Dias de loucura

É preciso impedir que supremos superpoderes transformem 2023 no mais infame dos anos

Alexandre de Moraes - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Por Augusto Nunes (*)

Cabelos desgrenhados em veloz processo de extinção, o paletó de quem dorme vestido, a gravata estreita demais para camuflar a curvatura do ventre, a expressão entediada — nada na aparência do homem que empunhava um microfone induziu a pequena plateia a desconfiar que logo testemunharia um momento histórico. “Dados atualizados da invasão do Capitólio, ministro Alexandre de Moraes”, preparou a assistência o orador Dias Toffoli. Assim começou, em 14 de dezembro de 2022, a mais audaciosa ofensiva da dupla de artilheiros em ação no Supremo Tribunal Federal. “Novecentas e sessenta e quatro pessoas já foram detidas. Nos cinquenta Estados. E acusadas de crimes cometidos desde 6 de janeiro de 2021”, foi em frente o orador. “E quatrocentas e sessenta e cinco fizeram acordos se declarando culpadas com o Ministério Público”.

O impetuoso parceiro subiu ao palanque improvisado pronto para o arremate. “Antes de dizê o que eu ia falá, eu fiquei feliz com a fala do ministro Toffoli”, emocionou-se Moraes em paulistês interiorano. “Porque comparando os números têm muita gente pra prendê”, fez uma pausa e subiu o tom de voz para o fecho glorioso: “E muita multa pra aplicá!”. A plateia formada por gente que ajudou a eleger um governo favorável à “política de desencarceramento” saudou com risos e aplausos a advertência do Supremo Carcereiro. Menos de um mês depois, o surto de vandalismo agravado pela invasão dos prédios que abrigam as sedes dos Três Poderes animou Moraes a deixar claro que havia mesmo muita gente implorando por cadeia. Em 9 de janeiro, além dos 41 detidos em outras paragens, 1.406 brasileiros foram capturados na capital federal. E Moraes se tornou o novo recordista mundial da modalidade não olímpica prisões em massa.

Nenhum exagero, recitaram em coro porta-vozes do governo Lula fantasiados de jornalista. A democracia brasileira seria sepultada em cova rasa se Moraes não tivesse sufocado o que o consórcio da imprensa batizou de Intentona Bolsonarista. A óbvia alusão à Intentona Comunista — uma sequência de insurreições militares que tentou derrubar em novembro de 1935 o governo de Getúlio Vargas — é só um monumento à ignorância histórica. A desastrosa quartelada conduzida por Luiz Carlos Prestes provocou pouco mais de 100 mortes. Nos distúrbios de 8 de janeiro não morreu ninguém. Em 1936, foram julgados 35 integrantes do alto comando da Intentona Comunista. Passados mais de três meses, os presídios da Papuda e da Colmeia continuam atulhados de homens e mulheres aos quais foram negados o devido processo legal e o direito de ampla defesa. Os colunistas de picadeiro que resistiram à intentona que não houve acabam de ser baleados pelos vídeos que mostram o assombroso desempenho do general lulista Gonçalves Dias, em 8 de janeiro, durante a invasão do Palácio do Planalto.

O líder comunista brasileiro Luiz Carlos Prestes, em julgamento pelo Tribunal de Segurança, 1937 – Foto: Wikimedia Commons

Com a placidez de um bebê de colo, o agora ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional contempla a movimentação das tropas inimigas. Gentil como um guia turístico, oferece água aos futuros prisioneiros de guerra e indica-lhes a saída mais segura. O presidente da República, os devotos da seita e os ministros do STF fizeram de conta que não viram nada de mais. Lula jurou que não sabia de nada, que se houve algo errado a culpa é do velho amigo dele. E antecipou a decolagem rumo a Portugal. Parlamentares do PT garantem que o chefe foi traído. Moraes deixou claro que não perde tempo com criminosos que votaram no candidato certo. Primeiro, ordenou à Polícia Federal que esperasse 48 horas para ouvir o que tem a dizer o general amigo de Lula. Em seguida, comunicou que vai manter na cadeia Anderson Torres. Ex-ministro de Bolsonaro, Torres era secretário de Segurança Pública do Distrito Federal e estava nos Estados Unidos em 8 de janeiro. Foi preso por omissão. Mas vai continuar preso por outros motivos que o ministro preferiu omitir. Os demais superjuízes não deram um pio sobre a troca de gentilezas entre Gonçalves Dias e os depredadores.

A multidão de prisioneiros sem julgamento, formada exclusivamente por eleitores que não votaram em Lula, é a vitória da perversidade sobre a compaixão 

Como o caso do general pode esperar, os 11 Doutores enfim começaram a decidir o destino do primeiro grupo de acusados sabe Deus do quê, formado por 100 seres humanos. Exatamente 100; nem mais, nem menos. Como o Supremo mandou às favas a obrigatória individualização de conduta, a multidão encarcerada foi dividida em grupos (“lotes”, preferem os semideuses togados). A inovação pode juntar num mesmo balaio depredadores compulsivos e manifestantes que lastimavam a volta de Lula longe da Praça dos Três Poderes. Como o julgamento é virtual, as vítimas do arbítrio ficam nas celas, os doutores deliberam em casa e advogados sem acesso aos autos fazem a defesa oral à distância. Também os que saíram da cadeia não recuperaram a liberdade. São prisioneiros do medo, alimentado o tempo todo pelo uso da tornozeleira e por outras restrições ultrajantes.

Foto: Cristyan Costa

O ministro que acredita ter sufocado a Intentona Bolsonarista talvez ignore que em 1936, ao aprovar a deportação de Olga Benario Prestes para a Alemanha nazista, o Supremo Tribunal Federal conheceu sua hora mais escura. Alheia à Constituição, aos códigos legais, à ascendência judia e à gravidez da ré, a Corte condenou à morte a mulher de Luiz Carlos Prestes. Em tese, aplicou-se a pena de expulsão a uma estrangeira presa meses antes por ter participado da Intentona Comunista. Olga foi assassinada num campo de concentração. A criança que sobrevivera à escala no inferno foi resgatada por uma campanha internacional liderada pela avó. A decisão do STF inscreveu em sua história o dia da infâmia.

Olga Benário Prestes – Foto: Wikimedia Commons

Em 2019, quando Dias Toffoli atropelou o sistema acusatório brasileiro, confiscou atribuições do Ministério Público, abriu o inquérito das fake news e entregou sua condução a Alexandre de Moraes, poucos juristas enxergaram um vigoroso pontapé na Constituição. Quatro anos, nove inquéritos abusivos e incontáveis ilegalidades depois, a democracia brasileira é deformada pela existência de exilados perseguidos pelo Judiciário, presos políticos, indultos presidenciais atirados ao lixo, jornalistas proibidos de opinar, empresários sitiados por multas multimilionárias, contas bancárias e redes sociais bloqueadas, normas constitucionais em frangalhos, cidadãos sem passaporte — além do medo epidêmico infundido por ditaduras disfarçadas. A multidão de prisioneiros sem julgamento, formada exclusivamente por eleitores que não votaram em Lula, é a vitória da perversidade sobre a Justiça. O Brasil que pensa vem colecionando dias de loucura. É preciso impedir que supremos superpoderes transformem 2023 no mais infame dos anos.

(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.

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