Por Augusto Nunes (*)
Vladimir Putin nem esperou o bombardeio inaugural para reafirmar que, quando uma guerra começa, a primeira vítima é a verdade. Já em 24 de fevereiro de 2022, o czar engravatado enfeitou com um sórdido desfile de mentiras o pronunciamento na TV em que ordenou a imediata invasão da Ucrânia. Não poderia imaginar que acabaria desmoralizado por quatro jornalistas dispostos a ver as coisas como as coisas são e contar o caso como o caso foi. Liderada por Mstyslav Chernov, a equipe da Associated Press chegou a Mariupol, um polo portuário e industrial ucraniano com 450 mil habitantes, poucas horas antes do palavrório beligerante. Nas três semanas seguintes, o quarteto, formado por dois homens e duas mulheres, colheu imagens e sons que, reunidos no documentário 20 Dias em Mariupol, revelam em 95 minutos o que efetivamente aconteceu naquele trágico fim de inverno.
Já nos minutos iniciais é exibida a colisão frontal entre as falsidades recitadas por Putin e as verdades registradas por Chernov. “Tomei a decisão de realizar uma operação militar especial”, começa a litania vigarista, banindo a palavra “guerra” do vocabulário russo. Faz dois anos e meio que dá cadeia enxergar uma guerra onde o ditador vê apenas uma operação militar especial. O monumento ao cinismo erguido por Putin é ilustrado por tanques de guerra e bombardeios aéreos nos arredores de Mariupol. “Não planejamos ocupar os territórios ucranianos, não usaremos força para impor nada a ninguém”, continua o quinto cavaleiro do Apocalipse. A conversa fiada é desmontada por caças e blindados que rugem nos céus e nas estradas do país estuprado pelo poderoso canalha. “Nossas ações são em autodefesa contra as ameaças externas e contra um desastre ainda maior que está acontecendo”, prossegue o exterminador de perigos imaginários. Enquanto o líder tão carismático quanto um tocador de tuba vai parindo invencionices, um míssil de verdade risca entre nuvens outra rota da matança.
O idealizador do documentário acumula as funções de repórter, cinegrafista e narrador. “A cidade parece normal”, diz Chernov no dia da invasão. “Alguém me disse que guerras não começam com explosões. Começam com um silêncio.” A quietude pressaga é quebrada por gemidos e interjeições de uma mulher à espera do filho adulto, à procura da salvação e à beira do pânico. “Não sei se continuo filmando ou tento acalmá-la”, hesita o narrador. Na dúvida, procura juntar as coisas. Sem desligar a câmera, aconselha a mãe anônima a aguardar em casa o retorno do responsável pela dolorosa inversão da orfandade. “Os russos não estão atirando em civis”, diz. “Vá para casa e fique no porão.” No mesmo dia, uma bomba reduziu a escombros a casa da mulher, que Chernov revê dias depois num abrigo subterrâneo. Ele pede desculpas pelo conselho equivocado. Não pergunta se ela reencontrou o filho.
O narrador acompanha em silêncio o choro do pai que afaga o rosto do filho de 16 anos atingido por uma bomba quando jogava futebol
Nos primeiros sete dias, os profissionais da Associated Press conseguiram remeter aos editores os registros mais relevantes. A divulgação de cenas dilacerantes, como o enterro de cadáveres precariamente embrulhados em covas coletivas, pulverizou usinas de fake news gerenciadas pelo governo russo. Quando avarias decorrentes de ataques aéreos impediram o uso de celulares e da internet para o envio de vídeos e fotos, todos os jornalistas partiram — menos Chernov e seus três parceiros. “Tínhamos de continuar contando a história de Mariupol”, resume o narrador. Primeiro nas ruas e no abrigo antibomba, em seguida num hospital mantido pela coragem inverossímil de médicos e enfermeiros, eles seguiram ampliando o riquíssimo acervo que ficou escondido até o vigésimo dia. Só então, escondidas num carro que escoltava um veículo da Cruz Vermelha, essas preciosidades históricas ultrapassaram barreiras militares russas. Seriam agrupadas no documentário que, lançado em 2023, foi contemplado com o Oscar em 2024.
Na noite da premiação, aplaudido de pé por toda a plateia, Chernov afirmou que preferiria não ter filmado 20 Dias em Mariupol. Não mentiu. O narrador acompanha em silêncio o choro do pai que afaga o rosto do filho de 16 anos atingido por uma bomba quando jogava futebol. “Ele teve as duas pernas arrancadas na explosão”, lamenta um médico. A voz de Chernov some com a resposta de um menino de 12 anos a quem perguntara por que parece tão assustado. “Hoje acordei com o barulho das bombas”, balbucia o garoto. “Tenho medo de morrer desde que a guerra começou.” E a narração é deformada pelo desconsolo diante do desabafo do diretor do hospital que abrigava, além dos jornalistas, dezenas de médicos e centenas de civis atraiçoados pela guerra.
“Filme tudo! Filme tudo!”, grita o médico-chefe, enquanto tenta reativar os batimentos do coração de uma criança de colo ferida pela artilharia russa. “Mostre àquele bastardo do Putin os olhos dela! Mostre o que esses desgraçados estão fazendo com os civis!” O segredo do sucesso do filme está na escolha do elenco. A câmera se concentra no cotidiano de gente comum. Os protagonistas são civis que traduzem sua perplexidade em perguntas curtas, elementares — todas sem resposta. “O que vou fazer agora?”, quer saber a dona do supermercado saqueado depois de atingido por um bombardeio. “Como vou viver sem ele?”, aflige-se a mulher grávida abraçada ao bebê que, se tivesse sobrevivido ao parto perigosamente prematuro, dificilmente escaparia dos ferimentos de guerra. “Por que tudo isso?”, repetem vozes sem nome.
A reação dos agressores surpreendidos pela sobrevivência da verdade confirma que não há limites para a infâmia. Em Moscou, jornalistas e figurões do governo garantiram em programas de televisão que tudo não passava de uma requintada fake news. O que parecia um grupo de vítimas civis, juraram apresentadores de telejornais, era um grupo de atores e atrizes a serviço do inimigo.
Como Cuba e o Cameraman, 20 Dias em Mariupol deveria ser exibido meses a fio nos cinemas do Brasil. Ficou algumas semanas no telão da sala escura. Transferido para o streaming, está enfurnado nos mesmos esconderijos que ocultam o documentário sobre a ditadura cubana. Críticos de cinema brasileiros se ajoelham no milho para conseguir reprises de dramas inventados por sumidades iranianas, sérvias ou nicaraguenses. Nenhum tem tempo para aprender como se conta uma história real excepcionalmente pedagógica.
Quem assiste ao documentário de Chernov, e tem mais de dez neurônios, descobre que nunca foi tão fácil identificar o bandido da história. Descobre também que só continuam torcendo pela Rússia os napoleões de hospício, os portadores de estrabismo cafajeste, os que Nelson Rodrigues batizou de cretinos fundamentais e, claro, os fanáticos da seita lulista.
(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.
Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-228/a-verdade-sobreviveu/