometida pelos terroristas do Hamas. Da mesma maneira, o mundo segue atônito com as milhares de manifestações contra o povo judeu, algo visto apenas na Segunda Guerra Mundial, com as ações genocidas do regime nazista.

Até no Brasil, por exemplo, manifestações pró-Hamas foram organizadas e desfilaram por importantes avenidas em São Paulo. Em todas elas, apoiadores de terroristas — incluindo o padre Júlio Lancellotti — entoavam a frase que defende a extinção de Israel: “From the River to the Sea, Palestine Will Be Free”. “Do rio ao mar, a Palestina será livre” é um chamado às armas comum para ativistas pró-palestinos/Hamas. A frase apela ao estabelecimento de um Estado da Palestina do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo, ou seja, extinguindo o Estado de Israel e dizimando seu povo. O grito, entoado nas manifestações que também encheram ruas e universidades norte-americanas, é um grito de guerra para grupos terroristas e seus simpatizantes desde que o Hamas estabeleceu em sua carta governamental original, em 1988, que a destruição de Israel é a única solução para os palestinos.

Padre Júlio Lancellotti chama Israel de 'estado assassino' em manifestação do PT
Padre Júlio Lancellotti chama Israel de “Estado assassino” em manifestação do PT | Foto: Reprodução

Nesta quinta-feira, 16 de novembro, a Polícia Militar de São Paulo anunciou um aumento no policiamento nas comunidades judaico-israelenses. A corporação investiga o recrutamento de brasileiros para a prática de atos violentos contra judeus no Brasil. De acordo com dados da Federação Israelita do Brasil e da Federação Israelita do Estado de São Paulo, houve um aumento de 961% nas denúncias de preconceito, hostilidade e discriminação contra judeus nos últimos 30 dias em comparação com o mesmo período em 2022. Aumento de novecentos e sessenta e um por cento.

E as perguntas que não saem da cabeça de quem tem mais de dois neurônios, menos da metade de um coração e o mínimo de conhecimento histórico são: o que aconteceu com o mundo? Como voltamos para a Alemanha Nazista dos anos 1930? Como pessoas comuns, como professores, estudantes, dentistas, advogados, proferem sem o menor pudor o mais nojento e vil antissemitismo contra judeus nas ruas e redes sociais?

Nesta semana, tive a oportunidade de assistir a Ordinary Men, um documentário da Netflix que nasceu do livro homônimo escrito por Christopher R. Browning e publicado em 1992. O livro Homens Comuns é um estudo histórico que examina como um conjunto de homens comuns de meia-idade de Hamburgo se tornou um grupo de assassinos em massa durante o Holocausto. O foco está no Batalhão de Polícia da Reserva 101, que esteve envolvido nos fuzilamentos em massa de judeus e outros civis na Polônia durante o ano de 1942. Browning explora os fatores psicológicos e sociológicos que levaram esses homens a participar de atrocidades, desafiando ideias de coação, obediência ou escolha pessoal.

Capa do livro Ordinary Men, de Christopher R. Browning | Foto: Divulgação

O documentário da Netflix oferece uma exploração visual dos eventos discutidos nas páginas do historiador. Por meio de uma combinação de entrevistas, imagens históricas e reconstituições dramáticas, o documentário investiga as escolhas morais enfrentadas pelos membros do Batalhão de Polícia da Reserva 101. Christopher Browning, um dos maiores especialistas do mundo no Holocausto, mostra que a maioria dos homens do Batalhão não eram nazistas fanáticos, mas homens comuns de meia-idade que cometeram essas atrocidades devido à dinâmica de grupo e conformidade, deferência à autoridade, adaptação de papéis e alteração de normas morais para justificar suas ações. Embora o livro discuta uma unidade específica, seu argumento geral é que a maioria das pessoas é suscetível à pressão de um ambiente de grupo e pode cometer ações que nunca faria por sua própria vontade.

Homens Comuns traz uma estatística perturbadora: em março de 1942, cerca de 80% de todas as vítimas do Holocausto ainda estavam vivas, enquanto cerca de 20% já tinham morrido. No entanto, apenas 11 meses depois, esses números seriam revertidos. O período de 1942 a 1943 está entre os mais violentos, sangrentos e horríveis da Segunda Guerra Mundial, devido em grande parte à violência nos principais guetos e campos de extermínio. Browning, no entanto, desenvolveu desde cedo um interesse em saber se as pequenas aldeias e cidades estavam sujeitas à mesma violência que os grandes guetos. Em sua busca por respostas, o escritor se deparou com arquivos de interrogatório do Batalhão de Polícia mencionado no livro, com um impressionante e assustador nível de detalhes nas acusações e interrogatórios, especialmente por revelarem quão comuns eram os homens que perpetraram atos extremos de violência.

Cena do documentário da Netflix Homens Comuns | Foto: Reprodução

Uma das principais funções do Batalhão era ajudar a prender judeus de cidades e guetos para a deportação para campos de extermínio próximos. Havia uma ordem permanente para que esses homens exterminassem doentes e pessoas frágeis que tinham dificuldade para andar. No final do outono europeu de 1942, o batalhão participou de uma nova fase da “Solução Final”, que eles chamavam de Judenjagd, ou “caça aos judeus”. Na operação, os homens vasculhavam florestas, pequenos prédios, casas e celeiros para encontrar quaisquer judeus que estivessem escondidos e que tivessem escapado à deportação para os campos de concentração. Todos os judeus encontrados eram sumariamente fuzilados — inclusive mães e crianças. Os bebês eram colocados contra o peito da mãe e fuzilados na cabeça para que “apenas uma bala” fosse usada”. Estamos falando dos nazistas em 1942, mas creio que podemos chamar de Hamas em 2023. Esse processo durou meses, até a Primavera de 1943, e não há forma de determinar com precisão quantos judeus foram mortos durante esse período.

A maioria dos homens do Batalhão de Polícia da Reserva 101 era de famílias cuja bússola moral havia sido formada antes do surgimento da cultura nazista. Muitos não escolheram ingressar no batalhão, mas foram convocados, o que significa que nem sequer passaram por algum treinamento. No livro, Browning sempre volta para as questões que levaram tantos homens, aparentemente comuns, a se tornarem assassinos em massa durante a guerra, uma vez que para esses soldados foi dada a liberdade de escolher não matar. Muitos optaram por esse caminho, mas ficaram com a pecha de fracos e covardes.

Batalhão da Ordnungspolizei, força policial da Alemanha Nazista, conduzindo uma incursão no Gueto de Cracóvia (1941) | Foto: Wikimedia Commons

Lançando luz sobre as complexidades do comportamento humano no contexto de guerra e genocídio, tanto o livro quanto o documentário contribuem para a tentativa de compreender como indivíduos comuns podem tornar-se perpetradores de uma violência extraordinária sob determinadas circunstâncias históricas e sociais. As valiosas informações sobre a psicologia da obediência, o impacto da dinâmica de grupo e os desafios morais enfrentados pelos indivíduos no meio da guerra e do genocídio são brutalmente chocantes. O transe em que muitos entram, sem sequer lutar contra o claro sentimento pessoal de que estavam fazendo algo terrível, lembra os dias sombrios que estamos vivendo desde 7 de outubro. Muitas pessoas estão, novamente em 2023, em um bizarro transe.

Há raízes históricas na Europa com casos de discriminação, perseguição e violência contra judeus ocorrendo durante séculos. A ideia de que judeus eram “estrangeiros” contribuiu para uma longa tradição de preconceito. Fatores econômicos entraram nas sujas páginas de horror da Segunda Guerra, já que, em tempos de dificuldades, a utilização de grupos minoritários como bodes expiatórios, incluindo judeus, é um fenômeno recorrente. Com o rescaldo da Primeira Guerra Mundial e da Grande Depressão, alguns alemães procuraram explicações para os seus problemas culpando os judeus, ligando-os falsamente às dificuldades financeiras.

Judeus aprisionados no campo de concentração de Buchenwald | Foto: Shutterstock

O oportunismo político nunca fica de fora de uma receita de barbárie. Hitler e o Partido Nazista exploraram os sentimentos antissemitas existentes para consolidar seu poder. Os nazistas usaram os judeus convenientemente para os problemas da Alemanha, retratando-os como uma ameaça à raça ariana e à nação alemã. Essa retórica ajudou a reunir apoio para leis e políticas discriminatórias e, em 1935, os nazistas introduziram as Leis de Nuremberg, que institucionalizaram a discriminação antissemita. Essas leis privaram os judeus da sua cidadania alemã, proibiram o casamento misto entre judeus e não judeus e restringiram vários aspectos da vida cotidiana dos judeus.

Ainda em 1938, antes da invasão de Hitler à Polônia, a Kristallnacht, a “Noite dos Cristais”, foi um marco na pavimentação do Holocausto. O violento pogrom teve como alvo empresas, casas e sinagogas judaicas em toda a Alemanha. Essa violência organizada marcou uma escalada significativa na perseguição aos judeus e prenunciou as medidas mais sistemáticas e letais que se seguiriam. O sentimento antissemita evoluiu para uma campanha sistemática de perseguição e, infelizmente, chegou ao patamar do genocídio.

Vista interna da destruída Sinagoga Fasanenstrasse, em Berlim, incendiada na “Noite dos Cristais” (1938) | Foto: Domínio Público

As vertentes das páginas contra os judeus nos anos que antecederam a Segunda Grande Guerra podem, em algum momento, entrelaçar-se com o presente e mostrar uma perturbadora congruência com o que estamos vendo em 2023. Mas nenhum ponto em comum é tão ou mais preocupante do que a propaganda. É exatamente ali que são germinadas e alimentadas as “justificativas” para a barbárie.

O regime nazista utilizou habilmente campanhas para promover ideologias antissemitas, e Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda de Hitler, desempenhou um papel significativo na divulgação de mensagens antijudaicas por meio de vários canais de comunicação social, incluindo jornais, filmes e discursos públicos. A propaganda reforçou estereótipos, espalhou desinformação e alimentou o ódio.

No manual demoníaco de Goebbels, uma das páginas mais eficientes para a difusão do “ódio justificado” foi o emprego do conceito da “grande mentira”, uma técnica de propaganda em que uma mentira é repetida com frequência suficiente até ser aceita como verdade. Ele usou essa abordagem para espalhar afirmações falsas e exageradas sobre os judeus, incluindo descrevê-los como conspiradores com o objetivo de controlar o mundo, manipular as economias e minar a sociedade alemã. Goebbels reconheceu o poder da propaganda visual e utilizou-a extensivamente com imagens e desenhos antissemitas que foram divulgados em jornais, cartazes e filmes, reforçando estereótipos negativos e fomentando um clima de ódio.

Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, em 1942 | Foto: Wikimedia Commons

E o disco, aterrorizantemente, volta a tocar. Há algumas semanas, a velha mídia tradicional no mundo espalhou pura propaganda terrorista sobre um “ataque” “israelense” a um “hospital” de Gaza que acabou se revelando nada além de mentiras — mas não antes que a falsa narrativa acendesse a fúria anti-Israel ao redor do globo. O empacotamento da história, no que, na verdade, foi um evento sobre um estacionamento sendo atingido por foguetes dos próprios insurgentes de Gaza, forneceu um exemplo clássico de como a mídia, em 2023, usa o manual de Goebbels de 1938 para se adequar aos seus próprios preconceitos. As fotos espalhadas pelos quatro cantos do mundo mostravam um estacionamento atingido, e a alegação empurrada foi de que a explosão havia matado mais de 500 pessoas.

O mesmo complexo midiático antissemita que acreditou na palavra do “Ministério da Saúde” dos terroristas recusou-se a acreditar nos relatórios dos militares e do governo israelenses de que os bárbaros do Hamas, que decapitaram civis e queimaram vivas famílias inteiras — incluindo crianças pequenas —, poderiam ser capazes de decapitar bebês. Apesar de várias imagens e relatos de que crianças foram encontradas decapitadas, os meios de comunicação trabalharam para lançar dúvidas sobre a sua validade.

E tem mais. O grupo terrorista Hamas, apoiado e financiado pelo Irã, invadiu casas de civis desarmados, assassinando, violando, torturando, decapitando e raptando centenas de vítimas antes de se gabar da sua brutalidade na internet. Mas, assim como Hitler, que durante muito tempo conseguiu ter seu real significado evitado, muitos jornalistas e governantes ainda se recusam a chamar o grupo ou as suas ações de “terroristas”.

Terroristas do Hamas | Foto: Anas Mohammed/Shutterstock

Em 5 de novembro, no condado de Ventura, aqui na Califórnia, um judeu que segurava uma bandeira de Israel em um semáforo foi empurrado violentamente por um simpatizante do Hamas e acabou sofrendo uma lesão grave na cabeça. O homem de 69 anos foi levado ao hospital, mas faleceu no mesmo dia. A polícia está tratando o caso como crime de ódio.

Quem não conhece a história está fadado a ser um soldado, um apoiador, um peão, uma “pessoa comum” que aplica o mal manipulado por reais genocidas

Em 24 de outubro, apenas duas semanas depois do terror assassino, mensagens anti-Israel foram projetadas no exterior de um prédio do campus da Universidade George Washington. As mensagens — incluindo “Glória aos nossos mártires”, “Desinvestimento do genocídio sionista agora” e “Libertem a Palestina do rio ao mar” — apareceram na lateral do prédio de uma biblioteca por duas horas, atraindo outros manifestantes. Depois de uma investigação, quatro líderes de grupos estudantis foram suspensos. O episódio, que não é isolado, mostra por que estudantes judeus por toda a América relatam não se sentir seguros para assistir às aulas presencialmente.

Há duas semanas, uma amiga judia no Brasil me relatou que está mandando os filhos pequenos para a escola judaica sem o uniforme. Ela também orientou os meninos a não contarem para desconhecidos que são judeus. Que tristeza!

Foto: Shutterstock

Quando passamos pelas páginas do livro de Christopher Browning e assistimos às imagens de Homens Comuns, por um segundo ainda pensamos: “Como ‘pessoas comuns’ puderam cometer atos tão bárbaros?”. E, então, nos deparamos com a realidade diante de nossos olhos. Chega a arrepiar que um livro que conta os horrores de 1942 possa fazer conexão com 2023.

Toda semelhança não é mera coincidência. Quem não conhece a história está fadado a ser um soldado, um apoiador, um peão, uma “pessoa comum” que aplica o mal manipulado por reais genocidas.

E o silêncio de muitos não judeus, como aconteceu durante aqueles terríveis anos, não pode — jamais! — ser uma opção novamente.

Ana Paula Henkel

(*) Pesquisadora associada do Instituto Ronald Reagan, é hoje arquiteta e analista política. Ex-atleta, atuou pela Seleção Brasileira de Voleibol e disputou quatro Olimpíadas. Foi medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de 1996, em Atlanta, Estados Unidos, pelo vôlei de quadra. É bicampeã mundial no vôlei de praia. Tornou-se um dos principais nomes femininos do pensamento liberal-conservador. Vive em Los Angeles, onde cursa Ciência Política pela Ucla.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-191/homens-comuns-crimes-barbaros/

DEIXE SEU COMENTÁRIO

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.