Aqui o passado não passa

Governantes latino-americanos humilham os mais imaginosos fundadores do realismo fantástico

Nicolás Maduro e Luiz Inácio Lula da Silva, em um realismo fantástico protagonizado por governantes latino-americanos - Foto: Montagem Revista Oeste/Marcelo Camargo/Agência Brasil/Vecstock/Freepik

Por Augusto Nunes (*)

Nas páginas mais assombrosas escritas pelos fundadores do realismo fantástico, costumam ocorrer num passado impreciso as delirantes performances protagonizadas por governantes latino-americanos, mas as nações em que agem não são identificadas. O ditador criado por Gabriel García Márquez em O Outono do Patriarca, por exemplo, não consegue lembrar a idade que tem — calcula-se que esteja entre 107 e 232 anos. Também não consegue precisar a data em que recompensou com a doação do litoral que havia em seus domínios o desembarque de fuzileiros navais norte-americanos que o ajudaram a sufocar mais uma tentativa de golpe de Estado.

Sim, espantos desse porte já foram mais frequentes. Mas este estranho canto do mundo segue reiterando que, por aqui, o passado não passa. Candidatos naturais a vagas vitalícias no hospício ou na cadeia continuam em ação. Alguns fazem o diabo fantasiados de presidente da República. Outros mandam e desmandam por serem o que a imprensa velha qualifica de “líder”. (Para jornalistas brasileiros, deve ser chamado de “líder” todo liberticida que age ou agiu em qualquer lugar do mundo que aposentou a democracia. Josef Stalin, um assassino psicopata, foi o líder da União Soviética. O serial killer Kim Jong-un é o líder da Coreia do Norte. Quem sofre de estrabismo ideológico só enxerga ditadores de extrema direita.)

Capa do livro O Outono do Patriarca, de Gabriel García Márquez – Foto: Reprodução

Figuras que pareceriam esquisitas demais aos olhos do mais imaginoso ficcionista se espalham por todos os gabinetes que favoreçam a conjugação dos quatro verbos favoritos dos patifes que proliferam pelos trêfegos trópicos: “prender”, “soltar”, “nomear”, “demitir”. Eles estão no Executivo, esperam a vez no Legislativo ou, no caso do Brasil, formam uma espécie de junta judiciária que, para preservar a democracia e o estado de direito, mandou às favas o regime democrático, a Constituição e a liberdade. Na década de 1960, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, fez a advertência sensata: “Japona não é toga”. Passados quase 60 anos, o atual presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, foi incluído pelo advogado Gilmar Mendes, decano do Supremo Tribunal Federal, no grupo formado por “pigmeus morais”. Pacheco poderia ter invertido o lembrete histórico: “Toga não é japona”.

Os ministros do STF decidiram que é. Mais: além de japona, a bancada majoritária acha também que o manto negro lhe permite soltar sem amparo legal um ex-presidente corrupto (e garantir-lhe outro mandato), perseguir um ex-presidente eleito (e todos os que discordarem da decisão suprema), devolver o Brasil aos descendentes dos que aqui moravam em 1500, resolver o que é verdade e o que é mentira, incorporar o Pretório Excelso a uma frente partidária, dissolver o sistema acusatório, revogar o direito de ampla defesa e o devido processo legal, manter preso até a morte um réu sem julgamento e aplaudir a indicação para o Timão da Toga de alguém que continua comunista 35 anos depois da queda do Muro de Berlim.

Se o STF brasileiro é presidido por um advogado que tentou soltar o terrorista Cesare Battisti e mantém na cadeia septuagenários inocentes, se o presidente da República critica a pobreza vocabular dos tuítes sem ter lido uma única orelha de livro ou escrito um único e escasso bilhete sem erros, se o vice é um ex-carola que aprendeu cantorias socialistas enquanto reza para que o fator biológico o transforme em sucessor do titular quase oitentão, por que vizinhos historicamente amalucados haveriam de criar juízo? Governantes com a cabeça no lugar nunca foram muitos neste pedaço do mundo. Tanto no País do Carnaval quanto nos subúrbios da América do Sul, o estadista é a ararinha-azul da fauna política.

O apoio de Lula a Maduro é tão previsível quanto o frio do inverno. O presidente que adotou a política externa da canalhice não nega fogo quando o bandido amigo lhe pede apoio

Na Venezuela, por exemplo, políticos decentes estão na cadeia ou no exílio. Não há lugar para gente assim num país que renunciou ao futuro ao entregar seu destino a reencarnações degeneradas de Simón Bolívar. Morto em 17 de dezembro de 1830, El Libertador não consegue descansar em paz. Convencido de que era o próprio Bolívar, de volta à Venezuela com outro nome, Hugo Chávez botou na cabeça que a consagradora vida passada fora abreviada por envenenamento e mandou exumar o corpo de quem fora Hugo Chávez com outro nome. Especialistas concluíram que Bolívar/Chávez não morreu envenenado. Antes que se exumasse de novo, o ditador morreu de câncer tratado em Cuba. Mas a alma ainda não parece em paz.

Nicolas Maduro
O regime da Venezuela classificou como uma ‘infeliz provocação’ os exercícios militares anunciados pelos Estados Unidos na Guiana – Foto: Reprodução/Wikimedia Commons

O sucessor Nicolás Maduro jura que o padrinho já o visitou duas vezes, em forma de passarinho. Não detalhou o que conversaram. É possível que a ideia de roubar dois terços da Guiana tenha surgido entre um pio e outro. Se foi assim, é certo que Chávez/Bolívar sugeriu ao herdeiro truculento e abobalhado que torcesse pela volta do PT ao governo. A dupla sempre contou com três trunfos: o apoio do Exército venezuelano, comandado por corruptos sem cura; a omissão da ONU, hoje reduzida a um asilo de esquerdistas sem voto; e a falsa neutralidade de Lula, concebida para algemar o lado certo e, simultaneamente, liberar o bandido da história para o ataque traiçoeiro.

Confrontado com a invasão da Ucrânia pela Rússia, Lula envergonhou o Brasil que presta com frases que escancaram a vigarice homicida. “Quando um não quer dois não brigam”, recitou, igualando o invadido ao invasor. Agora convidado a comentar os rosnados do companheiro que cobiça as reservas de petróleo localizadas em Essequibo, Lula miou que “o Itamaraty está à disposição das partes envolvidas no conflito”. Não existe conflito nenhum. O que há é a cobiça da Venezuela economicamente agonizante, sonhando com o confisco de uma imensidão de petróleo. Nem existem partes em litígio. Existem um país pacífico, e praticamente desarmado, e outro sonhando com a amputação territorial do vizinho a caminho da prosperidade.

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Em um debate presidencial em 2022, Lula disse que sentiu orgulho de estar ao lado de Ortega – Foto: Arquivo/Roosewelt Pinheiro/Agência Brasil

O apoio de Lula a Maduro é tão previsível quanto o frio do inverno. O presidente que adotou a política externa da canalhice não nega fogo quando o bandido amigo lhe pede apoio. Mas há uma pedra no caminho: o petróleo de Essequibo foi encontrado e será extraído por uma empresa petrolífera norte-americana, e o governo dos Estados Unidos não costuma engolir afrontas a pessoas — físicas ou jurídicas — que tenham nascido lá. Maduro certamente vai consultar o passarinho. O clube dos cafajestes cucarachas sairá ganhando se a ave sempre irrequieta não tiver perdido o juízo de vez.

(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-194/aqui-o-passado-nao-passa/

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