A besta quadrada leva a taça

Dilma é eleita a melhor do ano por economistas que acham que 30% de 30% não é 30% de 30%

Dilma Rousseff, ex-presidente do Brasil - Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Por Augusto Nunes (*)

Ouvi pela primeira vez um discurso de improviso de Dilma Rousseff no verão de 2010, quando Lula já decidira transformar em sucessora a chefe da Casa Civil. Fiquei atônito. Na forma, o palavrório era um desfile de frases sem começo, meio e fim, desentendimentos entre sujeito e predicado, plurais com “sss” amputados, verbos no infinitivo acaipirados pelo sumiço dos “rrr”, reticências que anunciavam abruptas mudanças de rumo que também não chegariam a lugar nenhum, vírgulas bêbadas atrapalhando o trânsito das palavras, fora o resto. No conteúdo, o falatório empilhava platitudes de debutante e maluquices.

Das duas, uma: ou eu me transformara numa cavalgadura ou aquela mulher era uma perfeita besta quadrada. Não havia uma terceira hipótese. Nos dias seguintes, enquanto examinava com lupa meus próprios escritos, mantive sob estreitíssima vigilância tudo o que Dilma dizia. Com a sofreguidão dos obsessivos profissionais das crônicas de Nelson Rodrigues, comecei a assediar todo jornalista que tivera alguma conversa com Dilma Rousseff. Segurava-lhe os braços e repetia o interrogatório: “E então? Deu para entender alguma coisa? Ela disse alguma frase compreensível?”.

Um deles garantiu que a entrevista transcorrera normalmente. Outro afirmou que ela sempre se mostrava bem mais desembaraçada em conversas a dois. E quase todos estranharam minha aflição: ninguém havia notado nada de estranho em Dilma Rousseff. Eu certamente andava exagerando. E então fui socorrido pelo jornalista Celso Arnaldo, um craque em língua portuguesa e bom senso que se tornara colaborador do blog que eu mantinha no site de Veja. “Essa mulher fala um subdialeto indecifrável”, liquidou o assunto Celso Arnaldo. Quem dizia que compreendia o que vinha da boca de Dilma estava mentindo, concluímos. Ponto final.

Dilma Rousseff
Dilma Rousseff – Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Foi esse blog que batizou o mistério linguístico e deu o furo mundial: Dilma Rousseff, e ninguém mais no mundo, falava dilmês. Nos meses e anos seguintes, a coluna acompanhou com tamanha atenção a estranha figura que há tempos me dei conta do paradoxo sem precedentes. Dilma é a única chefe do governo brasileiro desde 1978 com quem nunca conversei. Mas talvez seja quem eu mais conheça. Nunca serei fluente em dilmês, até porque para tanto é preciso não falar coisa com coisa. Mas aprendi o necessário para afirmar, no começo da campanha eleitoral de 2010, que o Brasil poderia ser presidido por uma candidata perto de quem dona Maria I, a Louca, seria considerada um exemplo de sensatez.

A advertência não impediu que o neurônio solitário de Dilma ganhasse a disputa pela Presidência em 2010. (Cumprimentei pela façanha o principal adversário, José Serra: não é fácil ser derrotado por uma concorrente com severas avarias na cabeça.) Tampouco evitaria a reeleição com o triunfo sobre Aécio Neves e o maior desastre econômico sofrido pelo país neste século. A essa altura, já era tratada como piada de péssimo gosto pelo Brasil que pensa e presta. Foi essa parte saudável da nação que exigiu o despejo de Dilma depois de descobertas as pedaladas criminosas e impôs o impeachment ao monumento à cegueira coletiva.

Durante cinco anos e meio, a seita que tem num presidiário o seu único deus aplaudiu o desfile de espantos. Dilma anunciou, entre tantas outras ocorrências assombrosas, que por trás de toda criança há um cachorro oculto, que uma ponte é muito importante porque une um ponto a outro, que é gravíssimo permitir que a pasta saia do dentifrício, que 13 menos 7 é igual a 9, que 30% de 30% não é 30% de 30%, que a pandemia só seria liquidada pelo isolamento horizontal porque as famílias vivem na horizontal e o coronavírus — muito esperto, muito solerte — aprendeu a atacar sempre na horizontal.

O PT, embora menos esperto, menos solerte, tratou de manter Dilma longe de palanques desde o fiasco da candidatura ao Senado por Minas Gerais em 2018. Lula, capaz de deixar pra trás a família inteira se for esse o preço de uma vitória nas urnas, não reservou um espaço para a companheira no latifúndio ministerial com 39 gabinetes de luxo. Preferiu mandar Dilma Rousseff para a China, que no cérebro despovoado de neurônios do presidente é o país mais longínquo do planeta (e mesmo assim, quem diria?, foi invadido por Napoleão Bonaparte, pelo menos na cabeça de Lula).

O País do Carnaval já foi considerado o país das oportunidades. Hoje é um viveiro de oportunistas de picadeiro. Há pouco mais de três anos, por exemplo, a paranaense Janja da Silva era namorada de preso. Hoje é primeira-dama. Aos 20 anos, Dilma Rousseff militava num grupelho que acha possível derrubar à bala o governo militar, sepultar o regime capitalista e instalar a ditadura do proletariado. Hoje, a jovem assaltante de bancos é a sessentona que ganha uma fortuna por mês para presidir o Banco do Brics.

Está feliz como pinto no lixo, confirma a mais recente aparição de Dilma na internet. A bordo de um avião, ouve de uma passageira a exclamação: “Viajando de primeira classe!…” A mais rabugenta governante da História foi à réplica: “Lógico, querida. Eu sou presidente de banco, querida. E você acha que presidente de banco viaja como?”. Dito isso, seguiu em frente para alojar as malas em alguma parte do bagageiro que nunca lembra qual é.

Não se sabe direito o que anda fazendo na China. Ninguém sequer ouviu falar de um único e escasso projeto relevante produzido por sua gestão. Mas o que fez, faz ou deixou de fazer foi considerado suficiente pelo Sistema Cofecon/Corecons, que reúne o Conselho Federal de Economia e os Conselhos Regionais de Economia, para outorgar-lhe a máxima condecoração da entidade: Mulher Economista de 2023. É possível que, isolada na China, Dilma tenha aprendido a somar, subtrair, multiplicar e dividir. Se isso aconteceu, os economistas eleitores e a economista eleita se merecem.

Preciso agora descobrir o local do evento. Dilma certamente vai falar. Tomara que seja de improviso. Faz tempo que não ouço uma peça retórica em dilmês castiço.

(*) Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é colunista da revista Oeste e integrante do programa oeste Sem Filtro. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.

Fonte: https://revistaoeste.com/revista/edicao-195/a-besta-quadrada-leva-a-taca/

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