Por Augusto Nunes (*)
“Quando Lula fala, o mundo se ilumina”, jura Marilena Chauí há quase 20 anos. Antes e depois dessa revelação, feita pela filósofa do PT ao sair de uma audiência com o presidente da República, ouvi incontáveis discurseiras do Sol de Chauí. Nenhuma delas transformou crepúsculo em aurora, nem noite em manhã. Mas são muito mais impressionantes os fenômenos que testemunho tão logo o palanque ambulante empunha um microfone. Plurais dão o fora em desabalada carreira, verbos no infinitivo se asilam na embaixada portuguesa, o raciocínio lógico implora por um copo de estricnina (sem gelo) e dicionários apavorados gritam por socorro antes que comece outra sessão de tortura, fora o resto.
Se a forma é indigente, o conteúdo dos palavrórios de Lula é tão raso que, na grande imagem de Nelson Rodrigues, uma formiguinha poderia atravessá-lo com água pelas canelas. Também por isso, o comportamento das plateias me parece tão assombroso quanto os fenômenos que provoca na paisagem ao redor. Exemplarmente domesticado, o público recepciona e se despede do orador de picadeiro com aclamações consagradoras, gargalha quando a piada infame ainda está no começo, aprova com movimentos verticais de cabeça afirmações cretinas ou platitudes que deixariam ruborizado um candidato a vereador na campanha de estreia. É assim com Lula há 60 anos.
Tem sido assim com Alexandre de Moraes nesta terceira década do século 21. Até 2019, o caçula do Supremo Tribunal Federal pedia autorização em voz baixa até para elogiar as Excelências capazes de equilibrar a toga com um ombro só. Promovido por seus pares a comandante da Inquisição à Brasileira, faz cinco anos que mandou às favas a Constituição de 1988. De lá para cá, vem prendendo meio mundo e arrebentando todas as instituições que atrapalhem suas ofensivas. Arrebenta sem pedir licença, e prende sem perder tempo com consultas a normas legais quem ouse contestá-lo. Previsivelmente, foi assim no encerramento do Fórum Jurídico de Lisboa, codinome Gilmarpalooza.
Escalado para discorrer sobre o tema “O mundo em eleições e o futuro da democracia representativa”, Moraes não foi poupado de aplausos nem mesmo quando recitou a sopa de letras abaixo reproduzida sem correções nem retoques:
“Só tem duas coisas que dá dinheiro nas redes sociais. Ódio e o que é muito fofo. Ódio é… matar, nazismo, coisa pesada… e aquele cachorrinho que é irmão de um coelhinho. Todo mundo aqui já viu, finge que não, mas já viu. Eh … Ah… Aquele leão, aquela leoa que cuidou da pata que nasceu. Cê olha, fala… oh… tal. Aí disseram: só isso dá dinheiro, só isso dá like. É o ódio. É o discurso machista. O discurso de rompimento. É… é o discurso nazista, e é a coisinha que dá dinheiro.”
Devo ter perdido alguma parte da história. Doutor em ódio, Moraes já explicou que existe até um gabinete, ainda por localizar, que gerou sucessivas ondas de fúria antidemocrática durante o governo do único político que vive cercado por multidões que sonham com abraços, não com linchamentos. Mas qual cachorrinho é irmão de um coelhinho? Alguém aí poderia ensinar-me como enriquecer com leões, leoas e patas? É um novo tipo de jogo do bicho? Por que discurso nazista dá dinheiro? Discurso comunista acaba em prejuízo? Moraes garante que uma boa regulamentação das redes sociais botaria ordem no cabaré. Não seria melhor enquadrar a internet na reforma tributária, e fechar os buracos financeiros que ameaçam o arcabouço fiscal? Com tanta trabalheira pela frente, o superministro prefere deixar para depois bijuterias políticas como a anistia. “Vamos aguardar”, recomendou entre o jantar e a ceia num dia lisboeta. “Quem admite ou não uma anistia é a Constituição Federal, e quem interpreta a Constituição Federal é o Supremo Tribunal Federal”. Tradução: “Deixa comigo”. Haja arrogância.
O Brasil do avesso, governado pelo consórcio STF-PT, é um viveiro de órfãos de pais vivos, inocentes condenados sem provas, doentes privados de remédios, exilados sem passaporte, gente angustiada com o brusco sumiço do horizonte
Moraes começou a melhorar de vida em 1997, ao lançar um livro com o título Direito Constitucional que viraria leitura obrigatória entre estudantes de Direito. Não por conter novidades, revolucionar doutrinas ou rejuvenescer velharias. O autor limitou-se a explicar trechos da Constituição de 1988 com base em textos produzidos por juristas renomados. Reeditado anualmente, o livro não chegou a mil páginas enquanto Moraes trabalhou como advogado, promotor de Justiça, secretário de Estado e ministro da Justiça e da Segurança Pública. Só em 2022 o que já nascera como tijolaço virou um catatau de 1.077 páginas. Os textos adicionais informam que, depois da chegada ao STF, Moraes mudou de turma, de ideia e de lado. O ministro não escaparia de um zero com louvor se fosse examinado pelo ex-professor Alexandre, isso se o jovem Moraes não fosse enquadrado em algum dos inquéritos conduzidos pelo cinquentão onipotente, onisciente e onipresente que preside o Poder Imoderado.
Em todas as edições, a epígrafe do livro famoso reproduz, separadas por reticências, a primeira e parte da segunda das seis frases do Salmo de Davi 23. O Senhor é meu Pastor, e nada me faltará… Guia-me pelas veredas da Justiça por amor ao Seu nome. O Carcereiro Geral desviou-se das veredas da Justiça e, depois de revogar o restante do salmo, enterrou em cova rasa a sexta frase do salmo: A bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida, e habitarei na casa do Senhor para sempre. O professor de Direito achou que nada lhe faltaria. Faltam ao ministro bondade, misericórdia, compaixão. Em contrapartida, sobram-lhe rancor, cólera e ressentimento. Moraes não julga; persegue. Não obedece às leis; é ele a Lei. Não cumpre a Constituição; prefere reformá-la com mudanças secretas. O livro é dedicado à mulher e aos três filhos do casal, que costuma reencontrar nos fins de semana. Sempre escoltado por seis a oito agentes de segurança, circula por restaurantes dirigidos por gerentes que conhece, visita os amigos que restam, evita aviões de carreira e atravessa meses sem dar as caras na rua.
Mas não encontra motivos para remorsos nem tempo para refletir sobre o estranho mundo que ajudou a moldar. O Brasil do avesso, governado pelo consórcio STF-PT, é um viveiro de órfãos de pais vivos, mães arrancadas de casa, inocentes condenados sem provas, doentes privados de remédios, gente perturbada pela temporada no inferno, avós sem notícia dos netos, exilados sem passaporte, prisioneiros perpétuos, gente angustiada com o brusco sumiço do horizonte. Mas vai acabando a era do medo — e a anistia já deixou de ser uma miragem. Como atesta a reportagem de capa assinada por J.R. Guzzo, é impossível acreditar que milhões de brasileiros oprimidos por um aleijão autoritário esperem no purgatório o tempo que falta para a aposentadoria de ministros ainda na faixa dos 50. Há limites para a paciência até nesta vastidão de profissionais da esperança. E a liberdade, quando acorda, sempre tem pressa.
(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.
Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-224/um-lula-de-toga/